quarta-feira, 20 de novembro de 2024

 


SINAIS DE ALERTA


Quando alguém lhe disser frequentemente que sente vontade de sumir, desaparecer e que também sente cansaço, muito sono e que gostaria de dormir muito, isso pode ser um sinal de que ela não está mais suportando a vida e que o suicídio faz parte do seu plano de fuga e alívio. Outros sinais muito comuns são as alternâncias de humor, as reações verbais agressivas e ferinas, tudo para chamar atenção para as dores íntimas que a maioria de nós não vê e não compreende. Quem está assim também está dividido entre morrer e viver e pede socorro, mesmo sendo hostil e sarcástico. Também reclamam muito de que não os enxergamos e que não os tratamos com a devida atenção e respeito. Se irritam com a nossa presença e ao mesmo tempo reclamam da nossa ausência. Não há solução melhor, da nossa parte, senão o amor e uma dedicação firme, que pareça muitas vezes repetitiva e inconveniente. Insista, sempre.



BEFRIENDING


A prevenção do suicídio, na sua essência existe há  desde quando alguém percebeu que outra pessoa não estava bem consigo mesma e tomou a iniciava a iniciativa de oferecer ajuda. 

Mas foi nos últimos 100 anos que ela tornou-se sistêmica.  Se transformou num movimento organizado com a  intenção de enfretamento, em múltiplas frentes de entendimento e  ação, tal qual é o suicídio em seus múltiplos aspectos e fatores. 

Este relato fala mais sobre a experiência do Brasil, com mais de seis décadas, porém não desconsidera que essa movimentação, de forma quase sincronizada e num determinado contexto, surgiu espontaneamente em vários lugares do mundo. 

Ela continua reunindo, no mesmo propósito de aliviar o sofrimento íntimo, pessoas extraordinárias, as quais Chad Varah, fundador dos Samaritanos em Londres, denominou Befrienders, doadores de amizade.


PESSOAS EXTRAORDINÁRIAS

Há neste mundo, em todos os países, pessoas que parecem ser "comuns", mas que, quando se encontram com uma pessoa suicida, se revelam extraordinárias. Eles geralmente podem salvar vidas. Como? Eles dão a pessoa triste sua atenção total. Eles se esquecem completamente de si mesmos. Eles escutam... e escutam ... e escutam, sem interromper. Eles irradiam aprovação ou agitam suas cabeças simpaticamente. Depois de muito tempo, eles dizem "por favor, me conte mais". Se pedir conselhos, eles dizem: "você é a única pessoa que pode aconselhá-lo bem - o que você acha que deveria fazer?" Eles não têm mensagem. Eles não pregam. Eles não têm nada para vender. Nós os chamamos de 'samaritanos'.

Sir Edward Chad Varah



SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 

SÉCULO XIX: OS PRECURSORES DA PREVENÇÃO

DO DOGMA  AO ESTUDO DE CASO. 

SALVAÇÃO E PREVENÇÃO: DOIS PARADIGMAS. 

REVOLUÇÃO CIENTÍFICA E  HUMANISTA NA CALIFÓRNIA. 

 A PREVENÇÃO CIENTÍFICA DO SPC. 

CARL ROGERS E A PESSOA COMO CENTRO

A PREVENÇÃO E OS SÍMBOLOS EXISTENCIAIS NO JAPÃO.

 GRUPOS DE RISCO E CORPORAÇÔES PROFISSIONAIS

 A EXPERIÊNCIA DO BRASIL

O TABU DO SUICÍDIO NA MÍDIA

PREVENÇÃO DO SUICÍDIO. QUEBRANDO O TABÚ. 

A PROPAGANDA DO CVV. UM FACHO DE LUZ NAS NOITES DA ALMA. 

 A PREVENÇÃO NO BRASIL NA ÚLTIMA DÉCADA

ANEXOS

CHAD VARAH, O FUNDADOR DOS SAMARITANOS.

 O EXERCÍCIO DA AMIZADE (JACQUES CONCHON). 

A EXPERIÊNCIA DO CVV (ALANKARDEC GONZALEZ)


*

Jovens de São Vicente, participantes do Programa Estação Amizade, em visita à Pinacoteca de São Paulo em 2018. A estátua de Francisca Júlia é de autoria de Victor Brecheret, talhada em Paris, e foi denominada "Musa Impassível" por Menotti Del Pichia. 

2021 MARCOU CENTENÁRIO DA MORTE DE FRANCISCA JÚLIA, poetisa parnasiana que suicidou-se em São Paulo, na manhã de 31 de outubro de 1920, durante o velório do marido. Já há muito depressiva, não suportou a dor da perda e declarou que não usaria vestido de viúva. Foi a inspiradora do primeiro grupo de prevenção do suicídio no Brasil.



AS SETE DÉCADAS DOS SAMARITANOS


Telefone original dos Samaritanos, fundado por Edward Chad Varah, que  em 4 de novembro 1953 atendeu ao primeiro chamado para uma nova linha de ajuda para pessoas que planejavam suicídio. Foi o início da prevenção do suicídio na Inglaterra, com o número 9000. 

No jornal "Picture Post", o fundador Chad Varah anunciou: "Estou disponível para conversar com pessoas sérias sobre assuntos sérios".

Hoje o Samaritans têm 20.000 voluntários que a cada 7 segundos respondem a um pedido de ajuda. Central London Samaritans.  


AS SEIS DÉCADAS DO CVV




A primeira logomarca do CVV, que iniciou seu trabalho em São Paulo com o plantão da enfermeira e voluntária Misayo Ishioca, imigrante nascida em Hiroxima. A escolha do plantão foi feita por sorteio entre os 18 voluntários fundadores  e realizado em 01 de março de 1962, às 16 horas. Nessa época o CVV chamava-se Campanha de Valorização da Vida e depois adotou o nome Centro de Valorização da Vida. 



A FLORISTA QUE SABIA OUVIR SENTIMENTOS


Nydia, a florista cega de Pompéia. Esculpida pelo americano Randolph Rogers em 1859, esta figura de mármore está na ala Americana do The Metropolitan Museum de Nova York. Presente de James Douglas, 1899. A destruição de Pompéia é simbolizada pela capital coríntia quebrada ao lado de seu pé direito. O tema foi extraído de "Os Últimos Dias de Pompéia" (1834), um romance de Lord Edward Bulwer-Lytton, amplamente lido, que termina com a erupção do Monte Vesúvio em 70 dC. O retrato sugestivo de Rogers sobre Nydia destaca sua tentativa heroica de levar dois companheiros para fora da cidade ardente e coberta de cinzas. Os olhos fechados e a bengala aludem à cegueira, enquanto a mão erguida ao ouvido se refere ao sentido agudo da audição. 


A Pompéia de 79 dC é o cenário histórico dos confrontos íntimos entre o paganismo decadente e o cristianismo nascente, enlaçando em trama passional os aristocratas Glaucus , Ione e Apaecides; o pagão e mago Arbaces; o cristão Olinthus e a escrava cega Nydia, liberta por Glaucus dos seus senhores abusivos. Nydia confecciona e vende arranjos de flores nas ruas para sustentar seus amos Burbo e Strasonice.

Na data da tragédia do Vesúvio, após longos dias de confrontos e dores, Nydia encerra a trama ajudando seus protetores, sobretudo Glaucus, por quem alimentava uma paixão oculta. No caos das ruas, Nydia leva Glaucus e Ione em segurança para um navio na Baía de Nápoles. Por causa de sua cegueira, ela costumava andar na escuridão total, enquanto as pessoas que enxergavam estavam desamparadas na nuvem de poeira vulcânica. Na manhã seguinte, ela comete suicídio deslizando silenciosamente no mar, preferindo a morte à agonia de seu amor não correspondido por Glaucus. Dez anos depois Glaucus escreve ao amigo Sallustius, agora morando em Roma e que ajudara a resgatar a escrava cega, sobre a felicidade dele e de Ione em Atenas. Eles construíram uma tumba para Nydia e adotaram o cristianismo como modo de vida.

A personagem Nydia inspirou a florista cega do filme Luzes da Cidade, de Charles Chaplin, cujo vagabundo encontra por acaso um milionário e o livro do suicídio. Hábil em fingir sua dores e paixões, o vagabundo tenta de todas as formas ajudar a florista a se livrar da pobreza. Nydia de Pompéia também inspirou o musical My Fair Lady, que conta a história de Eliza Doolittle, uma mendiga que vende flores pelas ruas escuras de Londres e do seu encontro com o professor de fonética Henry Higgins. O professor culto têm a incrível capacidade de ler o interior das pessoas apenas através de seus sotaques e faz uma aposta com um amigo afirmando que pode transformar a mendiga em uma lady em poucas semanas.

Não havia gritos dos marinheiros à luz do amanhecer - eles haviam chegado muito gradualmente, e eles estavam cansados demais por essas repentinas explosões de alegria -, mas havia um murmúrio baixo e profundo de gratidão entre aqueles observadores da longa noite

No silêncio do sono geral, Nydia levantou-se suavemente. Inclinou-se sobre o rosto de Glaucus - inspirou profundamente o sono pesado dele - timidamente e tristemente beijou a testa dele - os lábios; ela sentiu a mão dele - estava trancada na de Ione; ela suspirou profundamente e seu rosto escureceu. Mais uma vez, ela beijou a testa dele, e com o cabelo enxugou a umidade da noite. "Que os deuses o abençoem, ateniense!", Ela murmurou: "que você seja feliz com sua amada! - às vezes você se lembra de Nydia! Ai! ela não tem mais utilidade na terra!

Com essas palavras ela se virou. Lentamente, ela se arrastou pelo fori, ou plataformas, para o lado mais distante do navio e, fazendo uma pausa, inclinou-se sobre o fundo; o borrifo frio subiu em sua sobrancelha febril. “É o beijo da morte”, ela disse, “é bem-vinda.” O ar agradável brincou através de suas madeixas ondulantes - ela as tirou do rosto e ergueu aqueles olhos - tão ternos, embora tão sem luz - para o céu, cujo rosto suave que ela nunca tinha visto!

"Não, não!", Ela disse, em voz alta e num tom pensativo e pensativo, "eu não posso suportar; esse amor ciumento e exigente - despedaça toda a minha alma na loucura! Eu poderia machucá-lo novamente - miserável que eu era! Eu o salvei - o salvei duas vezes - feliz, feliz pensamento: por que não morrer feliz? - é o último pensamento feliz que posso conhecer. Oh! Mar sagrado! Eu ouço sua voz de forma convidativa - ela tem um chamado renovado e alegre. Dizem que em teu abraço é desonra - que tuas vítimas não cruzam o Estige mortal - seja assim! - Eu não o encontraria nas Sombras, pois ainda o encontraria com ela! Descanse - descanse - descanse! não há outro Elysium para um coração como o meu! '

Um marinheiro, meio cochilando no convés, ouviu um leve respingo nas águas. Sonolento, ergueu os olhos e, por trás, enquanto o navio se aproximava alegremente, imaginou ver algo branco acima das ondas; mas desapareceu em um instante. Ele se virou novamente e sonhava com sua casa e filhos.

Quando os amantes acordaram, seu primeiro pensamento foi um no outro - o próximo de Nydia! Ela não foi encontrada - ninguém a viu desde a noite. Todas as fendas do navio foram revistadas - não havia vestígios dela. Misterioso do começo ao fim, a tessaliana cega havia desaparecido para sempre do mundo dos vivos! Eles adivinharam o destino dela em silêncio: Glaucus e Ione, enquanto se aproximavam um do outro (sentindo um ao outro o próprio mundo), esqueceram a libertação e a choraram como uma irmã que partiu.

Traduzido e adaptado de The Last Days of Pompeil,charpter 10. The next morning. The fate of Nydia.


INTRODUÇÃO


"SAVE A LIFE". O serviço nº 1 de prevenção. Nova York, 1906. Visava combater os inúmeros casos de suicídio na grande metrópole dos EUA. Naquele contexto a cidade passava por um acelerado processo de urbanização e recepção de imigrantes e cidadãos do interior dos Estados Unidos.


NY Save a Life (1906); London: Salvation Army (1907), Berlim e Viena (1948); Samaritans (1953); EUA,Los Angeles Suicide Prevention Center (1962); São Paulo: CVV (1962); Paris: SOS L’Amitie (1964); Itália: Telefono Amico (1967); Espanha: Teléfono de La Esperanza (1971); Londres: Befrienders Wordwide (1980).  Brasil: Estação Amizade (2016); Inglaterra: Papyrus (2017). Marrocos: Sourire de Reda (2017).

Falar de forma clara e aberta 

sobre suicídio não é tarefa simples e fácil. Todos os grandes filósofos e artistas cogitaram pública ou particularmente sobre o tema, sempre impressionados com a gravidade e ao mesmo a indiferença com que é tratado. Ainda é um grande tabu.  Para termos uma pequena ideia sobre isso, devemos lembrar que as instituições sociais que deveriam ser a vanguarda na remoção desse obstáculo, até pouco tempo, se recusavam a tocar nesse assunto e abordá-lo de forma pública e transparente.  Nada a estranhar. Um tabu cultuado durante milênios não poderia desaparecer da sociedade da noite para dia. A civilização aprendeu lentamente a conviver com a morte por meio de rituais de luto, procedimentos terminais hospitalares e sanitários, mas o mesmo não ocorreu com o suicídio. Nem as modernas clínicas de eutanásia e morte assistida conseguiram remover do imaginário social a ideia do suicídio como um assunto de alto grau de rejeição e proibição em todos os setores e segmentos sociais. É uma verdade inconveniente que só vem à tona quando as estatísticas e escândalos atingem níveis insuportáveis e impossíveis de serem negados ou mantidos em segredo. Quando esses limites são atingidos, a própria sociedade reage para encontrar saídas e soluções para conter o  desequilíbrio. A ideia de prevenção foi fruto desse limite. 

Esse tem sido o papel dos serviços de prevenção que surgiram nos últimos 100 anos. Durante décadas eles agiram sozinhos e sem recursos para compensar a indiferença e a ausência de políticas voltadas para esse fim. Não encontrando respostas satisfatórias nas formas e meios tradicionais de tratamento e convívio com esse problema, o mundo contemporâneo descobriu e desenvolveu a prevenção, sobretudo a informal, como alívio e busca de solução por meio de grupos de enfrentamentos, em diversos estilos e modalidades. Mesmo assim, o tabu persistiu. Muitas coisas mudaram de forma positiva nas últimas décadas nesse movimento social e grande parte dessas transformações foram provocadas pelas ações das organizações preventivas, voluntárias e profissionais; científicas ou humanitárias. Foi preciso um pouco mais de um século para que uma cultura milenar dogmática e cristalizada pudesse ser aos poucos quebrada e removida, abrindo o livre caminho da prevenção e restauração da vida.

No século XIX já existiam iniciativas para explicar e conter as ondas de suicídio, por meio de pesquisas, do socorro assistencial, pelas publicações reflexivas nos jornais e, sobretudo, pelas manifestações artísticas em forma de protesto e denúncia. Goethe se antecipou nesse aspecto quando, no século XVII, publicou “O Sofrimento do jovem Werther”. Seguindo seus passos e também da dramaturgia trágica greco-romana, inúmeros artistas manifestaram sua indignação com o suicídio. Eles foram, na verdade, os precursores da causa, abrindo com suas obras e conteúdos chocantes as trilhas socialmente proibidas da prevenção. Depois desse trabalho de preparação psicológica, de semeadura em solo árido, a prevenção foi encontrando alternativas de fertilização, surgindo no século seguinte as primeiras iniciativas públicas de socorro aos suicidas.  

O primeiro e conhecido centro de emergência em prevenção realizava suas atividades em Nova York em 1906. Chamava-se “Save a Life” e visava prevenir os inúmeros casos de suicídio que ocorrem na metrópole norte-americana, que naquele contexto passava por um acelerado processo de urbanização e recepção de imigrantes e cidadãos do interior dos Estados Unidos. 

Em 1907 foi registrado em Londres um serviço específico de ajuda aos suicidas, ofertado pelo Exército da Salvação, de abordagem religiosa conhecida como “Sopa e sabão”. O trabalho era voltado para a população marginal da cidade, historicamente explorada por criminosos e funcionários públicos corruptos. 

Em 1948 já havia em Viena um centro de atendimento médico voltado especificamente para suicidas; e em Berlim , em 1956, outro estabelecimento com o mesmo perfil. Nesse período pós-guerra as ondas de suicídios eram constantes nas cidades destruídas pelos bombardeios e que começavam a ser reconstruídas no aspecto físico e urbano, bem como na organização social, marcada pelo sofrimento em massa. Na Alemanha, poucos meses antes da rendição, emissoras de rádio do governo anunciavam a aproximação dos Aliados para disseminar o terror psicológico na população levando muitas pessoas ao suicídio. Nos tenebrosos campos de concentração, os suicídios era rotina cotidiana.    

Em Londres, no pós-guerra, segundo relato de Chad Varah, os suicídios ocorriam geralmente, entre outras causas trágicas, quando soldados voltavam depois de muitos anos fora de casa e encontravam suas esposas casadas com outros homens e com filhos desse novo casamento. Não suportavam esse impacto de se verem sem rumo e se matavam. 

Na mesma Londres, em 1953,  na Saint Stephen Walbrook  Church, o reverendo Chad Varah deu início à formação dos primeiros voluntários atendentes, denominado “Samaritans”, após descobrir que a escuta compreensiva oferecida por pessoas comuns tinha um grande impacto na prevenção. Chad descobriu por acaso que não era necessário  numa situação de primeiro contato ou emergencial, a presença de um atendente especialista. O voluntário fazia uma triagem natural e facilitava a intervenção profissional. Nos anos seguintes, em função dessa descoberta, o serviço foi estendido para mais de 250 localidades do Reino Unido. Esse modelo dos Samaritans expandiu-se também nos países de língua inglesa, vinculados historicamente à colonização e que posteriormente ampliaram suas relações na chamada Comunidade Britânica no Canadá, África, Oceania e Ásia. 

Nos anos 1950, em Los Angeles, nos EUA, têm início as históricas experiências científicas do Suicide Prevention Center.

Nos anos 70, os Samaritanos constataram que muitos casos de suicídio eram causados por distúrbios psicossexuais, que poderiam ser aliviados e até mesmo tratados por especialistas. O fundador  Chad Varah convidou então voluntários profissionais para desviar essas chamadas que perturbavam o serviço telefônico comum. Brenda foi a primeira atendente a fazer esse trabalho especial, ousado e humanitário, mais tarde denominado “Brendas”, que existe até hoje em Londres. 

Nesse período Chad também começou a organizar a união de todos os serviços de prevenção do Reino Unido para formar o Befrienders International.  Alguns anos mais tarde, a organização foi ampliada para os vários pontos do planeta, passando a se chamar BW- Befriending Wordwide: África, Australásia e Pacífico, Ásia Ocidental,  América Latina, Europa, América do Norte e Sul da Ásia, 

Em 1977 Chad Visitou o Brasil e propôs aos voluntários do CVV e da Aliança Espírita Evangélica a fusão das siglas CVV-Samaritanos, para expansão de postos de atendimento nas principais cidades brasileiras e também nas capitais da América do Sul. O fundador do CVV já havia tido contato com ele em 1965 durante uma viagem profissional à Europa. 

Em 1997 o Befrienders International abre uma nova frente de pesquisa para prevenção do suicídio na infância, por meio do “Reaching Young Europe”, um programa experimental de desenvolvimento de habilidades emocionais. No início da década seguinte teve início em várias regiões do mundo os experimentos educativos, incluindo o Brasil e a Índia . 

Em março de 2004, o programa iniciou-se, em escala piloto, com 276 crianças, de oito instituições da Grande São Paulo. Uma avaliação profissional foi conduzida e demonstrou resultados animadores, semelhantes aos que estavam sendo obtidos em outros países. Ao término do piloto, em 06 de novembro de 2004, à semelhança da evolução em outros países, foi fundada a ASEC – Associação pela Saúde Emocional de Crianças, entidade sem fins econômicos que se dedica ao desenvolvimento e expansão de programas de Educação Emocional no Brasil. A PFC é detentora dos direitos autorais do programa Amigos do Zippy e a ASEC é sua representante exclusiva no território brasileiro. A ASEC vem sendo conduzido no Brasil por membros historicamente ligados ao CVV, atuando de forma independente. Em 2005 participaram 32 instituições, totalizando 1.766 crianças. Em 2006 já eram 166 instituições e 15.776 crianças. Em 2016 participaram 432 escolas e entidades, com 28.328 crianças, em 36 cidades. Desde sua implementação, o programa já beneficiou 277.415 crianças no Brasil.

A realização de simpósios internacionais de prevenção do suicídio e o surgimento de planos nacionais de prevenção, recomendados pela Organização Mundial de Saúde-OMS, marcou o início do século XXI, quando as estatísticas de mortes por suicídio atingiu a marca de 1 milhão de pessoas por ano.  15 anos depois essa marca caiu para 850 mil suicídios, sendo a redução atribuída à adoção de planos e estratégias voltadas para esse fim. 

Conferência do BW-Befrienders Worldwide em 2018 com representantes do Brasil e América Latina. A Befrienders Worldwide. Fundado em 1974 por Chad Varah, o BW  é atualmente uma rede global de 349 centros de apoio emocional em 32 países, em 5 continentes, com 25.000 voluntários ajudando cerca de 7 milhões de usuários ao ano. Um espaço aberto para que as pessoas em aflição falem e sejam ouvidas.

No Brasil, seguindo essa tendência mundial, o Ministério da Saúde inicialmente dá ênfase aos segmentos profissionais de saúde mental na aplicação do plano nacional de prevenção. Porém, logo constata que o suporte de voluntários tem alta e positiva influência na sociedade. O trabalho ofertado por voluntários aos sobreviventes e familiares da tragédia da Boate Kiss deu mais visibilidade ao trabalho voluntário do CVV aos olhos das autoridades de saúde pública, cuja característica apolítica e areligiosa qualificou de forma “sui generis” seus postos de atendimento para receber a linha 188 gratuita. Inicialmente a concessão dada pela Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) ficou restrita na região de Santa Maria. Posteriormente foi estendida ao estado do Rio Grande do Sul e depois ampliada gradualmente para todas as regiões do Brasil. Essa oferta registrou no primeiro ano o recebimento de 4 milhões de chamadas, atendidas  por um corpo de 2.500 voluntários, espalhados em mais de 100 postos. Mesmo com a pandemia  e aumento da busca de apoio emocional, a redução de voluntários e postos não comprometeu a oferta de atendimento. 


Campanha educativa da OMS para difusão de verdades e mitos sobre o suicídio.


Em 2014, as estatísticas da Organização Mundial de Saúde- OMS tinham registrado a redução mundial do número de suicídios (que era de 1 milhão por ano), porém com um surpreendente aumento de ocorrências na faixa etária de crianças e adolescentes, na ordem de 12% das 850 mil mortes anuais. A explicação dessa mudança estava, entre outros fatores, no crescimento da cultura das redes sociais, responsável pela criação de um universo livre e também perigoso para essa faixa etária, facilmente atingida pelas ondas de informações negativas e aliciadoras para o suicídio. O cenário era assustador: os jogos e desafios existenciais circulando em rede mundial,  uma intensa apologia do suicídio e uma crescente epidemia de ansiedade, síndrome de pânico, paralisia do sono e depressão. 

No Japão, onde o suicídio é culturalmente visto como questão honra, aumenta entre os jovens a admiração e culto à "Aokigahara", a floresta na qual  estima-se que dezenas de pessoas por ano dão fim à própria vida nesse bosque, que fica aos pés do monte Fuji. No mesmo Japão, no final da segunda década desse século, surge um fenômeno denominado “fotuko”, no qual jovens se recusam a frequentar escolas, rejeitando o tom competitivo e excludente dos alunos que não possuem afinidade com esse perfil de educação. Eles foram precedidos pelos “hikikomori”, uma geração que se isolava por meses em seus quartos num processo de sedentarismo físico e psicológico.

Inspirado na experiência dos núcleos históricos de prevenção, duas escolas da Baixada Santista (E.E. Margarida Pinho Rodrigues e Camp Rio Branco, ambas em São Vicente-SP) iniciaram simultaneamente experiências com jovens entre 12 e 18 anos, protagonistas e multiplicadores dos princípios e práticas da escuta acolhedora e compreensiva. O livro de ficção Estação Amizade e o Minicurso Saber Ouvir foram as principais ferramentas e propostas de formação e treinamento dessa faixa etária. O programa de prevenção foi registrado e contemplado pela Secretaria de Estado da Educação de São Paulo com o selo “Boas Práticas” em 2017 e divulgado amplamente pela rede estadual de ensino. 

Em 2020, a SEDUC SP incluiu o programa no manual de acolhimento escolar elaborado pelo CONVIVA, grupo de gestão  para educação emocional e ações protetivas das escolas.  O secretário adjunto da educação realizou uma live sobre esse programa para mais de 8 mil educadores da rede, relatando a experiência histórica da prevenção e a contribuição que essa  vivência pode dar ao universo escolar, hoje voltado em grande parte para as bases da educação socioemocional. 

Nesse mesmo ano, a ASEC, entidade que administra o programa Amigos do Zippy no Brasil, voltado até então somente para a infância, cria o movimento Saber Lidar e inicia experiências remotas e virtuais com adolescentes por meio de cursos virtuais de ferramentas emocionais. A entidade contou com o apoio da Unicef.  Uma das experiências foi feita no centro de formação profissional Camp Rio Branco, de São Vicente, que já aplicava o programa Estação Amizade desde 2018. Também em 2020, a ONG Alfa-Ômega passou a realizar uma experiência com adolescentes sobreviventes do suicídio na periferia de São Vicente. Os encontros tiveram como base a leitura do livro Estação Amizade.

Em 2021 a SEDUC do estado de Goiás solicitou a aplicação do programa Estação Amizade, por meio de encontros remotos mensais, formando cerca de 400 alunos protagonistas e multiplicadores em todas as agências regionais de educação do estado. A aplicação foi feita de forma voluntária e acompanhadas durante todo o ano letivo por técnicos da SEDUC, por meio do Programa Saúde nas Escolas  e de educadores das escolas inscritas nos eventos.  

É provável que nesse período tenham ocorrido experiências semelhantes em diversas regiões, já que as que foram citadas surgiram em função de uma conjuntura favorável, que foi a busca de soluções para um problema comum.


SÉCULO XIX: PRECURSORES DA PREVENÇÃO 


"Le Suicidé (O suicida, em tradução literal do francês)  óleo sobre tela  de Édouard Manet marcando o realismo do pintor entre 1877 e 1881. A obra tem dimensões de 38 cm por 46 cm e atualmente encontra-se na Fundação Emil Georg Bührle, na cidade de Zurique, na Suíça.

 O conteúdo pictórico da obra concentra-se em uma figura masculina que acabou de cometer suicídio. Além de um revólver que pende da mão direita, há resquícios de sangue na camisa do indivíduo representado, indicando que ele tirou a própria vida atirando em si mesmo com uma arma de fogo. 

De acordo com Ulrike Ilg, o realismo da pintura pode ser considerado influência das tendências naturalistas de Gustave Courbet. O crítico de arte estabelece um paralelo entre a obra de Manet e a tela Enterro em Ornans (1849-50) – considerada um marco na mudança da abordagem técnica de Courbet –, a qual retrata um cortejo fúnebre.

Devido ao realismo gráfico, a pintura de Manet quebrou o padrão artístico em relação ao tema abordado. As representações anteriores de suicidas tornaram-se conhecidas por romantizarem o suicídio, aludindo a figuras da antiguidade clássica como Ájax, Lucrécia, Sêneca ou Sócrates". Wikipédia.


Fim de Romance, 1912. Antônio Parreiras. óleo sobre tela, Acervo da Pinacoteca do Estado de São Paulo/Brasil. 

A mesma análise feita Ulrike Ilg na pintura anterior poderia ser aplicada na obra de Parreiras, produzida no Brasil com poucos anos de diferença.  Essas  duas pinturas mais conhecidas certamente funcionaram como ações precursoras da prevenção do suicídio simplesmente pela intenção de provocar uma reflexão nos observadores. O efeito dessa narrativa, como qualquer outra modalidade expressiva de arte provoca curiosidade, choca e desperta diferentes reações na psiquê humana. 

  


O jornalista  Benjamin Gastineau e o educador  Allan Kardec: denúncia com estatísticas e discussão pública sobre as causas e busca de soluções para o problema do suicídio no século XIX.  


Nos tempos modernos, após a grande transição da mentalidade religiosa e geocêntrica para o universo heliocêntrico e racional, o suicídio continuou sendo visto como crime contra Deus e a natureza das coisas, sendo seus praticantes também condenados como criminosos e proscritos da sociedade. Essa cosmovisão teológica e moralista dominante, herdada do universo judaico-cristão, havia se espalhado no ocidente  durante o milênio e manteve-se como principal raiz do tabu. Nem mesmo o iluminismo conseguiu demovê-la do imaginário social, dogmático e supersticioso. Entretanto, no século XIX , surgiram circunstâncias favoráveis para que  os livre pensadores dessem ao fenômeno as primeiras interpretações mais próximas da ciência e de que se tem notícia, baseadas no modelo analítico de causa e efeito.   

Motivadas pelas rápidas transformações do mundo industrial e impressionadas pelas estatísticas sempre crescentes, surgem então as primeiras abordagens questionadoras e ao mesmo tempo indicadoras do redimensionamento do assunto. Os intérpretes tradicionais da realidade não ousavam discordar e tomar posições diferenciadas do preconceito dominante. Os que agiam de forma contrária eram exatamente os que destoavam do convencional,  em sintonia com as mudanças em curso. Por isso agiam de forma independente, mesmo correndo graves riscos de marginalização. Os principais obstáculos para abordar  e buscar soluções para o problema do suicídio era a religião e o sistema aristocrático dominante, que persistiam restaurados no seu antigo status quo. O primeiro reforçava o dogma condenatório do suicídio e o segundo era moralmente indiferente às tragédias e ao sofrimento humano. 

Os artistas já vinham preparando o solo da mudança da mentalidade, mas ainda não era suficiente. Era preciso quebrar o silêncio e questionar abertamente o sistema social de controle. Na segunda metade do século  XIX  encontramos em Paris, em meio a tantos outros e em diversos segmentos, dois diferentes modelos de questionadores, típicos daquele tumultuado contexto histórico, falando abertamente sobre suicídio. O primeiro foi o escritor e jornalista Benjamin Gastineau, divulgando no jornal Siécle curiosas e assustadoras estatísticas de mortes. 

“No Siècle de... de maio de 1862, lê-se:

Na Comédie sociale ou dix-neuvième siècle, o novo livro que o Sr. B. Gastineau acaba de publicar na Casa Dentu, encontramos esta curiosa estatística de suicídios:

‘Calculou-se que desde o começo do século o número de suicídios na França não se eleva a menos de 300.000, e tal estimativa talvez esteja aquém da verdade, pois a estatística não fornece resultados completos senão a partir de 1836. De 1836 a 1852, isto é, num período de dezessete anos, houve 52.126 suicídios, ou seja, em média 3.066 por ano. Em 1858 contaram-se 3.903 suicídios, dos quais 853 mulheres e 3.050 homens; enfim, segundo a última estatística que vimos no correr do ano de 1859, 3.899 pessoas se mataram, a saber 3.057 homens e 842 mulheres’.

Essa pequena nota no Siécle chamou a atenção de Allan Kardec, educador e redator da Revue Spirite, que aproveitou a ocasião para dissertar a visão espírita sobre o assunto. Kardec manteve e expôs nas suas obras  a mesma moral teológica da cultura judaico-cristã, explanando doutrinariamente sobre o fenômeno e explicando o suicida como um transgressor das leis divinas e naturais, porém de forma não condenatória e compreensiva, como um ser doente,  seja no aspecto moral, fruto da ociosidade e da indisciplina pessoal; seja como doente mental e que não responde pelo seu ato; e ainda como vítima de um sistema social imperfeito e consequentemente injusto, mas que poderia se mudado inicialmente pela solidariedade. Diferente da visão religiosa dogmática tradicional, a visão de Kardec reconhece o suicídio como erro de conduta, porém aponta formas naturais e mais tolerantes de correção e reparação do desvio existencial. Concepções aceitáveis ou não, a denúncia provocadora e social de Gastineau e a abordagem espiritual e humanitária de Kardec foram precursoras da mentalidade aberta e humanista da prevenção, que só receberia um tratamento científico e pragmático três décadas depois, após a publicação do estudo de Durkhein. 

É óbvio que não foram posições únicas e isoladas mas são provas incontestável de que há um século e meio o suicídio e sua prevenção já eram alvo de interesse de formadores da opinião pública e que teria efeito na criação de movimentos específicos de prevenção. A concepção espírita, por exemplo, teria  no século seguinte no Brasil uma inclinação assistencialista para a prevenção e tratamento do suicida em potencial nos conhecidos hospitais psiquiátricos humanizados das primeiras décadas do século XX e com práticas terapêuticas alternativas de saúde mental. Eles foram também os precursores do movimento  anti-abusivo nos estabelecimentos manicomiais de confinamento e permanência de longa duração, cujo ativismo ganhou força a partir da publicação em 1961 da obra O Estranho no Ninho, de Ken Kessel. O filme teria uma versão para o cinema, premiada pelo Oscar em 1976, do diretor Milos Forman, protagonizada por Jack Nicholson.

Will Sampson e Jack Nicholson no filme Um Estranho no Ninho.



DO DOGMA AO ESTUDO DE CASO



Émile Durkhein, figura científica basilar da prevenção do suicídio.


  A Europa vivia o século do absinto, do culto romântico à morte pelo duelo e pelas aventuras poéticas autodestruidoras. O índice de suicídios no século XIX foi tão alto que despertaria  a curiosidade de artistas e intelectuais intrigados com o que via ao seus redor  e com os números sinistros que brotavam os jornais e revistas, extraídos dos registros oficiais. 

A morbidez exercia tanto fascínio no público leitor que no famoso guia “Como Conhecer Paris por cinco guinéus” também constava como um dos programas preferidos dos turistas a visita a La Morgue, um famoso necrotério da Cidade-Luz. As informações davam uma ideia da grande crise existencial que assolava o mundo ocidental. Era dos grandes atrativos para a massa  que  acorria para lá todos os dias para ver os corpos expostos publicamente em vitrines, a título de reconhecimento legal e satisfação da curiosidade mórbida. Dos expostos , os que mais chamavam a atenção eram o suicidas, cujas histórias recheadas de dramas e tristeza fascinavam os frequentadores.

“Em 1866, a Morgue recebeu um número recorde de defuntos: 733 – sendo 486 homens, 86 mulheres e 161 crianças. Dos 445 identificados, 285 tinham se suicidado atirando-se ao Sena e 36 enforcaram-se, seis tinham se matado com armas de fogo, seis tinham ateado fogo às vestes e outros tantos ingerido veneno, propositalmente ou não, 19 foram vítimas de homicídios e três tinham sido esfaqueados, três morreram de inanição e 82 de morte súbita, em plena rua. Grande parte do suicídios teve como causa o fracasso de especulações na Bolsa de Valores.”

 Os dois séculos da Revolução Industrial foram também os longos períodos de crescimento dos aglomerados urbanos  e  de aniquilamento humano pelas epidemias, pela fome e  pelas guerras mundiais. Essas transformações marcadas por tragédias em massa incluíam os flagelos das doenças mentais e do suicídio. O número deles cresceu tanto na Europa que chamou a atenção do sociólogo Émile Dukhein, o primeiro intelectual a dar um tratamento científico ao problema do suicídio, mergulhando em dados estatísticos, criando uma tipologia social da morte voluntária e suas possíveis ligações com a mudança de costumes e inúmeros outros fenômenos da aceleração urbana.  

A pesquisa de Durkhein, publicada em livro em 1897, além do conteúdo inédito e único no gênero por longos anos, tornou–se referência e modelo de pesquisa sociológica. Ele foi, portanto, uma figura basilar e fundadora da prevenção do suicídio. Seu estudo de caso  estimulou novas pesquisas e forneceu indicadores seguros e racionais na busca de conhecimento e de soluções que só seriam aplicados décadas depois da publicação do seus trabalhos.  

 A partir de Durkheim o suicídio é retirado do sistema obscuro das crenças dogmáticas e redimensionado em bases científicas, adquirindo também um aspecto humanista e mais compreensivo da autodestruição. A quebra de tabus e barreiras que envolviam o suicida e o seu entorno social foram gradualmente afastadas para dar lugar aos diversos meios de prevenção e mudança do comportamento autodestrutivo. A lei que proibia o sepultamento dos corpos dos suicidas em cemitérios públicos passou a ser vista como algo desumano e indicador de novas concepções e abordagens de ajuda aos sobreviventes dessas tragédias.  Esse paradigma condenatório do suicida era fruto de antigos costumes religiosos e também do rigor puritano-moralista. Nele estava incluída a punição dos familiares  obrigando-os a arcar com as dívidas, prejuízos e danos sociais causados pelo morto. 

O reverendo Chad Varah, da Igreja Anglicana, foi um conhecido exemplo dessa transição de costumes e posturas da sociedade diante do suicídio. Ele foi um protótipo de transição entre o sacerdote e terapeuta, dando uma dimensão moralmente nova e alternativa à tradicional criminalização dessas ocorrências.

 

SALVAÇÃO E PREVENÇÃO, DOIS PARADIGMAS



 

Chad Varah na sala de atendimento telefônico dos Samaritanos nos anos 1950.


O suicídio é uma das experiências mais antigas da humanidade. Já a sua prevenção é bem recente. Os relatos das culturas históricas revelam uma trajetória de violência e tragédias pessoais e familiares, mostrando o suicídio como um misto de rebeldia, delinquência e pecado religioso, naturalmente sempre como alvo condenação moral. 

Essa visão e abordagem milenar presente em todas as civilizações, somente sofreria uma mudança quando o suicídio passou a ser encarado de  outro ponto de vista: a visão compreensiva e científica, substituindo a visão escandalosa e condenatória.

A mudança histórica  aconteceu nas primeiras décadas do século XX, quando o suicídio se manteve como estatística da sociedade industrial e de massa do século anterior, propagado ao mesmo tempo como escândalo e curiosidade mórbida popular. Na Morgue de Paris, onde a exposição diária de cadáveres era atração popular e até turística, os mortos por suicídio eram alvo de destaque aos visitantes e da imprensa sensacionalista. O estudo sociológico de Durkheim, considerado pioneiro nesse segmento, foi produzido nesse contexto e até hoje serve de referência científica para a explicação e compreensão desse fenômeno.

 A diferença entre o século XIX e o século XX  é que neste último surgem as contracorrentes de resistência  contra o aniquilamento humano e também as primeiras ações diretas de prevenção. 

 Na Inglaterra, segundo o psicólogo Brian Mishara, já havia em 1907 um serviço específico de prevenção do suicídio, praticado pelo Exército da Salvação, com uma abordagem literalmente salvacionista. Essa prevenção diretiva e religiosa quebrou parcialmente o paradigma milenar da condenação, por ser uma oferta de ajuda condicionada à conversão religiosa. A ideia era salvar o suicida  salvando sua alma pelo método da vigilância e tentativa de conversão. Havia uma clara discordância do gesto suicida, mas também havia um certo relaxamento da atitude condenatória de quem oferecia ajuda. O suicida continuava sendo visto como alguém irresponsável e mentalmente incapaz.   A única mudança possível na sua conduta seria pela via moral e religiosa. 

A mudança total de paradigma só ocorreria no pós guerra, quando acontece um novo tipo de abordagem e oferta de ajuda feita por religiosos, porém sem conotação confessional e salvacionista. 

Na Igreja anglicana de Saint Stephen, no subúrbio de Londres, o jovem reverendo Edward Chad Varah consegue romper o modelo milenar condenatório quando a lei e o costume aplicados rigorosamente sobre os suicidas desde o século XVIII esbarrou em 1936 num caso aparentemente comum e banal. Uma menina de 13 anos cometeu suicídio, a família submeteu-se passivamente ao rigor da lei e do costume e foi sepultar o corpo da criança numa cova solitária no meio de uma floresta. Não era permitido sepultamento de suicidas nos chamados campos sagrados. Chad Varah fez o ofício fúnebre, acompanhou o sepultamento fora do perímetro urbano e, antes que o corpo fosse enterrado, pronunciou de forma dramática uma espécie de oração discursiva prometendo à menina que, a partir daquele instante, o assunto suicídio seria tratado de forma diferente. Chad tomara conhecimento de que a morte da menina tinha sido motivada por um motivo banal, mas que poderia também esconder algo mais grave. Tendo os primeiros sinais de menstruação, ela achou que tinha contraído uma doença venérea e se matou para fugir da condenação e das retaliações já conhecidas. 

Para romper o modelo tradicional, Chad teria que enfrentar a comunidade e seus superiores, que certamente não aceitariam essa mudança de ponto de vista nem de abordagem preventiva. Ao publicar um anúncio de jornal oferecendo ajuda aos suicidas de forma velada e subliminar, Chad percebeu que sua escolha não teria mais volta.  

“Estou disposto a ouvir pessoas sérias sobre assuntos sérios”.

 Essa propaganda preventiva teve uma repercussão inesperada: uma demanda intensa e diversificada de pessoas e problemas até então considerados “novos”. Por exemplo: homens que voltaram da guerra e tinha permanecido anos sem comunicação com suas esposas, ficavam desesperados ao encontrá-las casadas com outros homens e algumas até com filhos desses novos maridos. A maioria não resistia ao choque e se matava.  Outra novidade: a quantidade de atendimentos de natureza sexual era também intensa e desafiadora. Chad era psicólogo especializado nessas questões e conseguia estabelecer esses contatos com certa normalidade. 

Mas a quantidade de pacientes foi aumentando de forma absurda e atingiu um limite. Não dava mais conta dos horários. 


Placa comemorativa dos 50 anos dos Samaritanos, ofertada pela cidade de Londres.   


A solução foi pedir ajuda aos frequentadores da igreja para auxiliá-lo nos atendimentos, ofertando café, água, bolachas e controlando o fluxo da clientela. Ofertavam também atenção e gestos de solidariedade pelo olhar e gestos de generosidade. Não faziam atendimentos psicológicos,  porém alguns pacientes se sentiam satisfeitos com essa atenção prévia, iam embora e não voltavam mais. Um dos casos deixou Chad intrigado. Uma senhora chegou contando uma história muito complicada, tão difícil que  o reverendo pediu para que aguardasse até que concluísse os outros atendimentos, pois precisava desvendar esse caso. Nesse intervalo ela relatou a história umas três vezes a um voluntário, que era um simples motorista de ônibus. Ele pedia para repetir o relato, pois não compreendia nada. No meio da última versão ela deu um grito e mudou totalmente sua fisionomia. Tinha feito uma descoberta. Percebeu enquanto falava que vinha tendo uma atitude que não permitia entender o que se passava com ela. “Agora sei o que está acontecendo comigo. Estava cega.” Agradeceu ao voluntário e foi embora dizendo que se sentia bem e que agradecesse ao padre. 

Chad não gostou desse desdobramento, entretanto, também foi tomado por descoberta revolucionária: a ajuda de  pessoas comuns em atitude de escuta solidária pode ter um impacto e efeito positivo na prevenção do suicídio. Chad não conseguia trabalhar sozinho e desse dia em diante passou a treinar os voluntários para ouvir. Ouvir sem dar conselhos ou interpretações evasivas. Somente ouvir, de forma compreensiva. Na maioria dos treinamentos nem era necessário instruir. Os voluntários já demonstravam uma aptidão natural para a escuta dos sentimentos dos atendidos, sem se preocuparem na busca de soluções de problemas. Não era uma questão apenas de conhecimento e sim de postura de relação humana.

“Não somos solucionadores de problemas”, repetia Chad durante o treinamento.

Estava concluída a quebra total do paradigma. O suicídio e nenhum outro gesto ou condição de sofrimento psíquico seria mais visto de forma discordante, judiciosa ou preconceituosa.  Se aquela menina de 13 anos tivesse tido a oportunidade de contar sua história para alguém, de forma sigilosa e compreensiva, provavelmente ela não teria se matado. A realidade estava pronta para ser mudada.  

 


AS REVOLUÇÕES DA CALIFÓRNIA


A PREVENÇÃO CIENTÍFICA DO SPC 




Nos EUA, na década de 1950, surge em Los Angeles uma experiência científica de prevenção do suicídio desenvolvida por três pesquisadores que se tornariam referência mundial no assunto: Edwin Shneindman, Norman Farbarow e Robert Litman. Oriundos da cultura social corporativa das universidades, eles seriam responsáveis pelo desenvolvimento de metodologias consideradas revolucionárias na abordagem profissional da prevenção. 

Esse trabalho conjunto, realizado entre 1953 e 1962, resultaria mais tarde na criação do SPC-Suicide Prevention Center e que atualmente é denominado “Didi Hirsch’s Suicide Prevention Center”. Foram eles os criadores do método de Avaliação da Potencialidade Suicida, que fornecia dados básicos para o diagnóstico do suicida em potencial (spot), encaminhamento e tratamento de pacientes em crise suicida; e a Autópsia Psicológica, processo de investigação que combinava a análise fisiológica tradicional praticada pelos legistas com um detalhado histórico comportamental dos suicidas. 

A autópsia psicológica passou a ser utilizada como documentação essencial para composição de provas nos inquéritos policiais e consequentes processos judiciários. Fornecia também dados comportamentais detalhados que definiam a partir da investigação, por exemplo, se as mortes aconteciam por acidente, homicídio ou suicídio. A metodologia passou a ser utilizada nas investigações dos processos criminais, litígios trabalhistas e também nos conflitos comerciais entre empresas de seguro e seus clientes, quando estas se recusam pagar as apólices de seguro de vida, por entenderem que a morte do segurado não foi natural e sim provocada pela vítima; e também da parte oposta, que passou a defender a causa de que o suicida é um portador natural de doença mental e, portanto, isento de responsabilidade pela sua decisão. 

O SPC ficou famoso quando diagnosticou e anunciou publicamente o caso da atriz Marilyn Monroe,  apontando o suicídio como provável “Causa mortis”.

Na década de 1970 , a título de conhecimento compreensivo e também como ferramenta educativa de progressão de atuação voluntária, o CVV aplicava o método de avaliação do SPOT, suicida em potencial. A prática foi sendo abandonada nas décadas seguintes na medida em que os voluntários foram sendo iniciados em treinamentos de papéis (rolle-playing) e se aprofundando nas vivências reflexivas e de relação de ajuda propostas nas obras Carl Rogers . 

O SPC também foi pioneiro na organização do Survivors After Suicide (SAS) grupo terapêutico de sobreviventes do suicídio, criado em 1981, e que hoje se disseminou na maioria dos países que possuem núcleo de prevenção. 



CARL ROGERS E PESSOA COMO CENTRO


O Dr. Carl Rogers, psicólogo e psicoterapeuta.


No início de 1983 chegou ao Brasil, uma cópia de um documentário sobre os Samaritanos, como celebração dos 40 anos da entidade na Inglaterra. O filme foi exibido em uns dos primeiros encontros nacionais de dirigentes dos postos , porém a exibição não foi integral. Era um material de ótima qualidade técnica produzido pela BBC,  feito em película de cinema, pois os registros de vídeo em VHS ainda não tinham a qualidade digital de hoje. Naquele tempo  as melhores peças publicitárias para TV eram filmadas em películas cinematográficas. 

Entretanto o conteúdo não tinha a mesma qualidade desejada pelos voluntários brasileiros. Durante a rápida exibição dos trechos, Jacques Conchon, então diretor geral do CVV,  explicou porque o CVV não concordava com conteúdo e não recomendava a exibição aos voluntários sem que houvesse um esclarecimento.  Na reunião nacional dos postos em São Paulo ele foi direto ao ponto e mostrou que não se tratava de censura e sim uma crítica da postura diretiva dos atendentes ingleses. Alguns deles apareciam no filme direcionando o diálogo e dando conselhos aos atendidos. 

Jacques explicou que Os Samaritanos não conseguiram fazer valer a ideia e postura não diretiva entre os voluntários, que insistiam no paradigma diretivo e salvacionista. No Brasil a prática não diretiva já vinha sendo desenvolvida há alguns anos, porém em bases diferentes da experiência dos ingleses. Aqui  foi escolhido Carl Rogers para substituir o paradigma salvacionista e treinar os plantonistas nesse novo conceito de relação de ajuda.  

Chad Varah tinha desenvolvido uma experiência semelhante, alguns anos antes de Rogers, entretanto, parecia ser somente uma postura pessoal dele e alguns voluntários mais próximos. Na Inglaterra os voluntários eram muitos e dispersos em diversas regiões e também em suas práticas de abordagem. Os postos eram em sua maioria nas residências dos voluntários, sem nenhum tipo de unidade e controle institucional nesse sentido. Isso causava o relaxamento das regras na relação de ajuda. 

No Brasil, o modelo não diretivo foi implantado de maneira gradual por meio de persistentes estudos e treinamento práticos em pequenos grupos de encontro, os “rolle-playing”. Todos os esforços foram aplicados no cultivo dessa nova cultura, vista sempre de maneira filosófica , uma visão de mundo e uma proposta de vida. Ao contrário dos voluntários britânicos , os brasileiros ingressavam  e permaneciam na prevenção através de uma capacitação de alto teor não diretivo, sempre apresentada como uma ferramenta de proteção e respeito à individualidade do atendido e também ao trabalho anônimo dos atendentes. 

Diversos  livros sobre entrevista de ajuda passaram ser utilizados sistematicamente na formação dos plantonista atendentes. Era uma decisão pessoal adotar ou não essa postura e é claro que alguns voluntários se desviam da proposta para impor deias e opiniões, correndo os riscos de uma relação conflituosa e de dependência. Carl Rogers esteve no Brasil nos anos 70 para realizar um workshop sobre suas ideias e práticas, todas registradas em conhecidos livros como Terapia Centrada no Paciente e Tornar-se Pessoa. 

Mas o grande impacto das ideias e práticas rogerianas na prevenção do suicídio no Brasil acontece em 1979 quando publica um artigo denominado “A pessoa do Futuro”, no qual traça dois possíveis cenários para o destino da humanidade: a destruição pela catástrofe nuclear; e uma revolução pessoal e tecnológica a partir do novo paradigma digital e humanista do século XXI. Nele Rogers pinta as grandes mudanças a partir de experiências científicas e também as crises existenciais decorrentes dessas transformações, sobretudo para os jovens. O artigo de Rogers foi escrito em Palo Alto, quando Rogers já estava octogenário e refletia sobre as experiências de importantes descobertas de  cientistas de diversas área e  que foram relatadas pela jornalista Marilyn Ferguson no livro “The Brain Revolution” e também no boletim semanário “Brain/Mide Bulettim”. O texto despertou grande interesse entre os voluntários porque reforçava o sentido filosófico das práticas não diretivas e também de transformação pessoal.


PREVENÇÃOS E SIMBOLISMO EXISTENCIAL DO JAPÃO

Todos que se interessam pelo assunto e pesquisam o suicídio sabem que o Japão é ao mesmo tempo um país que possui índices altíssimos de suicídios, mas também é referência de enfrentamento e prevenção. É uma cultura milenar que possui um longo histórico de crises e superações e que encanta o mundo pele seu modo de vida repleto de tradições e também de pragmatismo. As crises existenciais, como todas as coisas importantes e essenciais, no Japão  tem nome e conceitos bem definidos, que contextualizam e explicam os seus fenômenos humanos e sociais. Nos outros lugares não é diferente, porém no país do sol nascente esses conceitos parecem ter um significado e um sentido mais complexo e profundo, quase sempre refletido na linguagem dos ideogramas. 

HARAKIRI

É o suicídio que limpa a honra dos derrotados e livra o morto e a família da vergonha do erro cometido. É um ritual militar da cultura dos samurais, que significa a última batalha de uma guerra perdida e que vai ser travada no campo de combate íntimo. Esse costume  antigo, da época dos xoguns (chefes tribais) permanece vivo até hoje no imaginário de milhões de japoneses de uma sociedade pó-industrial e mergulhada no universo cibernético. Prevenir  suicídio numa sociedade que acredita que o suicídio é uma gesto de coragem e honra é muito difícil e exige providências à altura desse tabu. Mesmo com esse forte e sedutor obstáculo cultural, uma outra parte da sociedade, que caminha no sentido oposto da tradição, confia e investe na ciência como ferramenta pragmática de solução. Quem frequenta as estações e trafega pelas linhas de trem nos horários noturnos no Japão vai perceber que muitas delas possuem uma iluminação diferente dos demais estabelecimentos públicos de grande circulação. As lâmpadas tem um tom azul acentuado, cuja intenção é provocar uma mudança de comportamento nos usuários  que estão fora de casa, indo ou voltando do trabalho u das atividades corriqueiras do movimento urbano. Nessas estações geralmente ocorrem tentativas e casos consumados de suicídio. O acesso às plataformas de embarque que antes eram livres hoje é bloqueado por corredores  e paredes grossas de vidro e que obrigam os passageiros a entrar diretamente no trem ou sair da mesma forma para as saídas. Os pesquisadores comportamentais, observando características fisiológicas e psicológicas, descobriram que a luz azul pode estimular a introspecção positiva e favorável ao instinto de conservação dos suicidas, levando-os a desistirem do ato. Vencida essa primeira etapa, entram em cena os serviços de socorro e atenção para os que pedem ajuda. Alguns simplesmente desistem e seguem seus destinos. A luz azul é uma forma de perguntar: “Você está querendo se matar? Quer ajuda nesse momento difícil? Não quer descansar um pouco mais?  É uma intervenção semelhante ao que acontece nas estações da Inglaterra nas quais se encontram placas de alerta recomendando uma aproximação rápida e até invasiva aos que estão sob suspeita suicida. As placas dizem: “Se você perceber algo estranho, faça a pergunta: Você está pensando em suicídio? Quer ajuda?

Estações de trem no Japão: isolamento em paredes de vidro e luz azul para bloquear pessoas em crise suicida. Imagem: Janne Moren (Flickr)."Em 2021, o país criou o Ministério da Solidão, um problema social que claramente precisa de alguma solução, e com a nomeação do gabinete pretendia mostrar que o Estado fará todo o possível para impedir seu progresso. De acordo com estudos, 15% dos idosos japoneses que moram sozinhos têm menos de uma conversa a cada duas semanas, e o mesmo acontece com 8,4% dos jovens e de meia-idade solteiros. Em um nível humano, estamos falando do país mais silencioso da Terra". M Dig. 


AOKIGAHARA E UBASUTE

É a floresta localizada a 115 quilômetros de Tokio e que tornou-se um refúgio macabro para suicidas. O nome significa “Mar de árvores”  cuja solidão natural  é diametralmente oposta à solidão urbana. Morrer num mar de árvores é diferente e de morrer sozinho num apartamento frio e minúsculo. Essa ideia de que é possível morrer em companhia de outros suicidas surgiu, segundo alguns pesquisadores, nos fóruns virtuais sobre suicídio, muito comuns no Japão. Antropólogos lembram que a Aokigahara foi durante séculos um lugar escolhido de  abandono de idosos durante os períodos de escassez de alimentos. Essa pratica ficou conhecida como “ubasute”. 

HIKIKOMORI

É o depressivo do quarto, que permanece por meses e até anos seguidos em quase completo isolamento social. O espaço doméstico funciona como um espaço existencial substituto para evitar o convívio consigo e com o outro. Com exceção das necessidades fisiológicas, tudo vai sendo protelado. Ao contrário das sociedade que internam seus depressivos em clínicas de tratamento, os hikikomori ficam em condição de sedentarismo doméstico. O fenômeno atinge milhares de jovens e também adultos, esgotados com as cobranças e imposições dos sistemas de convívio social, geralmente muito rigorosos e competitivos.

FOTUKO

É a recusa de ir para escola dos que não enxergam mais nenhum sentido em permanecer confinado numa sala de aula para aprender coisas que consideram também sem sentido. Essa crise evidente do sistema de ensino japonês, que treina para o mundo competitivo, provoca repugnância entre os jovens que não se sentem aptos nem dispostos a competir, derrotar ou perder nos jogos de aprendizagem e na disciplina marcial.  Muitos optavam pelo suicídio para fugir das pressões escolares. Agora eles aprenderam que não precisam estar nos ambientes e cenário que simulam situações onde somente os supostos vencedores são premiados. Eles sabem que muitos colegas que se tornam altamente competitivos a qualquer momento podem sucumbir diante de uma situação para a qual nunca foram preparados para superar.  Educadores mais compreensivos se dispuseram a acompanhar os jovens deslocados da escola e explorar com eles novos ambientes de aprendizagem. Os jornais formam um coro de admiração e também de denúncia e dizem que esses mestres emocionais que socorrem os fotuko estão salvando-os do suicídio.  

“ANATA NO IBASHO"

Em março, Koki Ozora, um estudante universitário de 21 anos, abriu uma linha direta de saúde mental 24 horas chamada Anata no Ibasho (“Um lugar para você”). Segundo ele, a linha direta, uma organização sem fins lucrativos financiada por doações privadas, recebe uma média de mais de 200 ligações por dia, e que a grande maioria das pessoas que ligam são mulheres.

“Elas perderam o emprego e precisam criar os filhos, mas não têm dinheiro. E então tentaram o suicídio”.

 

O estudante universitário Koki Ozora abriu uma linha direta de saúde mental 24 horas com voluntários em março, recebendo hoje mais de 200 ligações por dia.


A maioria das ligações ocorre durante a noite (das 22h às 4h). Os 600 voluntários da organização sem fins lucrativos vivem ao redor do mundo em diferentes fusos horários e estão acordados para atendê-las. Mas não há voluntários suficientes para acompanhar o volume de mensagens de texto também enviadas, disse Ozora. 

O grupo prioriza as mensagens mais urgentes, procurando palavras-chave como suicídio ou abuso sexual. Ozora explicou que eles respondem a 60% dos textos em cinco minutos, e os voluntários passam em média 40 minutos com cada pessoa. Anonimamente, por meio de mensagens online, as pessoas compartilham suas lutas mais difíceis. Ao contrário da maioria das linhas diretas de saúde mental no Japão, que aceitam pedidos por telefone, Ozora diz que muitas pessoas (especialmente os mais jovens) se sentem mais à vontade para pedir ajuda por mensagem de texto. Segundo ele, em abril as mensagens mais comuns eram de mães que estavam estressadas com as crianças, com algumas confessando pensamentos de matar seus próprios filhos. Hoje em dia, são comuns mensagens de mulheres sobre perdas de empregos e dificuldades financeiras, assim como aquelas relatando violência doméstica.

“Tenho recebido mensagens como ‘estou sendo estuprada pelo meu pai’ ou ‘meu marido tentou me matar’”, disse Ozora. “As mulheres enviam esse tipo de texto quase todos os dias. E está aumentando”. Ele acrescentou que o aumento nas mensagens se deve à pandemia. Antes, havia mais lugares para “fugir”, como escolas, escritórios ou casas de amigos.

Pressão sobre as crianças

O Japão é o único país do G-7 onde o suicídio é a principal forma de morte de jovens de 15 a 39 anos. Segundo o Ministério da Saúde, os suicídios entre menores de 20 anos aumentaram antes mesmo da Covid-19. Conforme as restrições à pandemia tiram as crianças da escola e de situações sociais, elas estão lidando com abusos, vidas familiares estressantes e pressões por causa de atrasos nos deveres de casa, disse Ozora. Há crianças de apenas cinco anos que enviaram mensagens para a linha direta.

O fechamento de escolas durante a pandemia no primeiro semestre contribuiu para o acúmulo de tarefas escolares em casa. Outro fato é que as crianças também têm menos liberdade para ver os amigos, o que também gera estresse, de acordo com Naho Morisaki, do Centro Nacional de Saúde e Desenvolvimento Infantil. O centro recentemente conduziu uma pesquisa na internet com mais de 8.700 pais e filhos e descobriu que 75% dos alunos japoneses apresentavam sinais de estresse devido à pandemia. Morisaki diz que acha que existe uma grande correlação entre a ansiedade das crianças e de seus pais. “As crianças que estão se automutilando têm estresse e não podem falar com a família porque provavelmente percebem que seus pais não são capazes de ouvi-los”

Estigma de resolver o problema

No Japão, ainda existe um estigma contra admitir a solidão e as dificuldades pessoais. Ozora disse que é comum mulheres e pais iniciarem a conversa com seu serviço com a frase: “Eu sei que é ruim pedir ajuda, mas posso conversar?”

A professora Ueda diz que a “vergonha” de falar sobre depressão muitas vezes impede as pessoas de tocar no tema.

“Não é algo que você fale em público, você não fala sobre isso com os amigos ou algo assim. E isso pode levar a um atraso na busca de ajuda, então temos um grande fator cultural potencial”.

Akari, a mãe do bebê prematuro, concorda. Ela já morou nos Estados Unidos, onde diz que parece mais fácil procurar ajuda. “Quando eu morava lá, conhecia pessoas que faziam terapia, e é algo até comum, mas no Japão é muito difícil”, contou.

Após a crise financeira da década de 1990, a taxa de suicídio no Japão atingiu um recorde em 2003, quando aproximadamente 34 mil pessoas tiraram suas próprias vidas. Especialistas falam que a vergonha e a ansiedade trazida pelas demissões, que atingia sobretudo homens na época, contribuíram para a depressão e aumentaram as taxas de suicídio. No início dos anos 2000, o governo japonês acelerou os investimentos e esforços em torno da prevenção do suicídio e apoio de sobreviventes, incluindo a aprovação da Lei Básica para Prevenção do Suicídio em 2006 para fornecer suporte às pessoas afetadas pelo problema.

Mesmo assim, tanto Ozora quanto Kobayashi dizem que não foi o suficiente: reduzir a taxa de suicídio exige que a sociedade japonesa mude.

“É vergonhoso para os outros saberem da sua fraqueza, então você esconde tudo, guarda dentro de si e segura as pontas”, disse Kobayashi. “Precisamos criar uma cultura em que seja normal mostrar suas fraquezas e tristezas”


GRUPOS DE RISCO E CORPORAÇÕES PROFISSIONAIS

 

Anúncio sobre as taxas de suicídio entre veteranos de guerra nos EUA.  “Perdemos cerca de 30.177 veteranos e militares pós-11 de setembro por suicídio. Isso tem que parar.  

O suicídio é uma ação essencialmente humana, porém em determinados grupos ele acontece de forma mais intensa, refletindo as características e circunstâncias que estão vivenciando. É o caso de atividades e corporações profissionais que estão mais expostas ao risco de autodestruição,  como os trabalhadores que lidam com substâncias altamente tóxicas na indústria e nas lavouras; os profissionais de saúde que têm acesso fácil à medicação farmacêutica e outras substâncias que alteram  violentamente o estado de consciência; e ainda os profissionais de segurança, civis e militares, que também possuem fácil acesso à armas de fogo  e explosivos. 

Assim como os grupos que sofrem alta rejeição social e familiar, os membros de corporações e organizações rígidas estão mais sujeitos ao suicídio do que os demais segmentos que aparecem nas estatísticas oficiais. Há uma tendência de suicídio em determinados grupos de maior risco, porém surgem formas específicas e direcionadas de prevenção. Esses grupos enfrentam os mesmos obstáculos para enfrentar o tabu e organizar meios e métodos de prevenção; entretanto, vem ocorrendo nesses mesmos segmentos uma quebra gradual do tabu e também a busca aberta de soluções de enfrentamento. 

FORÇAS ARMADAS E POLÍCIAS

Nos países que mantém uma política externa agressiva e constantes conflitos bélicos, o suicídio é recorrente entre os chamados veteranos de guerra, sobretudo entre os jovens soldados. Nos EUA já existem grupos específicos de prevenção que se forma para criar círculos de proteção e reequilíbrio dos seus pares.

 Nas polícias e forças armadas do Brasil já encontramos programas especialmente voltados para essa finalidade preventiva. A polícia militar de São Paulo, no final da década de 1990 foi uma das pioneiras ao criar movimento preventivo envolvendo seus membros e familiares  promovendo ações múltiplas de apoio e tratamento psicológico. Rapidamente houve uma resposta do Exército Brasileiro e da Policia Federal para empreender campanhas e programas de reabilitação dos membros atingidos por distúrbios mentais e ideação suicida. Essas três instituições passaram a ser referência para as demais corporações. 

No IX Simpósio Internacional de Prevenção do Suicídio, realizado em Belo Horizonte em 2018, membros especialistas do Exército e da Policia Federal fizeram relatos e explanações sobre como lidam com o suicídio em suas corporações. 

A Diretoria de Civis, Inativos, Pensionistas e Assistência Social (DCIPAS) promoveu, em 18 de junho de 2015, o I ENCONTRO SOBRE PREVENÇÃO AO SUICÍDIO, que contou com a participação da Diretoria de Saúde (DSau), Centro de Estudos do Pessoal (CEP), Diretoria de Saúde Mental do Distrito Federal, Centro de Valorização da Vida (CVV) e Polícia Militar do Estado de Minas Gerais. O Encontro, de caráter multidisciplinar, teve por objetivo conhecer e discutir a temática do suicídio, com vistas ao desenvolvimento de um programa de prevenção voltado para os militares, servidores civis e seus dependentes no âmbito do Comando do Exército.

MÉDICOS

“Os médicos se suicidam cinco vezes mais que a população geral”. 

A afirmação é da psiquiatra Alexandrina Meleiro, voluntária especialista do CVV e membro da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP). Ela também coordena a Comissão de Estudos e Prevenção de Suicídio da ABP e atua no Grupo de Atenção da Saúde Mental do Médico. Quando aborda o problema entre os colegas de profissão, ela lembra  que entre os médicos os mais vulneráveis estão na faixa etária de 35 a 50 anos. 

 Revista ISTO É - No livro (“O médico como paciente”, Lemos Editorial, 2001), a sra. afirma que o índice de suicídio entre médicos é cinco vezes maior que o geral. Por quê?

Alexandrina - Primeiro, pela característica estressante da profissão. Depois, a relação aparentemente racional com a morte leva muitos profissionais a tratarem com frieza a possibilidade de perder a vida. O mais importante, no entanto, é a facilidade dos meios - o médico sabe como se matar e quase sempre não erra. A coisa só deixa de funcionar quando o objetivo não era o de anular a própria vida. Acompanhei o caso de um psiquiatra que entrou em depressão e pediu à colega uma receita com um remédio forte, alegando que o pai estava muito doente. Saiu do hospital às oito e meia da manhã e, às dez, recebemos a notícia de que ele estava morto. Planejou tudo e tomou a caixa inteira. Sabia que aquilo matava. Recentemente, outro psiquiatra, de um hospital famoso de São Paulo, mergulhado em um quadro de depressão severa, distribuiu seus bens entre a ex-mulher, a mulher e os filhos com uma semana de antecedência. Foi para o sítio e se matou com medicamentos. No Brasil, o método mais usado para suicídio é a asfixia, por enforcamento ou através de afogamento. Entre os médicos, o uso de medicamento ocupa o primeiro lugar, seguido das armas de fogo. Eles sabem o que mata. Não vou citar o nome de medicamentos. No limite, isso poderia ajudar alguém a tentar fazer uma besteira”.

Ao coordenar a edição de um manual de psiquiatria, Alexandrina Meleiro incluiu um capítulo específico sobre o suicídio, reunindo relatos médico-científico e também um artigo, escritos por três voluntários, sobre a experiência do CVV-Centro de Valorização da Vida. 

EDUCADORES

O suicídio entre profissionais da educação também está relacionado com a saúde mental e as condições estressantes do cotidiano das escolas. Os altos índices de licenças de afastamento causados pelo stress da função docente e geradores diversos distúrbios psicológicos que antecedem o suicídio confirma essa realidade em todos os países, onde a crise da educação sistêmica e industrial colide com a nova cultura informacional. Quanto maior a presença da educação de massa, maior a incapacidade de conviver e resolver esse confronto nos espaços escolares, sobretudo nas escolas públicas onde o cenário dos problemas sociais são mais presentes e visíveis. 

Durante e após pandemia alguns estados e municípios passaram a fazer pesquisa entre professores, gestores, funcionários e alunos para coletar informações sobre o impacto do isolamento- nesse caso de quase dois anos letivos- na saúde mental da comunidade escolar. Como já era esperado, diante de todos os fatores sociais negativos surgidos nesse período, as perdas, os relatos de crises pessoais, as tentativas e casos consumados de suicídio foram em quantidade bem superiores aos registrados antes da pandemia. Na Inglaterra já foi publicada uma pesquisa sobre o suicídio entre professores das séries iniciais, considerando a profissão como uma das mais estressantes e como fator de risco.

GÊNERO

PESSOAS LGBT+TÊM 6 VEZES MAIS CHANCE DE SUICÍDIO

De acordo com a revista científica americana Pediatrics, quando convivem em ambientes hostis à sua sexualidade o risco de suicídio é de 20%

Jaqueline Fernandes. 10/09/2021. Revista Metrópoles. 

A luta é urgente. Os efeitos da busca incansável pela inclusão e pelo fim do preconceito podem resultar em traumas profundos e fazem com que o público LGBTQIA+ seja mais suscetível ao suicídio. 

Dados da revista científica americana Pediatrics revelam que 62,5% deles já pensaram em suicídio e têm seis vezes mais chance de tirar a própria vida em relação aos heterossexuais.

O estudo também mostra que eles correm risco 20% maior de suicídio quando convivem em ambientes hostis à sua orientação sexual ou identidade de gênero.

Para o antropólogo e fundador do Grupo Gay da Bahia (GGB), Luiz Mott, a prática suicida de pessoas LGBTQIA+ é sempre decorrente do preconceito.

“Eu considero que todo LGBT que se mata tem sua orientação sexual ou identidade de gênero como um fator se não determinante exclusivo para a prática. Porque a nossa sociedade é extremamente intolerante, homofóbica e faz com que esse grupo se sinta sempre olhado, perseguido e discriminado”, afirma Mott.

NAS PRISÕES

O sistema carcerário tem no suicídio um dos seus pontos mais críticos e frágeis, funcionando simultaneamente como ferramenta de opressão (os presos são obrigados a se matarem como forma de punição imposta por outros detentos), válvula de escape e ponto de fuga existencial. Por outro lado, essa realidade desumana ensina que problema não pode ser tratado de forma simplista,  repressiva e punitiva, exigindo intervenções preventivas à altura da sua complexidade.


Morte de detentos põe em xeque 'kit antissuicídio' em prisões da França. Kits estão entre as ações adotadas pela França para coibir alto número de suicídios em prisões


Daniela Fernandes -De Paris para a BBC Brasil- 22 de setembro, 2011

Um detento de 23 anos se enforcou em sua cela na prisão da Santé, em Paris, utilizando o pijama de papel do chamado "kit antissuícidio", distribuído aos presos considerados psicologicamente frágeis e que correm risco de pôr fim às suas vidas. O caso, ocorrido na madrugada da última segunda-feira, ganhou repercussão na França porque é a segunda vez, no período de apenas cinco meses, que um preso se mata utilizando justamente material do kit antissuicídio. Este inclui, além do pijama de papel, descartável após usado apenas uma vez, um colchão à prova de fogo e lençóis e cobertores com tecidos especiais que não podem ser rasgados.

Como no caso ocorrido nesta semana, um outro detento, também de 23 anos, havia se enforcado em abril passado em um presídio no Havre, no oeste da França, amarrando o pijama de papel nas grades de sua cela. Esses kits de proteção fazem parte de uma série de medidas implantadas pelo governo em 2009 para combater o crescente número de suicídios nas prisões do país.

A França possui uma das mais altas taxas de suicídio em presídios da Europa. Em 2009, foram 115 mortes, quase uma a cada três dias. Segundo o Ministério da Justiça, mais de 1,1 mil kits antissuicídio foram distribuídos nos últimos dois anos. Mas, apenas no primeiro semestre deste ano, 58 condenados se mataram nas prisões francesas. O número é ligeiramente inferior ao registrado no mesmo período de 2010, de 61 presos, de acordo com dados oficiais.

Eficácia. As mortes dos detentos que utilizavam o kit antissuicídio despertaram críticas sobre a eficácia do sistema.

"Todas as medidas preconizadas para que os detentos possam se sentir melhor na prisão, como o desenvolvimento de relações sociais e com a família, não são levadas em conta e por isso as estatísticas não mudam", diz François Bès, responsável por questões de saúde do Observatório Internacional de Prisões.

"Não adianta apenas tentar obrigar as pessoas a não morrerem", afirma.

"Esses kits não são eficazes e ainda por cima eles são utilizados para se suicidar. Eles não devem mais ser distribuídos", diz a responsável do sindicato CGT dos agentes carcerários, Céline Verzelletti.

"Com cada vez menos funcionários e um número maior de presos, passamos nosso tempo a abrir e fechar portas e não temos tempo de analisar o comportamento dos detentos e passar informações para o pessoal da área médica", afirma Pascal Rossignol, agente carcerário e secretário-geral de outro sindicato.

Autoridades do Ministério da Justiça ouvidas pela imprensa local disseram que os kits são úteis para reduzir o risco de suicídio, apesar de nem sempre conseguirem evitá-lo.



A EXPERIÊNCIA DA PREVENÇÃO NO BRASIL


Nos Caminhos da Amizade (anos 1980); Uma Proposta de Vida (anos 1990) e CVV , Como Vai Vocês: 50 Anos ouvindo pessoas (2012)


DOR E ANIQUILAMENTO 

No final da década de 1950 o mundo havia entrado na Era Espacial e vivia o auge da Guerra Fria, um universo político obscuro de espionagem e segredos científicos cujo uso político-militar de domínio planetário resultaria na oferta de tecnologias que iriam abalar os alicerces da produção industrial e mudar  profundamente as relações humanas. 

Todos vislumbravam grandes mudanças, porém sob o risco de uma catástrofe nuclear que a qualquer momento poderia varrer a humanidade do planeta. As duas superpotências possuíam juntas a capacidade de destruir a Terra 20 vezes, espalhando ogivas atômicas em vários pontos dos cincos continentes. 

De um lado a perspectiva de grande explorações e descobertas na conquista do Espaço; e de outro a real possibilidade de uma hecatombe. Foram 40 anos de intensos esforços para evitar  um confronto entre o comunismo e o capitalismo, ambos disputando espaços e áreas de influência e, ao mesmo, tendo alterando os percurso da pesquisas e das invenções tecnológicas. 

Assim como as duas Grandes Guerras haviam presenteado a humanidade com o radar e penicilina, a Guerra Fria proporcionou ao mundo grandes avanços da eletrônica, as UTIs hospitalares, o computador e finalmente a internet. Apesar da popularização dos recursos científicos, como por exemplo o laser, os aviões a jato e as vacinas, os seres humanos ainda sofriam seriamente com os distúrbios  de comportamento. 

Os avanços da medicina fisiológica não foram os mesmos no campo da psicossomática.  Os mecanismos de consumo de massa disponibilizaram e facilitaram cada vez mais nas últimas seis décadas o acesso ao tabagismo, ao álcool, entorpecentes e toda a sorte de alimentos processados, abusivamente compostos de sódio, gorduras saturadas e de açúcar. A explosão  dessa cultura consumista de remédios, alucinógenos e alimentos não saudáveis e viciantes revelava um lado mental obscuro de fuga e autodestruição da sociedade contemporânea. 

Foi o século que Edgard Morim definiu como período de servidão industrial, degeneração e aniquilamento da humanidade. No início dos anos 1960 a saúde mental e o suicídio continuavam sendo os destaques das tragédias humanas, nas pequenas e nas grandes cidades. Praticamente tudo na experiência social humana já havia sido atingido pelos avanços científicos e pelas mudanças tecnológicas ou vislumbravam boas perspectivas de transformações. 

Todas as áreas curativas tiveram progresso, menos na saúde mental, nos distúrbios comportamentais e muito menos ainda na questão do suicídio. Os manicômios e as delegacias de polícia, com vinha sendo há mais de um século, continuaram sendo os ambientes e as ferramentas mais indicadas para lidar com esses problemas.  As internações e tratamentos manicomiais aumentaram assustadoramente. 

Os surtos coletivos de suicídios passaram a ser comuns nas grandes metrópoles , estimulados pelos noticiários sensacionalistas, resultando nos conhecidos efeitos de contágios. Artistas e pessoas de vida livre continuaram sendo alvo de prisões punições nos sistemas de internação psiquiátrica, tornando essa importante modalidade médica e educativa focos de desvios e abusos de todos os tipos, inclusive ideológicos. 

Enfim, a vida moderna e pós-industrial, com a repressão do indivíduo, a exaltação do sujeito coletivo e a consequente negação da pessoa, seguia sua rotina de sucessivas novidades futuristas, porém as soluções para o sofrimento psíquico continuavam estagnadas à espera de soluções que não fossem as fugas químicas, o isolamento desumano dos alienados e principalmente o trágico caminho dos suicídios. 

ESPERANÇA E RESISTÊNCIA

Mas o destino havia reservado uma possibilidade de mudança nessa trajetória infeliz dos atormentados,  tristes e  angustiados. Ela já havia dado os primeiros passos em Londres no início dos anos 1950 e também aconteceria na década seguinte, simultaneamente nas principais metrópoles do mundo contemporâneo.  

No início dos anos 1960 um grupo de aprendizes de uma escola religiosa paulistana se tornou, como todos os demais que surgiriam pelo mundo, um foco ou contracorrente de resistência ao aniquilamento humano. Eles fundariam a Campanha de Valorização da Vida, cujo propósito de combater o suicídio e oferecer uma nova proposta existencial às pessoas e que os livrariam da autodestruição. Entre eles se destacou-se como líder do grupo um  jovem de 17 anos. Era Jacques André Conchon, nascido no Recife que, como seus colegas de turma,  tomou conhecimento das tragédias suicidas ocorridas no início do século em São Paulo, onde residia,  e também no Rio de Janeiro, cidade onde havia morado boa parte da sua infância e adolescência. Ele também frequentava as reuniões de uma mocidade espírita na rua das Carmelitas, na Sé, onde tinha vários amigos que atuavam nesse movimento religioso. Um deles, artista ilustrador, era o autor das capas dos livros de Chico Xavier e costumeiramente ia até Uberaba para que o médium visse e aprovasse seus trabalhos. Numa dessas viagens, Jacques o acompanhou apenas por curiosidade e diversão turística. Se hospedaram no hotel onde fariam o pernoite para, no dia seguinte, apresentar os desenhos. Ao desfazer as malas, o ilustrador constatou que havia esquecido as capas, algumas das quais precisava de aprovação urgente e enviar para a impressão. Voltou para buscar os desenhos enquanto Jacques esperaria em Uberaba. 

No mesmo dia, Jacques foi procurado no hotel por alguém que trazia um recado do médium para que se apresentasse em sua casa, pois tinha algo muito importante para lhe dizer. Jacques não entendeu muito bem o que estava acontecendo nem questionou como Chico havia ficado sabendo da sua presença na cidade. Talvez o amigo tivesse ligado para avisar ou então alguém do próprio hotel. Compareceu à casa do médium , como havia sido solicitado. E foi nesse intervalo do retorno do amigo a São Paulo que Jacques ficou sabendo da história de Francisca Júlia da Silva, de Manoel Batista Cepellos e da família do senador Peixoto Gomide. Antigas peças de um quebra-cabeças que agora começavam a ser juntadas. O jovem voltou de Uberaba convencido de que tinha um trabalho a ser desenvolvido, ideia que seria fortemente estimulada por um bilhete enviado a ele pelo Coronel Edgard Armond, insinuando que havia chegado o momento de cumprir sua tarefa. Armond era secretário geral da Federação Espírita do Estado de São Paulo–FEESP. Educador iniciático,  havia transformado a FEESP em uma grande escola de formação de voluntários por meio da Escola de Aprendizes do Evangelho e da Fraternidade dos Discípulo de Jesus-FDJ, pelas quais passaram e ingressaram importantes ativistas do movimento espírita paulista. Foi da 7ª turma dessa Escola que surgiram os primeiros voluntários do CVV.



 Francisca Júlia da Silva e Manuel Batista Cepellos, inspiradores do CVV.


DA AÇÃO RELIGIOSA À PREVENÇÃO HUMANISTA

Não há conhecimento de registros sobre grupos religiosos e científicos atuando específica e abertamente como agentes de prevenção do suicídio no Brasil antes de 1961. As primeiras abordagens apareceram em livros doutrinários espíritas, revelando um vivo interesse e inclinação desse segmento pelo assunto. As obras de Allan Kardec, do século XIX, como já expomos sobre os precursores, possuem relatos sobre o tema e a Revue Spirite publicou uma longa dissertação e cartas associando a doutrina como ferramenta de prevenção. Essa referência despertou em muitos grupos e escritores-médiuns  o interesse em abordagens literárias sobre o tema, criando um movimento voltado para esse fim.  Isso não significa que outros segmentos religiosos não tenham tido interesse pela prevenção. Sempre tiveram, porém nem sempre encontraram em seus núcleos ou fora deles a liberdade e oportunidade de atuação. 

Em 1926, Yvone A. Pereira escreveu Memórias de um Suicida, relato espiritual curioso e impressionante sobre as experiências pós-morte dos suicidas. A obra permaneceu guardada por 32 anos e finalmente foi publicada em 1958, sendo recebida pelo público –mesmo entre os espíritas - com um misto de curiosidade, preconceito e temor.     

Em 1932  Chico Xavier publicou o livro “Parnaso Além Túmulo”, sua primeira obra mediúnica – uma imitação poética de O Livros dos Espíritos em formato de versos, dando voz aos autores mortos, na mesma sequência temática organizada por Allan Kardec em 1857. No capítulo que trata sobre o suicídio, Chico dá voz a Manoel Batista Cepellos, que confessa o suicídio em versos comovedores. 

Em 1955, passados 23 anos do Parnaso e quase meio século após a tragédia da família Peixoto Gomide (na qual esteve envolvido o poeta Cepelos) , Chico Xavier volta a tocar no assunto e registra em uma gravação fonográfica  uma pequena e rápida dissertação da poetisa parnasiana de Francisca Júlia da Silva, também lamentando o seu suicídio e seu propósito de trabalhar  pela causa da prevenção. Esta é a raiz mais remota que temos conhecimento sobre as origens da prevenção do suicídio no Brasil, segundo relatos dos fundadores do CVV e alguns voluntários  pioneiros. No Brasil o voluntariado da prevenção teve essa marcante conotação religiosa nos seus primeiros anos, não por causa do trabalho em si, mas pelo fato dos primeiros militantes terem vínculos com instituições desse perfil. Passando essa fase primitiva do idealismo religioso, a prevenção foi adquirindo um perfil diferente, por meio do contato com obras da psicologia humanista. Depois de doze anos funcionando em caráter experimental e em bases religiosas, entre 1962 e 1974, o CVV  abandonou  essa concepção e passou a compartilhar seu quadro de voluntários com pessoas de outros segmentos e também com os não religiosos, fazendo dessa bandeira humanista o seu novo ideal de prevenção.  A mesma mudança já havia ocorrido na Inglaterra, quando Os Samaritanos abandonaram a bandeira da Igreja Anglicana para voltar-se ao humanismo porque Chad Varah estava convicto que a  religião e seus dogmas colidiam frontalmente com a prevenção do suicídio. 

 A AÇÃO SALVACIONISTA 

Fundado em 1961 por um grupo de ativistas religiosos  em São Paulo, o CVV foi inicialmente denominado Campanha de Valorização da Vida, ação humanitária inspirada no “Samaritans” de Londres. Cabe ressaltar que foi somente uma inspiração superficial, pois o contato e troca de impressões e experiências entre as duas entidades somente ocorreria cinco anos depois da fundação do CVV. Nesse primeiro ano o trabalho também foi experimental  e passou por diversas etapas de superação funcional. Eram leigos que compensavam a falta de conhecimento e experiência pela oferta de atenção em momentos em que os suicidas não encontravam profissionais disponíveis para o atendimento.    Eles pretendiam reproduzir aqui o mesmo tipo de atendimento aos que ligavam para um número telefônico de fácil memorização pedindo ajuda para livrá-los da solidão, da tristeza e das angústias que poderiam levar ao suicídio. Com uma sala e um telefone emprestados pela uma entidade religiosa que frequentavam, eles iniciaram o trabalho logo depois de realizarem um curso improvisado no qual aprenderam noções de relações humanas, aspectos da personalidade e também de primeiros-socorros. Organizaram em seguida uma escala de plantões e ocuparam os horários de atendimento por sorteio entre os poucos participantes que sobraram após o curso. Alguns tempo depois, para  que o trabalho ganhasse uma identidade que lembrasse algo mais permanente,  o serviço  passou a se chamar Centro de Valorização da Vida, ganhando também uma sisuda logomarca em preto e branco com a sigla CVV, ilustrada por um clássico salva-vidas contra afogamentos. 

A ideia inicial do grupo era predominantemente religiosa-salvacionista e entre eles estabeleceu-se um pacto de persistência e  busca de estratégias que pudessem atrair, envolver e finalmente dissuadir o atendido da ideação suicida. Consideravam-se membros de uma fraternidade espiritual denominada Legião dos Servos de Maria, crendo que a ela se ligavam todos os que sucumbiram ao suicídio e , reeducados pelo tempo, adquiriam responsabilidade e compromisso com a prevenção e amparo aos semelhantes infelizes. Tudo como haviam aprendido nas linhas do livro escrito e publicado por Yvone A. Pereira, nos anos 1950. A autora do livro os considerava parte desse relato. Como nessa época o CVV era um grupo de orientação espírita, as práticas doutrinárias durante os atendimentos eram comuns. Demover os suicidas das suas intenções com orações,  argumentos sobre a sobrevivência do Espírito e alertar sobre as complicações do suicídio no mundo espiritual fazia parte das ações dos primeiros voluntários. Uma das estratégias do Grupo Batista Cepelos – composto por plantonistas médiuns - era envolver e proteger o suicida em potencial localizando, invocando e doutrinando o Espírito obsessor que influía negativamente sobre o atendido. Afastado este que era considerado o principal obstáculo, partia-se para outra etapa, que era a abordagem assistencialista, diagnosticando a causa do problema que atormentava a vítima e buscando possíveis soluções para aliviá-lo: emprego,  moradia e tratamento especializado. Quando eram casos sentimentais as coisas se complicavam. Não havia solução para um amor perdido a não ser arrumar um outro amor, dizia Yvone Pereira, reproduzindo a voz de um de seus mentores. Nesses casos a perda para o suicídio era quase certa e desoladora para quem atuava nessa perspectiva dual e mística de salvação e perdição. Para complicar a situação deste enfoque intervencionista da ajuda, era muito comum os atendidos se matarem durante as ligações telefônicas, causando forte impacto psicológico nos voluntários. Não era trote ou qualquer tipo de simulação, pois os suicidas revelavam seus nomes, endereços e não raro os locais onde ocorriam os sinistros.  Foi um período muito difícil para o grupo, abalado por essas situações assustadoras. O suicídio era tabu e assunto desprezado por todos os segmentos, incluindo os que deveriam enxergá-lo de forma humanitária. Quase ninguém queria saber de suicídio e muito menos de quem cometia o ato. Era somente mais um assunto de notícia estrondosa dos jornais e programas de conteúdos sensacionalistas de rádio e TV. 

ENTIDADES AFINS NA PREVENÇÃO

Os grupos religiosos perderam sua presença doutrinária na prevenção do suicídio no CVV, porém o espírito voluntário e solidário que eles carregam como tradição humanitária ainda seria muito útil num outro momento emblemático  e estratégico. 

 Nas raízes da prevenção do suicídio no Brasil existe uma vertente histórica que, em um determinado momento e contexto, se confunde com a trajetória da Aliança Espírita Evangélica, entidade religiosa nova que surgiu a partir de um grupo que se desligou da Federação Espírita do Estado de São Paulo-FEESP.   Em 1973, já bem idoso, o Coronel Edgard Armond,  conhecido como “Comandante”, também tinha se afastado da FEESP onde havia servido por quase quarenta anos como secretário geral, tendo ali implantado uma intensa transformação organizacional, marcada pela educação iniciática e formação de voluntários para atuar como operadores de trabalhos espirituais e sociais. Armond foi quem havia sugerido em 1961 a criação do CVV em 1961. 

Essa escola voluntária composta de vários eventos educativos práticos, tinha como conclusão, após três anos de aulas e atividades práticas, a tarefa de fundar um novo núcleo social capaz de multiplicar novas células.  Insatisfeitos com os rumos da entidade-mãe, sobretudo com as mudanças ocorridas na natureza das atividades educativas implantadas anteriormente, alguns voluntários procuraram  Armond  para relatar aquilo que eles consideravam desvios dos objetivos original dos cursos e dos trabalhos, solicitando a ele um parecer sobre a fundação de uma nova frente de trabalho, independente da FEESP. Foram prontamente atendidos  e orientados a empreender com vistas à ampliação dessa atividade renovadora. 

A nova entidade começou pequena, mas já com o propósito de expansão, organizando um programa de funcionamento, um órgão de comunicação - boletim impresso O Trevo - e também uma editora, para publicar e distribuir livros e apostilas. O grupo de voluntários que dirigia a Editora Aliança publicava na mesma época o primitivo Boletim do CVV (Mova-Montepio da Valorização) e publicaria também, alguns anos mais tarde  a Introdução ao CVV-Samaritanos, apostila contendo as aulas para seleção de plantonistas  e  instruções para implantação e funcionamentos de novos postos. Foi esta editora que publicou também os  livros históricos relatando o trabalho de prevenção realizado pelo CVV: “Nos Caminhos da Amizade”, “CVV, uma Proposta de Vida”; e “CVV-50 Anos Ouvindo Pessoas”. 

Nesse grupo fundador da Aliança estavam alguns alunos, entre outros, da histórica turma da Escola de Aprendizes do Evangelho que havia fundado o CVV em 1961, cujo primeiro posto funcionou em uma  sala e com telefone emprestados pela FEESP.  Esses alunos também atuavam na diretoria da Clínica Francisca Júlia, em São José dos Campos, fundada em 1972.  Em São José dos Campos eles também abriram uma casa espírita denominada Centro Espírita Aprendizes do Evangelho-CEAE.  Meses antes eles já tinham fundado em São Paulo o CEAE da rua Genebra, na Bela Vista. 

Nesse período de transformações, nessas três diferentes entidades, bem como nas suas diretorias, encontramos os mesmos voluntários atuando em diferentes atividades assistenciais. Nessa época o CVV ainda era espírita. Em 1973 esse grupo, inspirado nas orientações de Edgard Armond, fundou a Aliança Espírita Evangélica, cujas experiências funcionais novas eram basicamente testadas no CEAE da rua Genebra. 

Anos mais tarde, em 1976, ocorreria nesse centro o histórico encontro de Chad Varah com os voluntários da Aliança e de alguns centros espíritas recém formados e filiados. Essa visita de Chad Varah, fundador dos Samaritanos de Londres,  à rua Genebra 172, resultou da fusão das siglas CVV-Samaritanos e no primeiro movimento de expansão de postos no Brasil e na América Latina. Vários postos do CVV, em diversas cidades, na Capital, no ABC, no interior e no litoral, foram fundados com a colaboração de voluntários de casas espíritas da Aliança, como havia acontecido com o CEAE Genebra. Uma das condições exigidas por Chad Varah – e que já vinha sendo praticada pelo CVV desde 1974, é que o CVV-Samaritanos não tivesse nenhum vínculo ou prática doutrinária religiosa. Essa neutralidade foi uma estratégia fundamental para a expansão da prevenção do suicídio em todo o mundo, organizada pelo Befrienders International. 

O DNA SAMARITANO

Como todo grupo social, o CVV teve a sua identidade construída pela visão de mundo dos seus fundadores e depois gradualmente transformada pela diversidade cosmopolita dos seus novos membros. Foi assim que a ideia de caridade cristã presente nas raízes dos pioneiros foi assumindo com o passar do tempo o conceito antropológico de alteridade – do latim “alter” (outro). Alteridade ou outridade é dar significado e reconhecimento do outro pela sua diferença, sem que haja juízo de valor. Esse esforço é provocado pelo contato com os semelhantes no momento em que ocorre a percepção das diferenças de hábitos e costumes. Quando a alteridade também se torna um hábito espontâneo, pelo esforço repetitivo, ocorre naturalmente o comportamento que nós buscamos como  habilidade permanente: nos colocarmos no lugar do outro, termo que a psicologia, ao observar os gestos de repetição da outridade,  definiu como empatia. Disso tudo resultou  também  a nossa etnologia, a qual demos o nome de “proposta de vida”, cuja ideia de plenitude está fundada na concepção de que podemos nos mudar permanentemente e também mudar o mundo ouvindo e respeitando as pessoas.

Desde a sua fundação o CVV teve diferentes siglas e marcas públicas de apoio emocional e prevenção do suicídio: a Campanha de Valorização da Vida e o  CVV- Centro de Valorização da Vida, nos anos 1960 e início dos anos 70; o CVV-Samaritanos, no final dos anos 70 e início dos anos 80; e finalmente o Programa CVV, a partir dos anos 1990.  De todas essas siglas, a que mais teve e ainda tem lugar na memória dos brasileiros é a CVV-Samaritanos, fruto da unificação do CVV com a conhecida sigla dos Samaritanos da Inglaterra e da longa amizade entre Jacques André Conchon e o Reverendo Edward Chad Varah. Mesmo depois de restaurar a segunda marca com a intenção de neutralizar o aspecto de exclusividade religiosa do trabalho (por recomendação do próprio Chad), o CVV mantém até hoje a marca “Posto Samaritano”, utilizada para identificar núcleos de prevenção que ainda não conseguem manter a estrutura funcional completa dos postos tradicionais, isto é, oferta integral de horários de atendimento. Discutiu-se muito entre nós sobre a manutenção da expressão “samaritano” no aspecto histórico e ideológico e chegamos à conclusão de que todas religiões e filosofias possuem em suas raízes um aspecto humanitário que extrapola e que até se volta contra o próprio dogmatismo religioso e filosófico, para atender as necessidades de quem é e principalmente de quem não é adepto das suas crenças. 

Isso fica bem claro na parábola do Bom Samaritano,  indiscutivelmente uma autocrítica ao sectarismo religioso. O povo da Samaria era  um grupo desprezado e considerado impuro pelos judeus ortodoxos, desprezo esse que é colocado em cheque pela parábola de Jesus. A história do bom samaritano teve o mesmo papel na relação entre cristãos e fariseus e se universalizou por meio do catolicismo durante os movimentos de expansão dos povos europeus para outros continentes. É, portanto, uma ideia de significado não religioso e sim humanitário e universal.   Todas as religiões e filosofias tem o seu “bom samaritano”. 

Nas suas visitas ao Brasil, Chad Varah fazia questão de explicar essa universalidade da parábola exatamente para desarmar os corações exclusivistas e preconceituosos, religiosos ou não. Tinha um jeito informal e cômico de narrar o episódio do encontro entre o samaritano e o viajante  que foi assaltado por malfeitores. Enfatizava na sua fala a dualidade do famoso personagem, mostrando-o dividido entre o costume e a consciência, ora se inclinando para ajudar, ora declinando com desculpas e pretextos  para justificar a sua recusa e tentativa de omissão. No relato de Chad, o samaritano passa, vê o viajante caído e simplesmente vai embora, negando que tenha visto tal cena e que aquilo não era da sua responsabilidade. Mas ele retorna ao local, reclamando do tempo que estava perdendo  e toma todas as providências para o a vítima fosse amparada, pois, olhando ao redor, não enxergou ninguém que pudesse fazer o que deveria ser feito. É por isso que até hoje o CVV se considera mais samaritano do que cristão. 

 A FUSÃO E O PROGRAMA CVV SAMARITANOS


Talk-show conduzido por Jacques Conchon entrevistando Chad Varah em 1976.

Edição de 1977 de O Trevo  registrando a visita do Rev. Chad Varah, da Igreja Anglicana e fundador do Samaritans de Londres, ao Centro Espírita Aprendizes do Evangelho, na rua Genebra 172, em São Paulo. Desse encontro com voluntários da Aliança Espírita Evangélica resultou a fusão das siglas CVV-Samaritanos, que impulsionou a expansão da prevenção do suicídio no Brasil e na América latina. Chad já conhecia o CVV desde 1968, quadro travou amizade, na Inglaterra, com o jovem brasileiro Jacques André Conchon. Ao perceber as semelhanças de ações, documentos, anúncios e até formulários entre as duas organizações, Chad atribuiu esse fato a intenção divina. Apesar disso, o CVV-Samaritanos não adotavam a prática religiosa doutrinária em seus serviços, abrindo-se para voluntários de todas religiões e filosofias, incluindo os ateus. O CVV atual é parceiro dos Samaritans no Befrienders Worldwide. No encontro Chad Varah ganhou de presente dos voluntários um exemplar do evangelho espírita em francês.


Convidados do talk-show reunidos no CEAE da rua Genebra, 172. Em primeiro plano,, ao centro, o jornalista Valentim Lorenzetti, diretor de comunicação relações públicas do Programa CVV-Samaritanos.

Chad Varah em Santos,1982. Questionado pela imprensa sobre conflito com Argentina, falava rápido sobre a cidadania britânica escolhida por voto livre nas ilhas Malvinas, alfinetando as ditaduras, e logo retomava assunto da sua missão: a expansão de postos do CVV-Samaritanos. Na foto as voluntárias Jacy e Rosely , a repórter de A Tribuna e o tradutor da entrevista feita no Posto do CVV, que funcionava em duas salas do Centro de Cultura. 



Foto recente e dum Posto Samaritano no interior Inglaterra, apoio emocional e prevenção do suicídio. 


SOPA, SABÃO E AMIZADE


A palestra do Dr. Brian Mishara, da Universidade do Quebec, durante o II Simpósio Internacional  CVV /Befrienders de Prevenção do Suicídio, em 2012 São Paulo, chamou a nossa atenção em dois aspectos, que talvez tenha passado em branco aos presentes, mas que em nós causou um certo incômodo e curiosidade.

Falando da história da prevenção do suicídio, o psicólogo e educador canadense citou como pioneiros o Exército de Salvação: 1917; a Universidade Viena: 1937; e a Igreja Anglicana na qual atuava o Reverendo Chad Varah: 1947. Ele lembrou que Chad era um catedrático em psicologia e sempre foi voltado para as questões polêmicas do comportamento humano - como sexualidade e suicídio - e que isso incomodava muito os chefes da sua igreja. Tanto incomodava essa sua visão científica que Chad foi transferido para uma paróquia que não tinha párocos, sendo apenas um prédio abandonado e destinado a ser um museu.

Fomos, então, pesquisar a história do Exército da Salvação e percebemos o quanto os Samaritanos e o próprio CVV tiveram em comum uma formação dogmática salvacionista, mais tarde superada pelo humanismo, e que marcavam um contexto de ativismo simbólico.  O inspirador de Chad Varah (1911-2007) certamente foi o fundador do Exército da Salvação, o pastor wesleyano Willian Booth (1829-1912), posteriormente chamado de General Booth, cuja atuação a favor dos bêbados, ladrões e prostitutas tornou-o persona non grata na sociedade vitoriana da Inglaterra e proibido de pregar em muitas Igrejas. Ele só falava do "lixo" humano, dos fracassados, dos doentes mentais, enfim a "escória" da humanidade. Isso era inadmissível numa sociedade que só cultua vencedores. Chad Varah, na visão conservadora, também tinha essa “mania”, vista por muitos como desagradável e inconveniente, de falar de pervertidos sexuais, abusadores de crianças, viciados de todas espécies e finalmente de suicidas, ou seja, os piores dos piores da sociedade pós-industrial.


Cartaz do Exército da Salvação nos anos 1920


Como surgiu essa associação?

No intervalo das atividades do Conselho Nacional, um dos voluntários,  na porta de uma das salas de reuniões, reclamava o retorno dos participantes para reiniciar as discussões. Havia urgência, pois os coordenadores regionais e dos postos tinham que refletir e tomar decisões importantes sobre o futuro, sobretudo o resgate do assunto suicídio no CVV (nem quente nem frio nos últimos dez anos) e também a presença mais direta ao lado dos tristes, solitários e angustiados. Ele comentava: “Tá faltando o sino; antigamente tínhamos um sino”, usado para lembrar os esquecidos e alertar os retardatários. Nas escolas o sino sempre foi o símbolo que define e divide os momentos mais importantes do ensino e da educação: a reunião, a concentração e a dispersão.  Naquele instante daríamos qualquer coisa para ver um sino nas mãos desse voluntário, pois ele não chamaria apenas os dispersos e distraídos dos compromissos de horário, mas também todos que estão esquecendo as origens desse trabalho e tornando morno o entusiasmo pela sua missão social.

 O inspirador do CVV tinha também essa forte verve salvacionista e ficou conhecido entre os seus admiradores e seguidores como “Comandante”.  Militar profissional,  ativista e criador da Fraternidade dos Discípulos de Jesus,  o coronel Edgard Armond (1894-1982) via a questão existencial humana como uma batalha íntima permanente. Ele ficou conhecendo os serviços de prevenção do suicídio através de notícias publicadas na imprensa paulistana falando de uma atividade  religiosa feita em Turim e depois do Samaritans em Londres. Apesar das claras diferenças religiosas e filosóficas, esse combate contra os inimigos externos e internos da felicidade humana sempre foi ponto comum entre o Exército da Salvação, os Samaritanos e o CVV*.

Lendo depois a biografia do Willian Booth (cujo sobrenome significa gabinete ou cabine telefônica, aliás objeto e símbolo que marcariam a imagem de Chad Varah e dos Samaritanos), ficamos ainda mais intrigados com essas coincidências e ligações entre todas essas pessoas e seus trabalhos.

Booth adotou o brasão militar como símbolo de luta contra o mal e tinha como lema os três “s” da atuação do seu Exército: “Sopa, Sabão e Salvação”; Armond adotou como símbolo o trevo de três folhas (tríade céltica e druida do Altíssimo) e tinha como lema formar samaritanos em três fases (Aprendiz, Servidor e Discípulo) e expandir perpetuamente a raiz dessa obra: “uma escola espiritual em cada esquina”, referindo à urgência e ao poder da educação iniciática, assim como sua imediata aplicação social.  O CVV foi fruto dessa escola idealista. Recentemente um usuário do CVV-Web definiu dessa forma a ajuda que recebeu por meio da internet: “Me sinto como se tivesse tomado um banho por dentro”, circunstância que nos tempos atuais lembra que os serviços de ajuda emocional funcionam também como uma limpeza psicológica, ainda que não "passem um sabão" ou lição de moral naqueles que os procuram. Sobre essa nova forma de apoio psicológico não assistencialista, Chad repetiu seu clássico bordão sobre status quo dos voluntários, durante um CN no Brasil: "Não somos resolvedores de problemas".

 O combate contra os inimigos também são muito parecidos.


Booth, Armond e Chad Varah: algumas diferença e muitas semelhanças na prevenção

Os oponentes do Exército da Salvação se organizaram rapidamente para lutar contra essa grande ideia e suas poderosas práticas humanitárias:

“À medida que o Exército de Salvação crescia no fim do século XIX, também crescia a oposição ao movimento na Inglaterra. Os oponentes da instituição se reuniam no "Exército Esqueleto" (Skeleton Army), para perturbar os encontros do Exército de Salvação e suas atividades sociais. Muitos oponentes, que chegavam a agredir fisicamente os membros "salvacionistas", eram donos de tabernas e bares que estavam perdendo suas clientelas, ao passo que novas pessoas largavam o vício e se uniam ao Exército de Salvação”.

 Nas atividades dos Samaritanos e do CVV os inimigos também existem de muitas formas e expressões, por todos nós há muito conhecidas, explícitas e implícitas, sempre com a intenção de propagar o desânimo, desarmar a boa vontade dos voluntários ou então impedir, pelo conservadorismo e intransigência, a evolução e a transformação positiva do trabalho.

Para o inspirador dos Samaritanos, o futuro da humanidade e das pessoas que trabalham para ajudar o próximo também sempre foi motivo de preocupação, mesmo falando em metáforas bíblicas do protestantismo:

“Considero que os principais perigos que deveremos confrontar no próximo século são: religião sem o Espírito Santo, cristianismo sem Cristo, perdão sem arrependimento, salvação sem regeneração, política sem Deus e céu sem inferno.”

 Já o inspirador do CVV, na mesma linguagem mística e simbólica do seu pensamento espiritualista, via assim os obstáculos para o voluntariado no século XXI:

“Quem desejar a verdadeira felicidade, há de improvisar a felicidade dos outros; quem procure a consolação, para encontrá-la, deverá reconfortar os mais desditosos da humana experiência. Dar para receber. Ajudar para ser amparado. Esclarecer para conquistar a sabedoria e devotar-se ao bem do próximo para alcançar a divindade do amor”.

Esses dois pensamentos constituem a base dos princípios e práticas dos voluntários dos Samaritanos e do CVV, duas grandes instituições que lutam não só contra  a morte física, mas também contra pior de todas elas, que é  a morte da  perspectiva e da esperança.


Mais do que um exemplo para voluntários e profissionais, uma inspiração para pessoas. 2023 foi o ano em que foi comemorado os  70 ANOS da fundação do "Samaritans", grupo criado em Londres em 1953 que tornou-se modelo mundial de voluntariado na prevenção suicídio. Edward Chad Varah, jovem sacerdote anglicano, iniciou esse trabalho alguns anos antes, logo após o final da II Guerra, quando deparou-se com o caso do suicídio de uma menina de 14 anos em sua comunidade.

O Boletim dos Samaritanos, do Reino Unido, publicava nos anos 1970 a história jurídica e social do suicídio, as mudanças de conceito, da legislação e de comportamento em relação tema. Refletia também sobre a sua prevenção. A publicação abordava não somente a história cultural do suicídio mas também o significado e a experiência dos Samaritans na propagação dos serviços prevenção

TABU. Na Inglaterra, o suicídio era crime punido com sanções e proibição de sepultar o corpo em espaços sagrados. Chad ajudou no sepultamento da menina de 14 anos, nos arredores da cidade. Ali, reconheceu que esse fato mudaria sua vida para sempre.

Ao oferecer ajudar aos suicidas em um pequeno anúncio de jornal, Chad Varah teve que mudar a rotina de sua igreja e formar rapidamente um corpo de voluntários para ajudar no acolhimento de centenas de pessoas que passaram a procurá-lo em busca de apoio. Nesse contato acolhedor entre os atendidos e voluntários comuns, Chad constatou uma descoberta simples e revolucionária de ajuda: a escuta fraterna.

EXPANSÃO. A experiência de que pessoas comuns podiam fazer prevenção incentivou Chad Varah a difundir a ideia em outros países. No Brasil, Chad uniu-se ao Centro de Valorização da Vida, que ampliou seus postos usando a sigla e o Programa "CVV-Samaritanos".

BEFRIENDERS. 

Nos anos seguintes, também por incentivo de Chad Varah, formou-se uma rede mundial denominada Befrienders Worldwide, composta por centros de oferta de apoio e baseada no conceito humanitário do “Befriending” em 35 países de 5 continentes. São voluntários treinados para estarem disponíveis 24 horas e acolher quem está em desespero e com pensamentos suicidas.

NÚMEROS DO SUICÍDIO E DA PRENVENÇÃO. 

No mundo, segundo a OMS, Organização Mundial de Saúde, ocorre um suicídio a cada 40 segundos e 700 mil mortes por ano. Na década passada esse número atingiu a marca de 1,2 milhão e vem sendo reduzido pelos Planos Nacionais de Prevenção e pelo suporte de profissionais e de voluntários. No Brasil, o CVV – que atua desde 1962, oferta ajuda gratuita pelo telefone 188, com mais de 100 postos de atendimentos e cerca de 3 mil voluntários (número considerado baixo) e recebe por ano cerca de 4 milhões de chamadas.

Além dos serviços diretos de apoio, o centros de prevenção incentivam atividades comunitárias e educativas visando a sensibilização e conscientização sobre a queda de qualidade de vida socioemocional e a necessidade enfretamento permanente desse problema.


GRUPOS  ALTERNATIVOS

Nas últimas seis décadas no Brasil o CVV manteve-se praticamente como entidade única de prevenção, pela atividade ininterrupta e pela existência efêmera dos grupos que surgiram por dissidência organizacional ou como ação alternativa.  Esses grupos geralmente têm existência curta por falta de recursos financeiros e humanos, bem como a falta de experiência gestora dos mais antigos, que se formam e se mantém pela ajuda mútua entre postos próximos. Entretanto, o próprio CVV já teve em muitas cidades e bairros da Capital postos credenciados que simplesmente desapareceram após algum tempo de funcionamento precário, isto é, dificuldade de renovação do quadro de voluntários e de manter uma rotina estável de horários de atendimento. Os grupos dissidentes e alternativos nunca foram números significativos e seus nomes são praticamente desconhecidos, como a denominação fantasia das entidades mantenedoras do programa CVV, cujas siglas resumem conceitos como apoio e amizade. É muito comum  surgirem serviços telefônicos oferecendo ajuda religiosa e psicológica, mas o CVV continua sendo a principal referência  para os usuários diante da diversidade efêmera desses serviços paralelos. 

O segredo da estabilidade e longevidade do CVV é a sua estrutura contratual de franquia composta de regras jurídicas específicas e o conjunto histórico de princípios e práticas, herdados dos Samaritanos, que funcionam como ferramentas norteadoras da prevenção voluntária. O CVV é rígido com o uso da sua marca, porém, é flexível para com as atividades que se declaram e se inspiram na sua experiência de ajuda e na sua proposta de vida. A marca institucional nunca foi avaliada pelo valor mercadológico, pois se trata de entidade de utilidade pública reconhecida por lei, mas nela pesa a experiência assistencial voluntária de seis décadas de serviço não governamental. Mesmo  sendo um grupo  leigo e laico, o CVV forma milhares de voluntários que atuam na ausência dos serviços especializados e reforça ideia histórica de que pessoas comuns poder ofertar ajuda emocional e prevenir o suicídio. Ao sofrer um impacto funcional durante a pandemia do COVID-19, precisou fechar os postos físicos e ao mesmo tempo estender a disponibilidade remota de atendimentos. Inicialmente houve uma queda na oferta de disponibilidade, entretanto, ao mudar do formato tradicional telefônico e presencial – tanto para receber pedido de ajuda como para treinar antigos e novos colaboradores- a entidade manteve a média de 4 milhões de chamadas por anos e saltou seu número médio de voluntários de 2 mil para 3 mil voluntários para atender a demanda ofertada pela linha 188 exclusiva e gratuita. O CVV, por força da pandemia se tornou predominante virtual. Na sua origem em São Paulo nos anos 60, quando as linhas telefônicas eram de alto custo, mais de 90% dos atendimentos do CVV eram presenciais e num único posto físico.


PRINCÍPIOS E PRÁTICAS DO CVV

Primeiro Princípio/Primeira Prática 

– O objetivo primordial dos Postos do CVV é estarem disponíveis para prestar apoio emocional às pessoas que estão se sentindo propensas ou determinadas a praticarem o suicídio. 

– Os voluntários são cuidadosamente selecionados por suas qualidades pessoais e aptidões naturais para o trabalho.  Os processos de aperfeiçoamento individual do voluntário e da sua prática, e de integração às demais atividades do CVV, são objetos de atenção e empenho permanentes.

Segundo Princípio/ Segunda Prática 

Os voluntários também procuram aliviar o sofrimento, a angústia, o desespero e a depressão, ouvindo e oferecendo apoio àqueles que sentem não haver ninguém disponível para aceitá-los e/ou compreendê-los. 

Os voluntários estão integrados em Postos que permanecem em atividade ininterrupta, durante 24 h do dia, e todos os dias do ano, podendo ser contatados por telefone, visita pessoal, correspondência e outros meios.

Terceiro Princípio/ Terceira Prática 

A pessoa que faz contato com um Posto do CVV terá respeitado o seu direito à liberdade de tomar suas próprias decisões, inclusive a de suicídio, a de romper o contato a qualquer momento e a de permanecer no anonimato. 

Quando a pessoa que procura o CVV encontra-se propensa ou determinada a praticar o suicídio, ela obtém integral disponibilidade dos voluntários, durante o tempo que for necessário. 

Quarto Princípio/ Quarta Prática 

O fato de uma pessoa ter procurado o apoio oferecido pelo CVV, bem como tudo o que tenha dito e possa identificá-la, é completamente confidencial e sigiloso, permanecendo restrito ao próprio voluntário e, excepcionalmente, à coordenação do Posto, quando estiverem em risco os princípios e a segurança do trabalho ou de qualquer pessoa. 

O apoio às pessoas nas demais situações é oferecido com idêntica disponibilidade, apenas sofrendo restrições se houver comprometimento do objetivo primordial do CVV, a critério da coordenação do Posto.

Quinto princípio/ Quinta prática 

Quando o apoio solicitado for além do que o CVV está disponível e preparado para oferecer, a pessoa será esclarecida sobre os objetivos do trabalho. 

Os voluntários não interferem na vida das pessoas que não pediram ajuda diretamente ao CVV.  Contudo, oferecem também o seu apoio e esclarecem àqueles que estão preocupados com o bem estar delas. 

Sexto Princípio/ Sexta Prática 

Os voluntários, no trabalho de apoio aos que procuram o CVV, são por sua vez, apoiados e orientados pelos demais, especialmente os mais experientes, e os que integram a Coordenação do Posto. 

O voluntário é normalmente conhecido pelo seu primeiro nome e número de registro. Os contatos feitos por aqueles que nos procuram são realizados exclusivamente através do Posto, de forma a manter o anonimato do voluntário.

Sétimo Princípio/ Sétima Prática 

Os Postos são apolíticos e não sectários e os voluntários jamais tentarão influenciar ou impor suas próprias convicções, quaisquer que sejam, àqueles que procuram o CVV (respeito). 

Os voluntários desenvolvem suas atividades observando as normas do Posto do qual participam, que por sua vez está integrado a uma Regional, e esta às demais, visando manter a unidade dos Princípios, das Práticas e das diretrizes do CVV (unidade de princípios, práticas e normas básicas).




1977- Capa do primeiro manual de formação de voluntários do Programa CVV, na época usando a sigla CVV-Samaritanos. Foi publicado e distribuído por cortesia da Editora Aliança. As duas instituições dividiam o mesmo espaço administrativo na rua Genebra, 168.   Nele foi publicado também a primeira versão dos princípios e práticas, adaptados dos Samaritanos da Inglaterra.



A CONCEPÇÃO CORPORATIVA ATUAL DOS SAMARITANOS

Nossa visão, missão e valores: Juntos podemos fazer a mudança que salva vidas.

Nossa visão

Nossa visão é que menos pessoas morram por suicídio.

Nossa missão

Nós nos certificamos de que há alguém lá para quem precisa de alguém.

Todos os anos, os voluntários samaritanos gastam mais de um milhão de horas respondendo a pedidos de ajuda por meio de nosso exclusivo serviço de escuta 24 horas, e-mail, carta, pessoalmente e por meio de nosso serviço de idioma galês.

Damos às pessoas maneiras de lidar e as habilidades para estar lá para os outros .

Queremos incentivar, promover e celebrar aqueles momentos de conexão entre pessoas que podem proteger e até salvar vidas.

Para isso, estamos trabalhando em escolas, prisões, locais de trabalho e comunidades, e em parceria com organizações como a Network Rail.

Fazemos campanha para tornar a prevenção do suicídio uma prioridade nacional e local.

Nossos funcionários e voluntários realizam campanhas nacionais e comunitárias para conscientizar e influenciar os tomadores de decisão.

Nossos valores

Temos cinco valores fundamentais. Eles são apoiados por esses comportamentos, que compartilhamos dentro da organização dos samaritanos: apoio, confiança, aspirações e respeito.

Ouvindo

Explorar os sentimentos alivia a angústia e ajuda as pessoas a compreenderem melhor a sua situação e as opções que têm à sua disposição.

Confidencialidade

Se as pessoas se sentirem seguras, é mais provável que sejam abertas sobre seus sentimentos.

Sem julgamento

Queremos que as pessoas possam falar conosco sem medo de preconceito ou rejeição. Pessoas que tomam suas próprias decisões sempre que possível

Pessoas tomando suas próprias decisões

Acreditamos que as pessoas têm o direito de encontrar sua própria solução e que dizer às pessoas o que fazer tira a responsabilidade delas.

Contato humano

Dar às pessoas tempo, atenção e empatia atende a uma necessidade emocional fundamental e reduz a angústia e o desespero.


VISÃO MUNDIAL DO BEFRIENDERS WORLDWIDE


Ao adotar novas tecnologias, compartilhar conhecimentos e experiências, a Befrienders Worldwide está comprometida com a visão de um mundo em que o desespero pode ser aliviado e há menos mortes por suicídio. Para o conseguir, pretendemos:

• Melhorar o acesso a informações sobre suicídio e serviços de apoio emocional em todo o mundo.

• Fornecer suporte e serviços inovadores aos centros membros da Befrienders Worldwide.

• Sustentar e expandir a rede global de centros de apoio emocional Befrienders Worldwide.

Crenças Fundamentais do Befrienders Worldwide

Acreditamos em dar a uma pessoa a oportunidade de explorar sentimentos que podem causar angústia, a importância de ser ouvido, de forma confidencial, anônima e sem preconceitos. Valorizamos que uma pessoa tenha a decisão fundamental sobre sua própria vida.



A GEOGRAFIA DA PREVENÇÃO EM SÃO PAULO


Sede da FEESP na rua Maria Paula: sala e telefone emprestados para funcionar o primeiro posto do CVV em 1962.

Centro, Bexiga, Carmelitas, Brigadeiro, Genebra, Maria Paula, Francisca Miquelina, Abolição, Japurá. Esses foram os endereços onde funcionaram os primeiros encontros de voluntários e postos de prevenção do suicídio no Brasil. Foi também nesse antigo território rural paulistano, rapidamente mudado  pela industrialização e transformado em ruas, que serviu como cenário dos acontecimentos  que explicam as causas do surgimento da prevenção  em São Paulo: o sofrimento mental, a proliferação do suicídio, o surgimento dos primeiros sanatórios e hospícios e finalmente o serviço de prevenção.  

O blogue Histórias Paulistas (de Alexandre Giesbrech) explica como esse nomes de ruas tem ligações familiares entre si, efeito da intenção de imortalizar a memória aristocrática da cidade. 

“A Rua Genebra, na pontinha do Bixiga, não leva esse nome em homenagem à segunda cidade mais populosa da Suíça. Seu nome é, na verdade, uma homenagem a Dona Genebra de Barros Leite (1783—1836), esposa do Brigadeiro Luís Antônio de Souza. A honraria foi planejada pela nora de Dona Genebra, Dona Francisca de Paula Souza e Melo, a Baronesa de Limeira. Seu marido, Vicente de Souza Queirós, o Barão de Limeira, era um dos três filhos do Brigadeiro, e o único que não foi homenageado com nome de rua naquele bairro: suas irmãs, Maria Paula e Francisca Miquelina, também são homenageadas em ruas que fazem esquina com a Rua Genebra. A esquina das ruas Genebra e Maria Paula nem sempre foi como é hoje. Até 1954, era como se existissem duas “Ruas Genebra”: uma entre as ruas Aguiar de Barros e a Maria Paula (a parte “de cima”) e outra entre as ruas Maria Paula e Santo Amaro (a parte “de baixo”). A parte de cima terminava na altura da Maria Paula, mas num íngreme barranco de alguns metros de altura. Por causa disso, a parte de baixo era um local mais movimentado e procurado para estabelecimentos comerciais, também pela proximidade ao eterno futuro Paço Municipal”. 

A memória dessa parte central de São Paulo também foi registrada por Marcos Rey, pseudônimo do escritor paulistano Edmundo Donato. Em “O Caso do Filho do Encadernador”, Marcos Ray recorda sua infância  nessas redondezas,  cujo ponto alto da vizinhança era uma mansão nobre que desapareceu no tempo:

“Era na rua Genebra e possuía uma espaçosa área para a qual, como numa construção espanhola, abriam-se portas e janelas. (...) Vizinha, pelos fundos, com frente pela rua paralela, tínhamos nada menos que uma baronesa. Ainda circulavam em São Paulo alguns títulos de nobreza nos anos 30. Provavelmente se tratava de uma aristocracia decadente dos bons tempos do café”

O pai do escritor tinha sido funcionário da editora falida de Monteiro Lobato , de quem comprou algumas máquinas para montar sua própria oficina de encadernação. Ali, no casarão do Bexiga, recebia escritores importantes e também os menos famosos, clientes e amigos inesquecíveis como Menotti Del Picchia, Cassiano Ricardo, Cleomenes Campos,  Orígenes Lessa, Paulo Setúbal e Júlio César da Silva. Este último era irmão da poetisa Francisca Júlia da Silva. 

“Sem ter alcançado as alturas da irmã, escrevera dois livros de certa repercussão na época, A arte de amar, poesias, e O Diabo existe, contos”.  

O bairro tinha o lado simples e já cheio de cortiços.  

Marcos Rey recorda-se da chegada dos caríssimos rádios de alto-falantes, “em formato de igrejinha”, tão caros que a lojas empestavam por algum tempo, para que os interessados tomassem gosto depois da longa experiência. 

“Mesmo pessoas sem a menor possibilidade financeira faziam solicitações em caráter experimental . Quando pobre dava festa, o aparelho era infalivelmente de experiência. Lembro-me, em minha rua, do rádio que foi retirado no dia da festa. O vizinho que o solicitara, deprimido, tomou veneno. Quase morreu. Cada época tem seu tipo de tragédia”.


SOCORRO AOS SUICÍDAS

No início dos anos 1960 a cidade de São Paulo já tinha ares de metrópole, ocupada por milhares de habitantes que se movimentavam pelas ruas escurecidas pela neblina cinzenta e  molhadas pela garoa fina e gelada.  Quem se lembra ou conheceu a famosa “pauliceia desvairada” por fotografias antigas dessa época - com transeuntes circulando pelas calçadas, homens de ternos escuros e de chapéu, enquanto as mulheres desfilavam de salto alto, conjuntos e capas de chuva - não vai estranhar essas histórias dos primeiros voluntários da prevenção.  Secretamente eles observavam de longe os atendidos que haviam dado a eles algumas informações sobre sua rotina diária. Essa primeira geração de plantonistas agia como se fosse uma  agência de detetives, para investigação e intervenção nos planos de autodestruição dos clientes. Isso significava identificar, diagnosticar suas intenções e estudar detalhadamente seus hábitos e rotinas para que tais informações facilitassem  a ação salvadora sobre seus planos mórbidos.  Se o suicida em potencial tinha gosto pelo futebol, lá estava no estádio um plantonista vigiando seus passos para que não cometesse suicídio antes, durante ou depois da partida. Era uma missão de vigília. Muitas vezes essas abordagens resultavam em problemas graves nas quais os plantonistas externos eram surpreendidos por reações agressivas e vingativas de alguns atendidos,  que se sentiam traídos na confiança que haviam depositado no voluntários. Alguns armavam ciladas como acusações de crimes de roubo e de ameaças.  A intenção de ajudar de forma diretiva e imediata se transformava em transtornos marcados pela decepção e até dores de cabeça com as autoridades. Nem é preciso dizer que essa fase de abordagens  persuasivas, com lances de tensão e aventura, foi sendo gradualmente substituída por outras  menos focadas nos problemas dos atendidos e mais voltadas para suas características emocionais. Foi gradual porque fluiu como um amadurecimento de quem aprende com os erros. Isso levou exatamente o tempo de uma década, até que, a partir dos anos 1970,  o grupo pioneiro de prevenção resolveu dar uma guinada na forma de atender e ajudar pessoas em sofrimento. Era um novo tempo no qual a neblina e a garoa desapareceriam, a cidade se tornaria mais colorida pela moda pop e pelos outdoors gigantescos; também completamente caótica, ganhando avenidas largas, duplicando a frota de automóveis, a poluição, o barulho de motores e buzinas, linhas de metrô e de habitantes cujo número chagaria à casa dos milhões. A cidade mudou, as pessoas mudaram, o sofrimento mudou sua expressão e  prevenção também precisava mudar. E continuou mudando nas década seguintes.

O telefone foi a primeira e tem sido a mais duradoura tecnologia de contato com as pessoas que procuram o serviço procuram e busca de ajuda e informações. Mesmo sendo um meio de comunicação direta, uma extensão da fala dos ouvidos, essa tecnologia sempre exigiu um cuidado humano no seu uso, evitando a distração e a dispersão nos atendimentos. No telefone podemos fechar os olhos em atitude de compreensão mais acentuada, mas também somos surpreendidos pela imaginação, nos deslocando para outras dimensões mentais, incluindo o sono. Hoje existem tecnologias que são menos dispersivas como o chat, o e-mail e o Skype, exigindo novas posturas e também conteúdos que permitam estimular os atendidos a explorar e expressar seus sentimentos. São tecnologias humanas, extensão dos nossos cérebros e das nossas mentes, preenchendo os vazios das novas  necessidades. Isso significa que temos na experiência voluntária situações constantes de aprendizagem, um “lifelong learning”.

 

“Evite conversações supérfluas ou desnecessariamente longas. Tais ligações sobregarregam inutilmente os equipamentos em prejuízo de todos. Lembre-se de que o uso inadequado do telefone pode impedir chamadas urgentes” Anúncio da Companhia Telefônica Brasileira. Revista O Cruzeiro. Abril de 1962. 


 Nos primeiros tempos, como vimos,  as necessidades de conhecimento eram focadas no problema e não na pessoa em si. A ideia de salvamento remetia para soluções imediatas e voltadas para as situações de emergência e risco de suicídio. Os cursos de formação tinham a preocupação com conteúdos  voltados para as abordagens diretivas  e até intimidadoras. Até o final dos anos 70, o material para seleção de voluntários plantonistas tinha como destaque uma aula de primeiros-socorros, ministrada por médicos e enfermeiras, tentando nos ensinar as bases e elementos do socorro imediato às vítimas de tentativas de suicídio. As visitas aos hospitais feitas pelos  voluntários pioneiros, nas alas de sobreviventes do suicídio, tiveram efeito de longa duração  nos cursos de formação. Por longos anos os primeiros voluntários estiveram emocionalmente armados e em atitude defensiva, num estado de prontidão altamente marcado pela ansiedade e expectativa de salvamento. É claro que nunca usaram na prática tais conhecimentos, entretanto  tiraram grande proveito deles para reforçar a necessidade de atenção extrema com a dor do outro. 

Com o tempo as  apostilas densas e de conteúdos especializados e diretivos  foram sendo substituídas  por  manuais de comportamento e posturas.  Os Cursos de Aperfeiçoamento I e II, cujos conteúdos eram voltados para  a especialização em prevenção do suicídio e desvios de comportamento, tiveram uma mudança radical, sendo trocados por  temas de abordagem psicológica. Aprendeu-se nesses anos que o voluntariado pouco tinha a ver com as especialidades e muito com a compreensão do sofrimento humano.   Com exceção dos psicopatas, que os atormentavam nos plantões, aos poucos os atendentes foram se desarmando  e diminuindo o estado defensivo e a ansiedade de salvar, encontrando formas de estar mais próximos menos ameaçadores aos nossos atendidos. Lidar com atendidos desprovidos da capacidade afetiva e o risco constante de manipulação e situações de desordem continuou sendo um desafio. 


OS  HOSPÍCIOS  COMO ALERTA DA PREVENÇÃO


Há 100 anos, se uma pessoa tivesse uma  crise de choro, ansiedade, pânico ou sinais de depressão  poderia ser  internada num hospício e lá passaria o resto da sua vida. Hoje, ao passar por esses transtornos,  essa mesma pessoa ou qualquer um de nós pode ligar para um serviço de prevenção e, na maioria dos casos, é possível interromper esse ciclo vicioso, dar voz aos sentimentos,   compreender melhor o que se passa conosco, assumindo o autocontrole e podendo até mesmo escolher qual o tipo de ajuda e tratamento profissional que melhor atenda às nossas necessidades.  É uma atenção disponibilizada de forma transparente e instantânea, tal qual é o mundo no qual todos vivemos. A  visão de mundo obscura sobre os transtornos mentais , concepção generalizada da loucura, foi durante muitos séculos o tom dominante para definir quem era e quem não era normal. Mesmo aqueles que tinham comportamento divergente do comum e usual, eram punidos com os mesmos métodos de controle da loucura, sendo trancafiados nos manicômios para serem contidos nas suas inclinações consideradas socialmente perigosas. Os julgamentos e as sentenças para esses casos seguiam um padrão de isolamento e confinamento.  Foi então, por motivação humanitária, que os mesmos grupos que se interessam pela prevenção do suicídio também sempre esteve muito próximo e se envolveu de forma crescente com o problema da saúde mental.




 


Detalhe de um mapa paulistano do século XIX. A cidade ainda provinciana, rodeada de chácaras, porém registrando os primeiros problemas de doenças e soluções de saúde mental: O Hospital dos Doidos, que mais tarde seria remodelado até ser transferido para o Complexo Juquery.  Acervo: Arquivo Público do Estado.

 


Mapa geral de São Paulo em 1893. Nele já aparece a Bella Vista como um bairro distante do centro, contendo muitas áreas verdes, que eram antigas chácaras e sítios na época do império.


Tanto a loucura como o suicídio são manifestações muito próximas ao trabalho de apoio e profundamente relacionada à ideia de valorização da vida. Não foi coincidência nem obra do acaso que o primeiro posto de prevenção do suicídio tenha surgido simultaneamente como portador de duas ferramentas de alívio ao sofrimento mental: o posto de atendimento, no qual 10% dos atendidos eram doentes mentais; e o primeiro núcleo psiquiátrico pensado como espaço de humanização e reversão natural dos distúrbio mentais. No posto lida-se diretamente com as causas e sua prevenção; e na Comunidade Terapêutica Francisca Júlia lidamos com os efeitos e sua pósvenção. Uma relação muito óbvia e lógica se pararmos para pensar que somos e seremos por muito tempo uma sociedade doente e mentalmente muito vulnerável.  Os primeiros postos foram instalados no Bexiga, bairro popular  surgido no século XIX e que seria reafirmado no século seguinte como Bela Vista, em função da especulação imobiliária que se voltaria para ali em busca de terrenos grandes e baratos. Primeiro na rua Maria Paula, em salas cedidas pela FEESP- Federação Espírita do Estado de São Paulo e no consultório do psiquiatra Wilson Ferreira de Melo. Depois em três apartamentos: um na rua Maria Paula e dois  na Francisca Miquelina.  E finalmente na rua Abolição, 411, em uma casa abandonada, adquirida por meio de uma permuta de imóveis. A primeira sede administrativa do posto pioneiro funcionava na rua Japurá e depois foi instalada  na rua Genebra, 168, onde funciona até hoje.  São endereços que se tornaram emblemáticos na história da prevenção e  também da vida paulistana.  Nenhuma dessas ruas existiam no início do século XX, com exceção da rua Abolição, como mostra o mapa da cidade, publicado em 1893. O Bexiga era um ribeirão que cruzava a região e desaguava ou recebia as águas do comprido córrego Saracuro. 

 

 


Detalhe do mapa paulistano de 1893 onde aparece o Ribeirão da Bexiga separando a rua Santo Amaro e a Rua Abolição. Já existiam as Rua Jaceguai, Major Diogo, Conselheiro Ramalho, São Domingos e Santo Antônio. 


O Bexiga e seus arredores era cenário constante de suicídios de escravos e gente simples atormentada pelos embates cotidianos da urbanização crescente contra a vida rural e provinciana que foi desaparecendo. Na tentativa conhecer e explicar as origens da prevenção e do seu envolvimento com a psiquiatria, isto é, a relação intrínseca entre o suicídio e a doença mental, encontramos laços humanos e pontos comuns entre esse aspecto social da história paulistana e o surgimento da primeira instituição de prevenção do suicídio do Brasil. Ela nasceu na Bella Vista- Bixiga, a partir da evolução e crises dos núcleos de tratamento psiquiátricos que surgiram  na Capital.  Nessa época São Paulo já possuía uma considerável população de habitantes em graves condições mentais, aspecto humano bastante distanciado do conhecimento médico e psicológico hoje disponíveis.  

Na ligação entre a rua 25 de Março e a Rua da Mooca existia, no início do século XX, a Rua do Hospício, onde estava instalado o Hospício dos Alienados, em uma grande área verde contornada pelo rio Tamanduatey. Foi o primeiro estabelecimento e síntese das primeiras tentativas de entendimento, compreensão e tratamento dos paulistanos portadores de transtornos mentais. 

O hospício foi precedido por um pequeno estabelecimento que funcionava na rua das Flores, por iniciativa do Padre Luiz Navarro, do Capitão Abreu e do pedreiro Vicente Gomes, colaboradores da Santa Casa,  entre 1825 e 1989. Entre os dois doentes recolhidos inicialmente estava o próprio padre. 

Em 1848 o pequeno hospício já estava funcionando em uma casa alugada na Avenida São João, próximo à atual Praça dos Curros (atual República). Ali assumiram a direção do primeiro Manicômio Paulista  o alferes reformado Tomé de Alvarenga e o médico João Tomás de Melo. 

Em 1852 foi transferido para a Rua Aurora, num sobrado com 16 cubículos. 

Entre 1859 e 1872 funcionou numa antiga chácara adquirida pelo governo do estado, na Várzea do Carmo, cuja edificação do século XVIII teve que sofrer sucessivas reformas e ampliações para receber um número cada mais crescente de sofredores, o que ocorreria até o final século, obras estimulada pela abertura de ruas e loteamentos naquela região ainda despovoada. 

No início do século XX esse conjunto tinha duas alas (masculina e feminina)  423 pacientes, 209 homens e 214 mulheres.  Desse grupo que ali permaneceu até 1903, tirando alguns convalescentes, foram escolhidos os primeiros pacientes, os que tinha condições de trabalho,  para povoar a Colônia do Juquery.

  


Hospício dos Alienados em 1900. Brasiliana. Instituto Moreira Sales. Biblioteca Nacional


A partir desses antecedentes  do Hospício dos Alienados é possível reconstituir a  trajetória do tratamento da doença mental no Brasil estado de São Paulo;  a formação de instituições psiquiátricas de profilaxia na Capital paulista e nos arredores da metrópole, como o Complexo do Juquery; a fundação dos conhecidos hospitais psiquiátricos  espalhados pelo estado e alguma regiões do país;  e finalmente a ligação deles com a fundação da Clínica de Repouso Francisca Júlia, na cidade de São José dos Campos, instituição  diretamente associadas à prevenção. A C.R.Francisca Júlia talvez seja a única instituição psiquiátrica que atua diretamente da prevenção do suicídio, mantendo programas e ações para pacientes, familiares, funcionários e também para a comunidade. Antes de ser instalada no Vale do paraíba, a Clínica Francisca Júlia teve um embrião no bairro paulistano de Americanópolis, funcionando numa casa alugada e para onde eram encaminhados atendidos com crise suicida no posto do CVV, a maioria a pedido de familiares sem recursos para tratamento.

A trajetória da saúde mental no Brasil não foi diferente dos demais países. Ela refletia um contexto, uma época. Foi um longo período de mais de um século marcado pelas trevas da ignorância e do sofrimento, mas também pela busca de conhecimento e de luz  em forma de alternativas de recuperação paz íntima aos atormentados. Esse fenômeno  também ocorreu em outras regiões do Brasil, notadamente no Rio de Janeiro e em algumas capitais atingidas pela aceleração urbana em choque com o crescente êxodo rural e os recentes efeitos da abolição do trabalho escravo. No Hospital do Juquery, cuja história é um reflexo impressionante dos problemas sociais que o Brasil veio enfrentando nas primeiras décadas do século XX, encontramos exemplos curiosos de como a saúde mental se organizou para encontrar respostas para o seus desafios. Figuras médicas como o Franco da Rocha, em São Paulo, e Juliano Moreira, no Rio, buscavam no exterior soluções pudessem absorver e curar as massas de alienados que foram se formando nas cidades brasileiras. A ideia de colônias agrícolas funcionando junto aos hospícios, como laborterapia, foi trazida por eles ao Brasil após a participação no Congresso Internacional de Alienistas, realizado em 1889 em Paris. O historiador Ewerton Moura da Silva encontrou nos arquivos do Juquery 483 registros de internação de imigrantes portugueses com quadro de esquizofrenia. Entretanto, em muitas fichas, também foram encontrados relatos de casos de “melancolia”, causada pela saudade da sua terra. “Era comum os imigrantes serem internados por querer voltar para Portugal”. (Do sonho a loucura: hospitais psiquiátricos e imigração portuguesa em São Paulo) 

 


Matéria do jornal Cidade de Santos, 1969. 


No final da década de 1960 o complexo hospitalar do Juquery, que na sua origem foi classificado como modelo de modernidade e adequação de instalações psiquiátricas,  entra em plena decadência e atinge o seu limite de funcionamento.   Foi nesse contexto que o grupo pioneiro de prevenção estava realizando a sua primeira tentativa de edificação de uma instituição psiquiátrica no bairro de Americanópolis, na zona sul de São Paulo. Um desvio de percurso obrigou o nosso primeiro grupo de voluntários a mudar o endereço com as obras já iniciadas da Clínica de Repouso Francisca Júlia. Juntamente com a proposta feita pelo então secretário da saúde do estado Walter Lesser para absorver 200 pacientes do Juquery, o grupo havia recebido como doação uma área de sete alqueires (cerca de 150 mil metros quadrados) em São José dos Campos, com o compromisso de lá erigir juntamente  a  Clínica um espaço para abrigar idosos. O abrigo de idosos nunca foi construído e no seu lugar o grupo pioneiro fundou um novo modelo de orfanato, com 43 crianças abandonadas e criadas como filhos por um casal de pais adotivos. O modelo era baseado nas aldeias existentes na Áustria.  Pouco tempo depois , na mesma área, também foi  fundada a casa Jesus Gonçalves, para abrigar crianças com paralisia cerebral grave e hidrocefalia. Nesse mesmo período,  um grupo de voluntários assumiu a direção de uma antiga entidade assistencial  que passava por dificuldades financeiras em virtude da limitação de idade dos seus fundadores. Era o Lar Escola Bela Vista, dedicado a acolher crianças órfãs e também algumas em situação de paralisia  e hidrocefalia, também abandonadas.  

O CASARÃO DE DONA YAYÁ

 A história de Dona Yayá e do seu casarão na rua Major Diogo é um retrato fiel de como a doença mental não escolhe endereço nem classe social e que , quando há recursos e aplicação adequada, é possível oferecer aos doentes uma vida um pouca mais tranquila e digna de humanidade. Hoje Dona Yayá poderia, guardando as devidas proporções, poderia andar  tranquilamente pelos ruas do bairro, frequentar o comércio, os pontos culturais e até, eventualmente, visitar o posto de prevenção do bairro, para tomar um chá e conversar com os  voluntários.  

 


Antiga chácara e casa da rua Major Diogo, onde viveu do Dona Yayá até 1961.  


“Sebastiana de Mello Freire, nascida em 21 de janeiro de 1887, pertenceu a uma aristocrática família paulista marcada por acontecimentos trágicos. Ainda criança, perdeu duas irmãs pequenas, uma delas asfixiada; aos 14 anos perdeu pai e mãe em um intervalo de dois dias; e aos 18 anos perdeu o único irmão, que cometera suicídio durante uma viagem de navio. Sem mais nenhum parente de primeiro grau, Yayá, como era chamada, viveu desde a morte dos pais sob a tutela de Manuel Joaquim de Albuquerque Lins (político liberal que exerceu a presidência de São Paulo entre 1908-1912), recomendado pelo próprio pai em testamento, e foi interna no tradicional colégio Nossa Senhora de Sion, frequentado pelas moças da elite paulistana. Em 1914, viajou à Europa em companhia de algumas de suas amigas, por ocasião do início da Primeira Guerra Mundial. Depoimentos dos que conviveram com ela relatam ter sido uma pessoa religiosa, alegre e generosa. Em 1919, após apresentar recorrentes sinais de desequilíbrio emocional, Dona Yayá foi internada em um hospital psiquiátrico. Parentes próximos e seu tutor seguiram a orientação dos médicos de continuar o tratamento em casa, onde teria mais conforto. Foi comprada então a casa na Rua Major Diogo (antigo número 37, hoje o número 353, no bairro da Bela Vista), para recebê-la. A região era, à época, uma área de chácaras afastada da agitação do centro da cidade, onde até então residira Dona Yayá – um palacete na Rua Sete de Abril. Nessa nova casa Yayá viveu reclusa até seu falecimento, em 1961, passando a maior parte do tempo encerrada nos aposentos adaptados para sua segurança, cercada por parentes distantes, amigos e empregados. Essa inusitada trajetória, associada à sua destacada posição social, foi alvo de especulações pela imprensa sensacionalista, rendendo alguns artigos no jornal O Parafuso sobre a possível relação entre a interdição e a apropriação de sua fortuna. A história de Dona Yayá instiga a curiosidade e a imaginação dos que dela ouvem falar: ela ora é apresentada como a “louca do Bixiga”, ora como vítima incompreendida pela moral da época em que viveu”.  Centro de Preservação Cultural. USP. Pró-Reitoria de Cultura e Extensão Universitária. 


OS MODERNOS POSTOS DE PREVENÇÃO


O posto de prevenção do suicídio, físico ou virtual,  é por definição e essência um pronto-socorro emocional,  espaço de privacidade e de introspecção, lugar físico ou virtual onde as pessoas podem desfrutar por algum tempo de uma atmosfera de paz e tranquilidade, onde a mente pode esvaziar os pensamentos, aplainar as emoções e organizar os sentimentos. Não se trata dos antigos confessionários religiosos nem dos atuais consultórios profissionais, pois não há ali ninguém com a função de analisar, interpretar problemas, julgar, dar orientação e direcionamentos de condutas. Também não se trata de ambientes de agitação e catarse. O encontro do voluntário como a outra pessoa ocorre em condição de absoluta busca de igualdade, sendo a única diferença entre os dois é o fato de que um deles se coloca à disposição para ouvir e buscar compreender o que ou outro tem a dizer. Essa conversa amigável e compreensiva torna o espaço do posto um lugar de alívio da tensão emocional e de encontro consigo mesmo, no qual o voluntário   faz o papel de semelhante e espelho para que o outro consiga ouvir  a si mesmo e tenha oportunidade de compreender o que se passa dentro dele, tendo mais clareza sobre suas ações. Num posto  existe até mesmo a possibilidade da pessoa permanecer em silêncio e falar somente quando achar necessário sem que ninguém  o importune com perguntas e curiosidades. Tem a liberdade de estar consigo mesmo, mesmo tendo alguém ao seu lado, caso necessite conversar. Se houvesse postos voluntários em diversos pontos da cidade, como locais de oferta incondicional de apoio e amizade, haveria uma transformação radical nos inúmeros ambientes de convívio onde as pessoas buscam algum tipo de realização pessoal ou obrigação social. Elas não precisariam sair de seus lares, dos locais de trabalho ou das escolas para aplacar os efeitos dolorosos da sua solidão e das suas angústias. Nem buscariam alívio de suas dores nos inúmeros pontos e meios de fugas psíquicas. 

AS PESSOAS QUE ATENDEM 

O voluntário de um posto de prevenção não é uma pessoa comum, no sentido físico e social da palavra. Ele é aparentemente igual a todas as pessoas, porém no seu íntimo se sente diferente e inclinado a fazer coisas que normalmente as pessoas comuns não fazem. Ouvir voluntariamente pessoas que nunca viram e que nem imaginam quem elas sejam, com a intenção de ajudá-las a diminuir seus sofrimentos psíquicos, não é muito comum. São sensíveis a esse tipo de sofrimento e gostam de poder aliviar essa dor, pois sabem como isso é incômodo e que também é algo simples de fazer. Estar por alguns instantes com alguém que sofre é uma aventura de ajuda e também de autoconhecimento, porque quem ajuda funciona – ele e o outro - como espelho, se enxergam mutuamente e isso os torna iguais e muito próximos. É isso que um voluntário faz. Ele têm um horário específico para estar disponível  e se dirige ao plantão, ao telefone ou a um computador, sempre no mesmo dia e na mesma hora. Permanecem algumas horas semanais aguardando as chamadas.  Enquanto elas não chegam,  ele lê um livro, toma um café, faz um lanche ou qualquer outra coisa que não cause desarmonia ou quebre o clima de silêncio externo e intimo que caracteriza as salas de atendimento. Há alguns anos os intervalos entre as chamadas eram longos. Com a implantação do 188 (número único), as chamadas vem todas as regiões do País. Isso é bom porque garantem o sigilo do atendimento, para quem liga e para quem atende. O sigilo é fundamental. É a ética essencial da prevenção voluntária. Ouvir sem compartilhar o que se ouve é importante para tranquilizar que precisa desabafar. É um momento especial, sagrado, que exige serenidade. Quando alguém chama querendo conversar, logo fica claro que querem falar de si mesmas, de sentimentos, de emoções. Podem até estar alterados, em crise, mas tudo é visto como um momento de dor e de atenção. Até conversas fúteis são toleradas, até certo – por causa da solidão - mas logo são evitadas, para que outros também possam utilizar o serviço gratuito. Terminando o plantão e sucedido por outro membro, o voluntário volta para casa ou se dirige ao seu trabalho profissional com o coração alegre, refletindo sobre a vida e sobre si mesmo. Além da capacitação, o voluntário pode realizar de forma permanente encontros de trocas de experiências (mantendo sempre o sigilo), para aperfeiçoamento da escuta compreensiva e atualização de conhecimento útil ao trabalho. Alguns voluntários têm passagem rápida nos postos; outros permanecem por longos anos, pelo resto de suas vidas.  

Num artigo científico publicado na revista eletrônica Arquivos Brasileiros de Psicologia intitulado “Voluntários do CVV: características sociodemográficas e psicológicas” encontramos essa definição e perfil do que atuam na prevenção voluntaria:

“De fato, o voluntário é a figura-chave de toda a estrutura do CVV. A ele cabe não apenas o atendimento direto ao usuário, mas também a responsabilidade pela organização e manutenção do Posto CVV ao qual é filiado. O voluntário é o administrador do Posto e também o responsável pela seleção e treinamento de novos voluntários. Deve comprometer-se em divulgar o serviço, criar novas formas de inserção na comunidade e constantemente atualizar-se teórica e tecnicamente. Além disso, são os voluntários que sustentam financeiramente o Posto com uma mensalidade paga à mantenedora - instituição de personalidade jurídica que comporta o Programa CVV (CVV, 2003). É fácil, portanto, constatar a dimensão da responsabilidade de ser um voluntário CVV, pois este não apenas executa um trabalho de denso caráter emocional, como também se compromete com outras tarefas que asseguram o funcionamento do serviço. Assim, torna-se relevante conhecer quem são as pessoas que escolhem, voluntariamente, assumir tantas responsabilidades, principalmente porque executam atendimento direto a quem sofre emocionalmente e que, por vezes, deseja e planeja terminar com a própria vida”.

Carolina N. B. F. Dockhorn I; Blanca S. G. Werlang II. I Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Rio Grande do Sul, Brasil. 

COMO SURGIRAM OS POSTOS 

Uma experiência que surgiu em alguns bairros da cidade de São Paulo e ABC logo se estenderia para o interior do estado e outras regiões do Brasil. A iniciativa de um grupo pode desencadear rapidamente a organização de um núcleo e sua permanência e longevidade vai depender muito dos meios de continuidade que alimentam todos os demais grupos de benemerência. No início essa tarefa era feita pelo primeiro posto em funcionamento em São Paulo, passando depois para organizações similares regionais, que se encarregam de escalar um posto ou mais postos para oferecer suporte ao núcleo nascente. Antes agíamos sozinhos, que era a única forma possível de expandir e nos mantínhamos distantes; e hoje atuamos em rede e com mais proximidade. O distanciamento tornava os postos mais frágeis. Muitos núcleos não sobreviveram por falta de comunicação e apoio mais acessível, como foi, por exemplo, os postos que foram instalados na Argentina, Uruguai e Colômbia nos anos 1970. Hoje é bem diferente, pelo menos no aspecto da comunicação. A proximidade física e a presença humana ainda é muito importante para que os núcleos se mantenham e criem soluções de continuidade. O caso que escolhemos como modelo atual de implantação mostra como nasce e se estrutura um posto de prevenção ; e como é possível a partir disso estabelecer condições para que ele se torne uma referência local. 


Voluntários de um posto de prevenção de São Paulo em viagem a Porto Alegre-RS no início dos anos 1970  para treinamento e implantação de uma “ filial”.  Acervo: Rosa Maria Carleto Tosello.


SUSTENTABILIDADE

No dia 27 de janeiro de 2013 a cidade gaúcha de Santa Maria amanheceu abalada por uma tragédia na qual 242 pessoas - em sua maioria jovens- perderam a vida durante um incêndio em uma casa de eventos. Outras 680 pessoas ficaram feridas em decorrência do tumulto durante a evacuação do recinto em chamas e da fumaça que se acumulou no local.  Diante dessa inesperada situação de catástrofe, voluntários de um posto de prevenção local agiram de forma imediata dirigindo-se ao local do incêndio e também ao hospital onde as vítimas estavam sendo atendidas. Identificados pelo usas camisetas com a logomarca do  posto, eles circulavam entre a multidão para oferecer ajuda aos parentes e amigos dessas vítimas. Próximo ao hospital eles instalaram uma tenda de atendimento, onde se revezavam na tarefa de apoio emocional.  Funcionários do Ministério da Saúde-MS e da assistência e pronto-socorro local logo notaram essa presença e formaram ali uma rede organizada que pudesse sincronizar os atendimentos diante das diferentes necessidades que iam surgindo. Nessa ocasião, o posto de Santa Maria recebeu uma oferta do MS para instalar na cidade uma linha telefônica especial para receber chamados locais e principalmente dos familiares das vítimas que residiam em outras regiões. 

 A proposta foi aceita e nos dias que seguiram à tragédia o posto já estava atendendo com um número de três dígitos, de forma exclusiva e gratuita. Era o numero 188, que já era uma antiga reivindicação nossa perante o Ministério das Comunicações e que somente agora, por meio de uma portaria especial do Ministério da Saúde e da Anatel, efetivava-se em forma de convênio com a rede de posto de prevenção. O documento oficial do governo federal previa a instalação de uma rede experimental de atendimento que inicialmente abrangia somente o estado do Rio Grande durante o período de seis meses, quando então seriam feitas as aferições e avaliação do volume de ligações de buscas de apoio.   E assim aconteceu: vencida a primeira etapa experimental, o convênio foi prorrogado por mais seis meses. Era uma vitória dos propósitos de ampliação da Rede Nacional de Prevenção do Suicídio, porém ali  se abria um novo desafio de multiplicar a nossa rede  de atendimento e também de voluntários para atender essa nova demanda.   A oferta do 188 gratuito em todo o território nacional provocou um salto de 1 para 4 milhões de chamadas telefônicas e naturalmente um congestionamento da linha. Esse problema já tinha sido previsto e  seria também gradualmente resolvido pelo aumento do contingente de plantões voluntários e alívio  do acúmulo de atendimentos com outras redes de apoio nas comunidades. 

Desde que foram implantados no Brasil, os postos são mantidos pelos próprios voluntários. Esta não foi uma decisão espontânea ou filosófica, mas fruto de uma necessidade imediata e que se tornaria uma pratica comum.  Não havia recursos governamentais ou privados disponíveis  para implementação do trabalho. A ajuda inicial partiu de uma instituição religiosa, oferecendo uma sala e um telefone (este último uma verdadeira preciosidade de alto custo na época) e de um psiquiatra que acreditou na ideia, sem temer a inexperiência e confiando na boa vontade dos jovens fundadores: “Dentro de poucos anos vocês vão estar sabendo muito mais do que eu sobre suicídio”, disse o médico que emprestou uma sala do seu consultório, como segundo endereço do primeiro posto de prevenção no Brasil.  

No terceiro endereço os voluntários pioneiros já tinham consciência de que a manutenção do posto seria totalmente da responsabilidade dos plantonistas, que deveriam se cotizar para cobrir as despesas de funcionamento. 

E assim funciona até hoje. Alguns postos recebem a ajuda  inicial de prefeituras, câmaras, clubes de serviço, entidades humanitárias, etc., e logo em seguida passam a gerir o projeto fundando e mantendo suas próprias instalações.  A maioria dos postos com mais de 40 anos possuem esse histórico de iniciativa, fomento e autonomia. 

Além das despesas comuns das instalações, os postos sustentam o coletivo político que se reúne em regionais e conselhos nacionais, organizados em eixos norteadores do Programa de Apoio Emocional do CVV.  O coletivo é composto de grupos executivos e comissões temáticas que representam milhares de voluntários. Estes financiam por meio das suas bases locais os eventos culturais e ferramentas técnicas do movimento de apoio e prevenção do suicídio em escala nacional e mundial. O CVV é membro e também mantenedor do BW- Befrienders Worldwide.

Recentemente, como aconteceu em outras épocas, os postos tiveram que se reestruturar com um suporte técnico adequado para receber as ligações telefônicas do sistema 188 gratuito, cedido pela Anatel e por convênio com o Ministério da Saúde.  Além disso, seria preciso continuar mantendo a rede digital, para os atendimentos por computador. Essas despesas continuaram sendo mantidas pela contribuição dos voluntários. 

 

Prefeitura inaugura o serviço “Santa Maria Acolhe”

Em novo formato, serviço atende casos de comportamento suicida, além de seguir acolhendo as vítimas e familiares da Boate Kiss.

 Selando o compromisso de manter ativo e ampliar um serviço criado à época do incêndio na Boate Kiss, a Prefeitura de Santa Maria vem, desde o início do ano, trabalhando na reformulação do Acolhe Saúde. O antigo serviço foi encerrado, dando lugar ao “Santa Maria Acolhe”, que passou a funcionar na Rua Treze de Maio, nº 35, com nova equipe e com a ampliação das atividades. A solenidade de inauguração foi realizada na manhã desta quinta-feira (27), encerrando as atividades da campanha Setembro Amarelo. Na nova configuração, o trabalho do Santa Maria Acolhe contará com o apoio do Centro de Valorização da Vida (CVV) e da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM).

No novo formato, o Santa Maria Acolhe atende casos de crise subjetiva relacionadas ao comportamento suicida. Os atendimentos são voltados para as pessoas que acessaram os serviços de Urgência e Emergência do Município e os da Rede Básica de Saúde e da Rede Intersetorial (e que não possuem vinculação com serviço de Saúde Mental de referência). Além disso, a equipe multiprofissional também segue oferecendo acompanhamento aos casos relacionados à Boate Kiss que ainda demandam cuidado especializado.  Na inauguração, a secretária de Saúde do Município, Liliane Mello Duarte, destacou que o Acolhe nasceu de um trabalho voluntário, criado com o objetivo de planejar e executar ações no âmbito da saúde à população afetada direta e indiretamente pelo incêndio na Boate Kiss. O serviço chegou a atender, no primeiro ano, seis mil pessoas. 

O Santa Maria Acolhe conta com uma equipe multiprofissional composta por uma assistente social, uma enfermeira, uma psicóloga, um médico e uma recepcionista. Além de oportunizar um espaço de promoção e prevenção em Saúde Mental relacionado à temática do suicídio, o serviço também oferece grupos de acolhimento para identificação das demandas de cuidado dos usuários; grupos de escuta de promoção à Saúde Mental e potencialização da vida; apoio matricial às equipes da Atenção Básica do Município; entre outras ações. 

 

 


Fluxograma de um modelo de posto físico de prevenção publicado pela revista Superinteressante em 2010.  



O POSTO DO FUTURO

Com exceção da Abolição (SP-Capital) e Porto Alegre (RS),  apenas alguns dos  primeiros postos de prevenção  ultrapassaram os 40 anos de funcionamento sem interrupção, a maioria com endereços fixos e sedes proporcionadas por suas mantenedoras. São os frutos do baby-boom  da primeira  expansão de  1977 e sobreviventes programa de fusão das siglas CVV-Samaritanos. Até hoje alguns deles guardam as placas do programa como relíquias de um tempo que rendeu experiências inesquecíveis. Muitos voluntários fundadores desses postos já faleceram e outros ainda militam religiosamente na obra que ajudaram a erigir. 

É importante lembrar que, embora vinculados jurídica e afetivamente a uma organização central, os postos assumem em suas localidades uma personalidade própria, construída pela cultura local e pelas ações específicas dos grupos voluntários. Funcionam como representantes da franquia social, aplicam os programas, porém são organizações com identidade e dinâmicas próprias. Isso explica a longevidade de alguns deles, ultrapassando a idade de meio século, como é o caso de Porto Alegre e Abolição, este último herdeiro dos núcleos primitivos das ruas Maria Paula e Francisca Miquelina, na capital paulista. Os frutos do baby-boom da primeira expansão já alcançaram a idade de 40 anos. Cada um deles tem suas próprias trajetórias para explicar e histórias para contar.

A fundação e organização dos postos surgiram e foram estruturados para funcionar em mundo plano, cuja geografia física era regulada por regiões e divisões territoriais de bairros, cidades, estados e regiões. Mas, desde quando os atendimentos passaram ser feitos  à distância, por telefonia fixa, já se tinha conhecimento de que a tecnologia provocaria futuramente as mudanças que se operam atualmente na organização e funcionamento nos postos. A natureza desse trabalho é essencialmente de contato humano, porém os meios facilitam e tornam possíveis alguns tipos de comunicação e expressão que presencialmente seriam impraticáveis, pensando no sigilo e anonimato dos interlocutores. Isso explica, em parte, porque cidades gigantescas como São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte  contam com quatro ou cinco postos para atender um população de até 13 milhões de habitantes e outras com 30 a 40 mil habitantes realizam a mesma função com apena um posto. Solidão e suicídio não é exclusividade de grandes metrópoles. Em algumas cidades o foco de prevenção são os bairros rurais, como é o caso de algumas regiões interioranas do Rio Grande do Sul. 

A relativização do mundo plano e a chegada do mundo digital vêm trazendo muitas transformações na organização estrutural dos postos. 

Com  a popularização do computador pessoal  e da internet no final dos anos 1990 a ideia de um posto virtual  e do atendimento automatizado voltou a povoar a mente de alguns voluntários mais observadores e ligados em tecnologia, vislumbrando naturalmente uma revolução já esperada. É que uma década antes voluntários congregados num encontro nacional foram surpreendidos por um trabalho do então posto de Campinas que descrevia a possibilidade do voluntário  ser substituído por uma máquina, com repertório próprio de respostas compreensivas. Essa ameaça ao humanismo dominante entre os voluntários serviu para estimular o aperfeiçoamento pessoal e da abordagem nos atendimentos. Foi um período de muitos estudos e intensas buscas de conhecimento. A experiência do posto virtual marcaria mais tarde as mudanças exigidas pela Era Digital e também antecipou as práticas de atendimento, treinamento e encontros virtuais imposto pelo corona vírus. 

Na década de 1970 já existiam espalhados cerca 250 postos dos Samaritanos pelas Ilhas Britânicas. Não eram postos convencionais, de endereços jurídicos, mas as próprias residências de voluntários que disponibilizavam seus endereços e telefones para atendimento. Para os grupos voluntários do Brasil essa era uma experiência que durante anos foi considerada  como algo impensável, fora de cogitação, porque passava a imagem de descontrole e quebra do nosso padrão de unidade administrativa e do comportamento voluntário. 

Dois acontecimentos históricos se encarregariam de promover mudanças  na concepção e postura dos grupos de prevenção em relação à isso: o aparecimento e propagação da telefonia celular e móvel e o impacto da pandemia. Antes deste último já estudava-se a possibilidade de criar um aplicativo de treinamento de voluntários, cogitando-se também o atendimento móvel, tendo o voluntário treinado cadastrado e disponível como posto virtual. Este seria o modelo de posto do futuro. O projeto  não se efetivou, permanecendo alguns anos em stand by, por falta de direcionamento e também pela falta de uma  efetiva necessidade social dessa ferramenta na época em que foi idealizada. Recentemente houve uma onda de criação de aplicativos e dispositivos nas redes sociais para prevenção do suicídio, revelando positivamente uma preocupação com o assunto. Entretanto, a grande maioria desses aplicativos possuem conteúdos diretivos e salvacionistas, claramente afastados da concepção compreensiva de apoio. O COVID-19 forçou os grupos a repensarem sua organização nesse sentido. 

O VOLUNTÁRIO E A AMIZADE VIRTUAL

A amizade é um dos tesouros mais valiosos que a humanidade já se apropriou como riqueza interior.  Tesouro que raramente se perde, pois fica apenas suspenso pelo gesto de estranhamento, causado pelas crises momentâneas que tomam conta das emoções e sentimentos humanos.  Os estranhamentos entre as pessoas são muitos e diversos, mas o mais comum atualmente é aquele que acontece quando encontramos fisicamente com  os chamados amigos virtuais que conhecemos e nos relacionamos pelas redes sociais.  Aos sermos vistos uns pelos outros fora do ambiente virtual somos tomados por uma sensação de constrangimento presencial  aparentemente inexplicável e que nos faz desviar a atenção com fingimentos e gestos de fuga, para evitarmos o contato face a face.  O que era até então superficial e aparente corre o risco de aprofundamento e revelação do vazio. Imaginamos em poucos  segundos o quanto essa intimidade presencial seria constrangedora e logo desviamos o olhar para encontrar uma rota de fuga e evitar que o contato mais próximo aconteça.  É evidente que essa relação virtual não se trata de uma amizade sólida, a não ser  que seja corajosa e espontânea o suficiente para frear a fuga e a vergonhosa indiferença que toma conta de nós. É um momento terrível, que parece estarmos nus e desmascarados perante alguém que ameaça a nossa privacidade. Mas tem momentos que essa amizade realmente se concretiza porque estamos bem e dispostos a mostrar como realmente somos. 

Este tem sido o motivo de tantas decepções e conflitos que derrubam as amizades virtuais. E também do reatamento, quando as empatias corrigem os limites das simpatias e os choques de antipatias.  Por quê agimos com indiferença e fingimento nesse encontros presenciais? Pode ser por temor defensivo, que se transforma em disputa mental, na qual tentamos passar a imagem de força e superioridade perante o outro que nos causa o sentimento de ameaça.  Isso teria como causa  o sentimento de autossuficiência, que socialmente a gente disfarça com etiquetas sociais, mas que no ambiente virtual nem sempre funcionam, pela impossibilidade física dos olhares e outros gestos físicos de cordialidade. No futuro talvez consigamos evitar estranhamentos e  fazer os reconhecimentos de forma menos artificial e mais autêntica, emocionalmente falando. Sofreremos menos do mal da timidez.


O DESAFIO DE APRENDER A OUVIR

Cantos de prazer,

Cantos de angústia,

Cantos de defesa territorial,

Cantos de alerta,

Cantos de voo,

Cantos de plumagem,

Cantos de ninho, 

Cantos de alimento”

(Canções dos pássaros segundo a classificação dos ornitólogos. R. Murray Schafer. A afinação do mundo, 1977).


De todos os desafios que se encontra para quem ingressa na atividade voluntária de prevenção, o maior de todos é aprender a ouvir, uma postura que está frontalmente contrária ao que é comum no convívio cotidiano. 

Na prevenção, ajudar significa ouvir. Só isso. Tudo que vem depois são complementos da escuta. 

Amar o próximo significa ouvir o próximo. Compreender as pessoas significa ouvi-las. Estar perto delas significa ficar em silêncio e atento ao que vão falar e também ao que não vão ou não querem falar. 

Muito anos foram necessários  para entender e compreender  que ouvir é um estado de espírito, uma disposição decorrente de uma abordagem cuidadosa na qual nos aproximamos, aceitamos, compreendemos e respeitamos. 

Cada uma dessas posturas exige um tempo de reflexão em nossas conversas e que se repete cada vez que algo é comunicado pelo outro que está  conosco. 

Ouvir não é fácil , mas se não houver escuta não haverá possibilidade aproximação, aceitação e compreensão. 

Ouvir coisas corriqueiras já não é fácil, imagine então ouvir coisas sérias, porque não somos educados para tal. 

Quando ouvimos, quase sempre o fazemos de forma distraída, sem muito interesse, se prestar a devida atenção, só pra dizer que estamos ali, mas sem o respeito e a consideração que todos os assuntos merecem. 

Fomos educados, sim, para falar, responder, explicar, argumentar, tudo racionalmente. São os barulhos da razão e da extroversão, que se colidem de forma conflituosa e ecoam de forma dissonante em nosso ouvidos. Não cultivamos uma atenção diferenciada, mais sensível e compreensiva, para ouvir os sons da introspecção, os barulhos íntimos da emoção. 

Num mundo de muitos ruídos e surdez epidêmica, o som que vem do cérebro é prontamente identificado. Já o som que vem do coração é comumente ignorado, bloqueado e rejeitado por motivos que todos sabemos, mas que não são ditos de forma aberta. É o que  acontece com os sentimentos, que são sistematicamente interditados e proibidos, por causa dos seus constrangedores efeitos colaterais.

Quando nos tornamos ouvintes, logo destoamos de tudo e todos, pelo silêncio que transborda dos nosso olhos e dos nosso gestos. Então, logos ficamos expostos e disponíveis. Quem precisa comunicar os sons da angústia e outras necessidades, rapidamente nos percebe e  se volta para nós pedindo um instante de atenção. Como eles sabem que somos ouvintes?

 


Telefono Amico, posto de prevenção na Itália, fundado em 1967.



CURIOSIDADES DA PREVENÇÃO VOLUNTÁRIA

 

Voluntários em 1972 durante a inauguração da Clínica Francisca Júlia em São José dos Campos. Acervo de Rosa Maria Carleto Tosello.


Durante muitos anos foi obrigatório o uso de paletó e gravata para os plantonistas masculinos no atendimento presencial. Não era uma imposição, mas um costume comum na cidade, exigência de etiqueta social da São Paulo da Garoa. Era proibido fumar durante o plantão, medida até hoje mantida em função da higiene, segurança e atenção máxima aos que buscam ajuda nos plantões. 

Diversos objetos eram deixados no plantão pelos atendidos em crise suicida. O mais curioso deles foi um revólver escondido dentro de uma bíblia. O fato foi relatado em um dos nossos boletins. O “troféu” da desistência de suicídio, guardado durante algum tempo foi pauta de uma reunião da diretoria, que decidiu dar fim ao mesmo.  

O primeiro plantão noturno das 24 horas, conhecido como Corujão, foi feito numa segunda-feira. Para atingir as 24 hs de atendimento ininterrupto foi criado o plantão noturno ou famoso corujão que era feito por plantonistas do sexo masculino das 22 às 7 da manhã e durante muitos anos coube a cada um duas noites por mês além do seu plantão convencional.

O primeiro plantão foi feito no dia 01 de março, às 16 horas, pela voluntária Misayo Ishioca. Havia muita curiosidade e expectativa, porém, como não havia qualquer iniciativa e preparo de divulgação do trabalho, não houve nenhuma chamada. 

Os primeiros postos de prevenção tinham orientação religiosa. A abertura  para voluntários que não religiosos aconteceu em 1974 e o primeiro posto piloto dessa experiência foi em Santo André, que teve início no dia 24 de dezembro de 1975. Essa abertura fazia parte do plano de expansão dos postos.

A primeira tentativa de realizar um trabalho de acolhimento e tratamento em saúde mental relacionada à prevenção do suicídio foi no bairro de Americanópolis, em duas casas alugadas. Decidiu-se então pela construção de um prédio para atender 15 pacientes, com internação curta, em caráter experimental. Mas o terreno que tinha sido doado  era grilado e foi reclamado pelo proprietário. O doador era Valdemar Nunes, voluntário, que prontamente compensou o engano do qual também foi vítima com a doação de uma área em São José dos Campos, onde seria construída a Clínica de Repouso Francisca Júlia. 

 Nancy Pulmann Di Girolamo, enfermeira e fundadora do Instituto Espírita Nosso Lar, foi uma das instrutoras do primeiro curso de voluntários , em 1961. Sua exposição foi contrária ao da instrutora enfermeira da aula anterior, que havia dito ao organizador do curso que na plateia de 30 pessoas havia um material humano péssimo e sem qualificação. Nancy afirmava categoricamente que ali está um ótimo material humano, pessoas com disposição e vivências cotidianas com o ser humano: um vendedor, donas de casas, um motorista, etc.  Na semana anterior a enfermeira dizia que o resultado seria um fracasso, pois eram atendentes leigos. Na semana seguinte Nancy fez a seguinte consideração sobre a plateia que estava reduzida a 16 pessoas: “Se em 100 anos vocês salvarem uma só vida, todo o trabalho estará justificado”.  

Os primeiros plantonistas dos postos de prevenção tinham  três categorias, distinguidos por empenho e responsabilidades voluntárias: os Assistentes, Socorristas e os Samaritanos. Os  primeiros eram admitidos após por um período probatório para o plantão e os Socorristas e os Samaritanos tinha como requisito terem feito os cursos de aperfeiçoamento.


 Um ativista político, considerado o inimigo público número 1 de São Paulo, na época do regime militar, foi atendido na rua Abolição  e seu nome  nunca foi revelado pelo voluntário que o atendeu, hoje já falecido.  O fato foi relatado 40 anos depois, sempre mantendo em sigilo e a identidade de quem pediu ajuda.

A casa que se tornaria o posto da rua Abolição pertencia à Sra. Judith Mazzuca, irmã do conhecido maestro Silvio Mazzuca. Nela funcionou uma fábrica de perucas de um comerciante chinês, que abandonou o imóvel, tendo o mesmo sido invadido por moradores de rua. A proprietária aceitou a troca da casa, que teve de ser totalmente reformada, pelo apartamento onde funcionava o  posto na rua Francisca Miquelina. Na escritura do imóvel havia a descrição, nos limites de fundos do terreno, de uma de uma pedra e de um rio chamado Anhangabaú, que em determinado ponto se juntava ao rio Bexiga. 

O Posto pioneiro paulistano  teve que mudar de lugar por causa de reclamações de moradores de um edifício de apartamentos onde funcionava: na rua Maria Paula e na rua Francisca Miquelina. Quando foi feita essa aquisição o condomínio ainda não havia sido definido como prédio residencial.  

Um dos ativistas paulistanos da prevenção na época do regime militar foi o voluntário Marius, nome de plantão do Coronel Marius Vieira, oficial do Exército e pai da atriz Susana Vieira. 

 Duas voluntárias, ao deixarem o plantão em Santos, foram socorrer uma criança que haviam ligado pedindo ajuda para salvar seu pato de estimação, que corria risco de vida. Depois de pegarem o pato, elas tentaram encaminhar  a ave para diversos órgãos públicos da cidade sem obter sucesso. O caso foi relatado por elas numa reunião mensal de treinamento, para ilustrar o perigo de envolvimento pessoal com os problemas dos atendidos. 

Os postos de prevenção no Brasil já formaram nos últimos 60 anos mais de 40 mil voluntários e multiplicadores.

O voluntário mais antigo em atividade é Arnaldo Coutinho. Atua no CVV desde 1968. Antes e depois do seu ingresso, ele conviveu durante 15 anos com Comandante Edgard Armond, inspirador da fundação do primeiro posto e com todos fundadores e voluntários que tiveram participação decisiva na construção das nossas atividades nos últimos 60 anos. Suas memórias foram registradas recentemente numa live do Youtube,  no canal Como Vai Você.

A prevenção já foi tema minissérie da Rede Globo, nos anos 1980, ao protagonizar os episódios do programa Caso Verdade, com roteiro de Walter Negrão. “Disque CVV para viver” foi o título da minissérie, escolhido pelo ator e diretor Paulo José. 

Neusa Romeiro, voluntária desde primeira década da fundação do primeiro posto, foi o  primeiro exemplo de testemunho público dos  princípios e práticas da escuta solidária e sigilosa. Ela atendeu várias vezes uma moça que travava um conflito de relacionamento e separação conjugal. A atendida acabou se matando e o ex-marido quis tirar satisfações na justiça com a direção do posto. A plantonista foi intimada em audiência no tribunal e, na presença do ex-marido da atendida, foi solicitada a testemunhar o que sabia sobre o caso. Neusa dirigiu a palavra ao juiz afirmando que não falaria nada  em respeito à vítima e ao compromisso que tinha com a instituição na qual atuava, que primava pelo sigilo das conversas. Reafirmou que não falaria, mesmo se fosse punida pela justiça. O juiz ouviu sua declaração e dispensou-a do depoimento fazendo questão de parabenizá-la por sua atitude de respeito e fidelidade aos seus compromissos.

Três ônibus com 70 pacientes retirados do Hospital Colônia de Juquery, transportando pacientes psiquiátricos sem nenhuma identificação, foram os primeiros internos da Clínica de Repouso Francisca Júlia na fase inicial de funcionamento em 1972.  Eles foram recebidos em S. José dos Campos pelo voluntário Arnaldo Coutinho.  O projeto exigido pelo então governador Laudo Natel previa 600 leitos. As tratativas para a construção dos alojamentos e a transferência dos primeiros pacientes foram feitas pelo voluntário Marius, que era funcionário do gabinete do governador. Na época o Juquery contava com uma população de 19 mil alienados. A promessa feita pelo governo de arcar com as despesas de internação não foram cumpridas.

Os voluntários da Clínica Francisca Júlia nas primeiras viagens de São Paulo a São José dos Campos e tinham que levar marmitas para as refeições diárias. Naquela época o local da clínica ficava na área rural, distante 10 quilômetros do centro da cidade. 

O estágio supervisionado durante o processo de seleção de voluntários foi implantado em 1983 em caráter experimental no posto da rua Abolição e apresentado durante o Conselho Nacional do CVV, realizada em São Bernardo do Campo. Antes os voluntários ingressavam diretamente no plantão, após a preparação teórica.  Diante da reação de alguns voluntários questionando se o treinamento in loco não seria uma quebra de sigilo dos atendimentos, o Rev. Chad Varah , fundador do Samaritanos, estando presente, fez a seguinte observação: “O momento no qual nos reunimos também é sigiloso e no plantão também somos todos samaritanos”. 

A Bela Vista ou Bexiga, região dos primeiros postos nos anos 1960 foi também localidade dos endereços dos primeiros registros de suicídio na cidade de São Paulo. Foi ali também  que surgiram os primeiros núcleos de tratamento psiquiátrico, sempre marcados pela ignorância da condição mental e desrespeito para com a condição humana. Nessa trajetória, os hospícios e manicômios funcionaram por longos anos como pontos complexos e obscuros do conhecimento das  doenças psíquicas, enquanto os postos de prevenção surgiriam como espaço  de acolhimento compreensão simples da saúde mental e da prevenção do suicídio. 

O Rev. Chad Varah, fundador dos Samaritanos em Londres, visitou o Brasil duas vezes: em 1977, quando veio propor a fusão CVV-Samaritanos para a expansão de postos na América do Sul; e em 1982, como representante do Befrienders International, ocasião da formação do Conselho Nacional. Membro da Igreja Anglicana, Chad era radicalmente contrário à pregação religiosa nos serviços de prevenção do suicídio. Nessa visita, Chad visitou o posto de Santos, a sede do jornal A Tribuna  e também a cidade histórica de São Vicente

Em conjunto com posto do CVV de Brasília, que cuidou da tradução do texto, o CVV distribuiu aos voluntários no início dos anos 1980 um opúsculo contendo a introdução do livro “Os Samaritanos nos 80”, de autoria de Edward Chad Varah. 

 As palestras nas Reuniões Gerais de Plantonistas (hoje RGV) nos anos 1970 e 1980 na grande São Paulo eram marcadas pela presença de centenas de pessoas e abrilhantadas por convidados especiais falando de temas curiosos e capazes de sensibilizar a capacidade compreensiva dos voluntários. Entre muitos expositores de destaque, tivemos o jornalista e escritor Percival de Souza, falando sobre as condições a vida  dos presidiários do complexo do Carandiru. 

 Uma das palestras mais interessantes, e que foi transformada em opúsculo de estudos pelos voluntários, foi a Dr. Alankardec Gonzalez,  voluntário especialista, sobre “Como os plantonistas podem se proteger contra a manipulação de Psicopatas”.

 Além da abordagem não diretiva nos atendimentos,  Carl Rogers tornou-se um autor bastante influente entre os voluntários por meio do texto “Tornar-se Pessoa” (1961) e também  do artigo “A Pessoa do Futuro” (1979), ambos profundamente relacionados à Proposta de Vida. 

Sobre a intenção e experiência inédita da atuação de leigos na prevenção do suicídio, o psiquiatra Wilson Ferreira de Melo disse aos voluntários pioneiros: “Em dez anos você estarão sabendo muito mais do que eu sobre suicídio”. E ofereceu uma das salas do seu consultório para que trabalho  continuasse os atendimentos nos primeiros meses de funcionamento.  

Os primeiros cartazes de propaganda eram feitos em cartolinas e folhas de papel ao maço. Nos anos 70 e 80 o voluntário Alcides Alegretti produzia e imprimia cartazes de rua, juntamente com outros  impressos, em uma oficina gráfica nos fundos do Posto Abolição. 

Um dos trabalhos mais curiosos apresentados pelos postos nos primeiros nos CN (congresso nacionais) foi um que tinha esse título profético, tecnologicamente falando: “Pode a máquina substituir o plantonista?”

A redatora e posteriormente executiva publicitária Cristina Carvalho Pinto foi a criadora da nossa primeira campanha nacional de anúncios de atendimento e também do Programa CVV-Samaritanos, para expansão de postos em 1978.  Sobre essa época ela declarou recentemente: “A liderança na criação surgiu naturalmente, quando eu tinha 25 anos, na então CBBA, agência do inesquecível Renato Castello Branco, onde aliás tive o privilégio de conviver com a primeira mulher presidente de agência no Brasil: Hilda Schutzer”. 

Com a expansão dos postos nos anos 1980, os voluntários mais antigos eram constantemente solicitados a ministrarem aulas de atualização de conhecimentos aos novos voluntários. Esses eventos eram chamados de “Reforçadas” e mais tarde “Andanças”, que também funcionavam como pretexto para a confraternização.

Os primeiros contatos do CVV com o Samaritanos  em Londres foram feitos em 1964 pela voluntária Elsie, que era inglesa e passava férias na Inglaterra. Levando nossas experiências para o Chad Varah, este ficou muito impressionado constatando que, apesar da enorme distância,  havia uma grande similaridade entre duas instituições. Alguns anos mais tarde passam a fazer contato pelo aparelho Telex, feito com a colaboração de um hotel de São Paulo, que enviava a mensagens para outro hotel em na Inglaterra.    

Três livros que marcaram a aprendizagem dos voluntários e que sempre eram encontrados na biblioteca dos postos de prevenção: “Aconselhamento Psicológico”, de Ruth Sheeffer;  “A Entrevista de Ajuda”, de Alfred Benjamin; e Tornar-se Pessoa, de Carl Rogers. 

A Oração da Serenidade – praticada em núcleos de A.A. – foi uma das alternativas encontradas para universalizar a espiritualidade entre voluntários. Preparo pessoal e concentração interior continua sendo uma prática livre nos postos.

Os Preceitos- prática de reflexão extraída de conceitos comportamentais- também surgiram da necessidade de introspecção no treinamento e na preparação para os atendimentos. A ideia é transpor o conteúdo da esfera intelectual para a esfera pragmática por meio da auto-observação. 

No início da década de 2.000, os voluntários Jacques e Flávio, fundadores do CVV, criaram o CRC-Caminho de Renovação Contínua, reuniões em formato de roda de reflexão para facilitar a vivência de 35 temas existenciais em sistema rotativo: as reuniões sempre começam quando o ingressante chega. As reuniões, que inicialmente aconteciam no bairro paulistano do Ipiranga, foram ampliadas em encontros regionais e posteriormente disseminada pelo CVV Comunidade.

O rolle playing – treinamento de papéis – foi uma das técnicas mais utilizadas no treinamento dos voluntários no início dos anos 70. Essa prática teve diversas variações, como por exemplo o GV-GO, que era a troca de pais nos grupos: um de verbalização e outro de observação. Depois foi a vez dos Instantâneos, verbalização dos sentimentos. Atualmente a ferramenta mais utilizada é o Treinamento de Respostas Compreensivas, formato mais simples e grande eficácia. 

Dados do relatório mensal para o Ministério da Saúde nos atendimento 188 mostram  que a média de disponibilidade por voluntário - de maio de 2019 a março de 2020 - foi de 31.352 horas por mês. Multiplicada por doze meses e pelos 60 anos de existência,  os voluntários já ofertaram desde o primeiro plantão em 1961 uma média de 22,3 milhões horas voluntárias. Não acrescentamos aqui o tempo dos atendimentos presenciais nos plantões, as visitas externas de atendimento, treinamento internos e externos, palestras, atividades assistenciais, congressos, suportes técnicos, promoções e muitas outras ações normalmente não registradas. Se considerada, essa marca certamente seria dobrada. 

O texto “Zero Grau de Libra”, publicado por Caio Fernando de Abreu no jornal O Estado de São Paulo, tornou um clássico do gênero e colocou o autor na galeria dos grandes cronistas da imprensa brasileira e que revelaram o cotidiano das cidades e das suas respectivas épocas. Em formato de oração, o texto com seis parágrafos reúne os personagens mais sofridos das metrópoles, expondo suas marcas e carências, condições tão complicadas e angustiantes que somente a intervenção Divina seria capaz de mudar  destinos tão conturbados. No quarto parágrafo ele suplica pelos que pedem a nossa ajuda nas horas mais avançadas:

“Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem o rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel dão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de taxi que confessa não ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto – olha por todos aqueles que queria ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra vida se não a que vivem”. 


O filme “Praia”, produzido e veiculado em 2001 pela agência  Leo Burnett, no qual a protagonista está sozinha numa praia ampla e deserta, encostada num emblemático barco de pesca, estático sobre a areia.  O filme é interpretado pelo modelo Fernanda Vogel que naquele instante de incertezas e angústias, ocultadas pela sua extrema beleza e graça feminina, foge do barco e corre em direção mar, no qual penetra ansiosa para uma jornada dolorosa, porém libertadora, desaparecendo lentamente entre as ondas.   Tempos depois, aos 20 anos de idade, Fernanda passa por uma experiência muito semelhante ao sofrer um acidente no litoral norte de São Paulo. Despediu-se da vida exatamente como havia interpretado no filme do CVV, cujo slogan final dizia: “A solidão pode dar uma rumo inesperado para sua vida" 


A primeira logomarca do CVV era uma boia salva-vidas, refletindo uma época na qual a nossa abordagem dominante era diretiva e salvacionista. Ela foi usada inclusive na primeira campanha de expansão de postos e depois até meados dos anos 1980. A mudança  foi gradual, em função da nossa própria percepção do trabalho. A primeira mudança foi proposta por Valentim Lorenzetti, que já identificava a necessidade de termos um símbolo mais humanista e menos salvacionista. Daí surgiu o telefone em formato de coração.

Num envelope de papel manilha entregue pelo Comandante Edgard Armond  a Jacques Conchon numa tarde de sábado, em 28 de 1961,  continha recortes da revista Mundo Ilustrado de uma reportagem  sobre os Samaritanos, de Londres. E também um bilhete escrito com os dizeres: “Para que está disposto a servir, aqui está uma oportunidade”. O bilhete foi o fato desencadeador da fundação do CVV.

Sobre o primeiro posto de prevenção, Jacques Conchon recorda no livro “Nos Caminhos da Amizade” que juristas de renome foram consultados e  afirmaram com toda segurança que, para funcionar, o CVV  dispensaria qualquer autorização de órgão públicos. A denominação inicial Campanha de Valorização da Vida e a sigla CVV foi uma sugestão da voluntária Alice Monteiro.  

Já nos final dos anos 1969, a prevenção utilizava atendimento por carta, serviço que tinha muitas solicitações naquela época porque o acesso à ligações telefônicas era muito restrito. Nessa modalidade os voluntários organizavam uma tarefa colegiada, porém sempre preservando entre si a identidade e o sigilo dos solicitantes. Somente os casos excepcionais, que exigiam soluções específicas, eram comunicados aos líderes e à direção do posto, para fossem tomadas as devidas providências.  Os plantonistas eram comunicados sobre a chegada se reuniam para receber as correspondências, fazendo individualmente a leitura e refletindo sobre as respostas que deveriam ser devolvidas aos atendidos. Era, lógico, um serviço demorado, mas visto com normalidade naquele contexto. Muitas dessas cartas eram procedentes dos presídios nas quais os internos revelavam suas angústias e a solidão do encarceramento. Um trabalho muito especial e marcante para quem passou pela experiência de ler-ouvindo; e também responder-refletindo para essas pessoas que pediam nossa ajuda e confiava aos voluntários suas particularidades. 

 

Em primeiro plano à esquerda: Arnaldo Coutinho, Jacques Conchon. Dr. Pedro Martins (ao fundo) e o Cel. Marius Vieira discursando na cerimônia inauguração da Clínica Francisca Júlia em 1972. 

As ideias inovadoras naturalmente encontram resistência e algumas até sofrem combate diante da necessidade de mudanças. Falando sobre essas experiências na prevenção do suicídio, Jacques Conchon dizia que é exatamente essa resistência que caracteriza o caráter inovador dessas ideias e que depois, somente com o tempo, elas vão sendo aceitas e diluídas na naturalidade. A adoção do caráter laico da prevenção, os treinamentos de papeis na simulação de atendimentos, a introdução de obras e autores sobre entrevistas de ajuda e reflexões sobre a não diretividade na relação de ajuda, o estágio supervisionado dos novos voluntários foram alguns assuntos que inicialmente foram alvo de resistência parcial nos grupos de prevenção. 


MEMÓRIAS DOS VOLUNTÁRIOS


NA CONTRA-MÃO

Um tumulto no Viaduto do Chá, seis horas da tarde. Muita gente indo e vindo. E de repente observa-se uma correria. E  o indivíduo galgava a mureta para pular. E no início o segurara. E logo veio a polícia, com as algemas em mão. E um dizia para outro: “Põe as algemas, põe as algemas”!!!  Eu me aproximei movido pela curiosidade  e disse pra eles.   “O que ele não precisa  não de algemas. O que ele precisa é de um amigo”. Eles se entreolharam e bradaram: “Já pensou se ele pula..” na época eu lembrei do Chico Buarque: “Morreu na contramão atrapalhando tráfego”, quer dizer a preocupação não era com o ser humana No final da história eu disse: “Pode tirar as algemas que ele vai comigo tomar um café. “Você aceita tomar um café comigo? Ele disse: “Aceito”. Tiraram as algema e ele me abraçou. E me disse: “Eu me sinto muito só”.  Um paradoxo, milhares de pessoas indo e vindo e ele me dizendo “Me sinto só”.  Jacques Conchon.

CASO DE POLÍCIA

Em 1982, um atendida do posto da Abolição  deixou  no plantão uma quantia em dinheiro num embrulho, a título e pagamento ou doação. O Alegretti foi chamado para resolver a questão e explicou para a pessoa, que o CVV não recebia nenhum tipo de pagamento e doação dos seus atendidos.  De forma ríspida e indiferente,  ela não deu ouvidos às explicações e foi embora  se recusando a levar o embrulho. Em seguida, dirigiu-se ao distrito policial da Liberdade e deu queixa de extorsão.  Intimado pelo delegado que recebeu a queixa, o Alegretti compareceu ao distrito. Enquanto aguardava ser chamado, entrou pela porta da delegacia um rapaz que o reconheceu   e logo quis saber o motivo da sua presença ali.  Era um voluntário do CVV que também era policial civil. Ambos conversaram com o delegado e o caso foi devidamente esclarecido e encerrado. 

ZONA DE PERIGO E DE AMOR

Certa vez o Alegretti recebeu um telefonema com o pedido de socorro de uma moça que havia cortado os pulsos. Ela não queria ser atendida pela ambulância alegando que não gostaria de se expor. Foi uma situação difícil e naquela  época ainda não tínhamos  a experiência que depois adquirimos sobre esse tipo de abordagem. Sabíamos que não poderíamos ir, pois desconheciam o local e também  em quais circunstâncias havia ocorrido essa situação. Decidimos, eu e o Alegretti, a ajudar a moça. E fomos com fé e coragem, convencidos de que não era algo banal ou perda de tempo. Nossos corações diziam isso em forma de ânimo.  Era um lugar próximo da Estação da Luz, local conhecido área de prostituição. Era no final da tarde. Chegamos na entrada do prédio e o zelador permitiu a nossa entrada indicando o apartamento. Eu tenho essa cena bem nítida gravada na minha mente e das palavras dela ao nos receber: “Eu sabia que vocês viriam”. Realmente  havia cortado os pulsos e ela mesma tinha feito os curativos. Contou-nos que já havia ligado várias vezes para o CVV e por isso tinha muita confiança de que não iríamos chamar nem a ambulância nem a polícia, pois isso iria colocá-la numa situação mais difícil ainda. Nos contou sobre a sua solidão, o seu desencanto e a falta de vontade de viver, para fugir daquilo tudo. Mas resolveu nos ligar porque o CVV era um lugar de pessoas que tinham respeito por todos, até por ela. Antes de sairmos, convidamos par que ela fosse ao plantão, para continuar as nossas conversas. Sabíamos que, de alguma forma, havíamos quebrado alguma regra de atendimento, mas decidimos assumir a responsabilidade diante de uma situação até de risco. Mas depois vimos que a nossa intuição e ousadia não tinham sido em vão. Era alguém que não tinha nenhuma condição digna para viver e, ainda assim, lembrou de nós como os únicos amigos que ela tinha e isso estava estampado no rosto dela quando nos recebeu dizendo “ Eu sabia que vocês viriam”.   

VAI UMA RIFINHA?

Nos primeiros anos do CVV sempre tínhamos rifas para vender ou para comprar. Era tanta rifa que já estávamos vendendo uns para outros.  Mas tinha uma companheira que era o verdadeiro terror das rifas. Vendia todas porque tinha um jeito especial de convencer os compradores. Ela tinha um certo conjunto de “lingerie”, embalado,  que já estava até amarelado e sempre era atração para as cartelas de rifa dela. As pessoas compravam ganhavam e devolviam imediatamente o prêmio, em prol da causa. Passado um tempo,  lá vinha ela com a caixa de “lingerie”. Quando ela se aparecia, todo mundo corria porque já sabia do que se tratava o prêmio. Mas ela não desanimava. Um dia a caixinha sumiu, desapareceu e ninguém até sabe até hoje que fim deu.  Mas todo mundo que atuou no CVV naquela época  sabe que todas aquelas cartelas se transformavam em dinheiro e depois em tijolos para a construção das primeiras paredes da Clínica Francisca Júlia. Rosa Maria Carleto Tosello.


FACÍNORA E INIMIGO NÚMERO 1

Quando o CVV completou 50 anos, em 2013, a comemoração foi em 18 de outubro. Coincidentemente ou não era o dia do centenário de Vinícius de Moraes, o nosso grande poeta. Eu não sabia. Alguém me disse: Sabia que hoje é o centenário de Vinícius?

Mas me perguntaram nessa oportunidade: 

- Você tem 50 anos de CVV? 

Respondi: 25 como plantonista e 50 como voluntário. 

- Qual teria sido a sua experiência que você teve, nesses anos todos, aquela experiência que o marcou profundamente???

- Todas as experiências, sem exceção, foram realmente muito gratificantes.

- Mas não teve nenhuma, assim, que marcou mais do que as outras???

Eu comecei a lembrar, comecei a buscar pelos arquivos, a mexer nas pastinhas, vendo observando, por fim me lembrei, mas tardiamente, me lembrei ao sair do recinto, ao terminar a cerimônia de abertura.

Eu cheguei no plantão, na Abolição, eram umas nove horas da noite. A plantonista Vera me disse: 

- Olha, tem alguém ligando insistentemente querendo conversar  com você. Ele disse que vai telefonar. 

- Se vai telefonar, eu atendo. 

E telefonou. 

Monossilabicamente disse.  

- Eu preciso falar com você 

- Eu estou disponível.

- Um detalhe: eu vou aparecer aí depois das onze da noite.

- Não tenho pressa. Eu estarei aqui. 

- Outro detalhe: eu sou Fulano. 

Quando ele disse “fulano” eu realmente fiquei um pouco chocado. 

Naquela época existia estampado nas primeiras páginas dos grandes os jornais a foto de um facínora. E havia em todo o País uma caçada humana, caçada humana comandada pelo Sérgio Paranhos Fleury, procurando esse facínora, inimigo público número um. Havia suspeita de que ele estava no Paraguai. E mandaram um destacamento para o Paraguai. 

Eu fiquei me perguntado: será que é ele mesmo. Mas me lembrei de levar sempre a sério qualquer tipo de chamada telefônica. E falei:

- Eu estarei aqui. 

- Quero garantias.

- Você terá.

- Qual.

- A minha palavra.

- Tá bom.

Desligou. Ele apareceu, quase meia-noite. Não quis entra no prédio da Abolição. Preferiu ficar no corredor, naquilo que chamavam de calabouço, embaixo. Queria conversar ali.  Tinha diante de mim o inimigo público número 1. Acomodou-se e começou a falar.

-  Eu preciso falar! Você não sabe. Não sabe o que é a solidão. 

Realmente eu procurei alcançar, ter o alcance, alcançar  aquele sentimento. 

- Eu vivo foragido. Nunca cometi um crime. Não sou favorável à violência. Mas, considere que outros cometeram crimes hediondos em meu nome. Tenho minhas ideias, que contrastam, opostas, diametralmente opostas do governo reinante. E por isso eu sou caçado. Você não o que é a solidão para quem se encontra constantemente em fuga. 

Parou para pensar.

- Eu vou contar minha vida para você.

E começou a discorrer. 

Lá pelas tantas a sua voz embargara. Um soluço. Daí um pranto contido. E  de repente, um pranto convulso. E chorava, chorava como uma criança. 

E comecei a entender que o facínora era gente como a gente, que inimigo público número era  uma pessoa como outra qualquer. E naquele momento, lembrei-me naquele instante, ao conversar com ele, principalmente quando ele se levantou e me abraçou e se foi. E quando ele se foi eu podia até ouvir a batida melodiosa de João Gilberto, cantando Antônio Carlos Brasileiro de Almeida Jobim: 

“O que você não sabe, nem se quer pressente, é que no peito dos desafinados também bate um coração”.  

Mas que experiência! Que experiência! 

Sabendo, sentindo, que no íntimo ser, na regiões recônditas, existe a expressão da bondade, existe a pessoa boa, existe aquela centelha luminosa. 

Aprendemos que todos são bons. Maus são aqueles que não tiveram a oportunidade de expandir essa centelha exteriorizando-a nos seus atos do dia a dia. 

Essa foi a grande experiência, em meio a milhares e milhares de outras que vivemos”.   Jacques Conchon


CAN-CAN

 Rosângela  e o marido Luiz  foram voluntários na primeira metade da década de 1980. Ela se recorda de uma confraternização de Natal na vizinha sede do Sindicato dos Borracheiros: “Cada grupo deveria apresentar uma atração. Nosso grupo apresentou um Can- Can, mas no final somente os meninos viravam e tinha uma enorme flor costurada no bum-bum. No ano seguinte, levamos meu primo travestido de Carmem Miranda, com turbante e todas as frutas. No começo foi uma gozação, mas na medida que decorria a apresentação o pessoal ficou de queixo caído e ele foi aplaudido com todos em pé.  Luiz Rebouças lembrou do “Corujão”, um plantão da madrugada considerando o mais estratégico e  necessário pelo CVV. Ele fez esse plantão entre 1983 a 1987. E conta: “Os atendimentos telefônicos durante a madrugada eram bastante longos e consequentemente em pequeno número ( às vezes 3, 4 por noite). Já durante o dia eram mais curtos e podiam chegar a 9, 10 por plantão. Mas ambos os horários exigiam muita dedicação, atenção e empatia dos (das) plantonistas. Outra lembrança é que não era incomum ocorrer casamentos entre plantonistas, talvez pela afinidade de descobertas recíprocas no trabalho voluntário.

ALEGRETTI 

“Tanto tempo convivendo com o Alegretti, tão simples, humilde, companheiro que não me recordo de nada marcante, mas  era uma delícia estar com ele  voltava do CVV ou depois da Genebra com ele pegávamos o elétrico Silvio Romero na praça da Sé. Ele morava aqui perto de casa. Vínhamos fazendo companhia um para o outro, conversando, conversando. Vai dar samba. Kkkkk” – Vera Perez


VIAGEM DE TREM 

Fui Voluntária do CVV da Abolição por volta de 20 anos. Fiquei um período na coordenação do posto. Uma das práticas do CVV no anos 1970 era que, há cada 15 dias, depois da primeira entrevista, o voluntário  teria que ter notícias de como estava o atendido. Isso era feito nos casos do atendimento presencial. Desde que o atendido tivesse deixado telefone e endereço para contato. Isso era muito difícil porque naquela época poucas pessoas tinham telefone. E quando tivéssemos que ir no endereço indicado nunca poderíamos ir sozinhos. Íamos na companhia de uma pessoa – não necessariamente um voluntário,  de confiança, chamado de “visitador, que fosse ético, manter sigilo e apenas acompanhar o voluntário.  Me lembro, certa , fomos fazer uma visita na periferia num sítio próximo à Osasco. Fomos de trem até Carapicuiba.  Após o desembarque tivemos que entrar e caminhar numa picada num pasto até chegarmos na casa. A dúvida era o que dizer à família sobre a nossa visita, um a vez que tinha que tínhamos que manter o sigilo sobre a ida da pessoa  com ideia suicida no plantão do CVV. Mas íamos confiantes, orando, com pensamento positivo  de que tudo ia dar certo. Quando perguntávamos o nome  da pessoa apareciam outros moradores. Interessante é que, logo que percebia a nossa presença, o próprio atendido explicava a visita dizendo que éramos conhecidos de outros lugares. Sendo sincera,  não era uma situação confortável, mas a alegria de saber que a pessoas que a pessoa que havíamos conversado alguns dias antes na sede do CVV continuava viva e seguindo sua vida.

CACHORROS BRAVOS

Numa outra visita eu fui acompanhando o Alegretti. Era uma figura. Ele trabalhava na gráfica do CVV, no porão da casa da rua Abolição. Ali ficava atento a tudo o que acontecia no posto e também resolvia qualquer  tipo problema que surgisse. Inclusive quando algum plantonista ligava avisando não iria chegar a tempo, ele trocava de roupa e rapidamente ia cobrir o plantão.  Nesse outro lugar que fomos fazer a visita de verificação tinha uns cachorros, muito bravos por sinal. Chegando na casa fomos recebidos como muita alegria  e o dono prendeu  os cães em algum lugar lá e daí entramos para conversar na sala.  De repente, no meio da conversa, ouvimos os latidos e percebemos que os cachorros tinham escapado e vinham em nossa direção. Que situação. Foi complicado e engraçado  ao mesmo tempo. Eu e o Alegretti , com muito medo, subimos no encosto do sofá para não sermos mordidos e ficamos o tempo todo  gritando  e nos defendendo com os pés enquanto o dono tentava acalmar a situação. Conseguimos terminar a entrevista voltamos rindo muito da situação. Daquele dia em diante, sempre que saíamos  para uma visita, tínhamos uma outra dúvida: será que nesta casa de cachorros? - Rosa Maria Carleto Tosello.


LONGE E ESCURO

O primeiro Posto de Pinheiros funcionava numa casa na Henrique Schaumann, uma avenida larga, de duas grandes pistas, entre a Rebouças e a rua Arthur Azevedo, na época um bairro ainda residencial.  Eu tinha uma enorme dificuldade para voltar para casa, pois fazia o plantão das 20 às 22 horas. Naquela época eu não tinha carro. Não tinha ônibus, nem Metrô. Eu ficava sozinha lá. Aquela porta aberta. Meus pais ficavam muito preocupados. Saía de lá, tinha que atravessar a avenida, depois andar bastante. Era tudo longe. Eu ficava com medo, era um lugar escuro , cheio de árvores. Não tinha ninguém na rua!!!!. Nunca encontrei ninguém para ficar esperando o ônibus comigo no ponto.  Depois ia até a Praça da Sé. Descia no Parque D. Pedro, descia correndo pra tomar o ônibus e chegava em casa por volta das onze e meia, meia noite. Um dia meu pai – muito discreto pai, né -  quando eu cheguei , ele estava no ponto de ônibus. Sorte que o ponto de ônibus era pertinho de casa. Da sacada de casa dava pra ver o ponto. Na esquina tinha um posto de gasolina. Tava tudo escuro.  Aí meu pai veio e fomos juntos pra casa. Enquanto eu me preparava para tomar um lanche, depois do banho, ele tinha escrito  um bilhete, dizendo que eu estava atendendo as pessoas de fora e dificultando a vida da minha mãe... (rindo admirada da severidade e ao mesmo tempo da discrição do pai). Até bem pouco tempo eu tinha essa cartinha. Depois o Valim me convidou para ajudá-lo, aqui onde moro, para instalar o CVV no Pronto Socorro do Tatuapé. Foi em 1980. Era uma sala minúscula, que só cabia um arquivo, uma mesinha e duas cadeiras. Ficava na lateral do prédio, onde ao tinha movimento e era muito difícil receber as pessoas. Era desafiador.   Tânia Carvalho.

ACHEI QUE NÃO PODIA SER VOLUNTÁRIA

“Estive no CVV cerca de oito meses. Uma parte em 1979 e a outra em 1980. Saí contra a minha vontade, porque eu ia casar e trabalhava aos sábados. Meu plantão era aos domingos, das 10 às 14:30. Não tinha tempo para arrumar minhas coisas para o casamento e consequentemente para cuidar também da casa. Gostei muito de trabalhar no CVV era o tipo do lugar que eu era voluntária e a gente tinha que pagar uma mensalidade pra ajudar a manter o prédio e fazia isso com muito prazer. A vida era dura, mas eu fazia com prazer porque  aquilo era um aprendizado, tudo foi um aprendizado. Eu tenho deficiência visual. Sou totalmente cega. Nasci com deficiência. Nasci no interior da Bahia e vim para São Paulo para fazer um tratamento , que não se resolveu . Continuei com deficiência eu perdi a visão por completo   com 17 anos. Eu ouvi no rádio ou na televisão, não lembro, eu ouvi a propaganda e liguei para saber como funcionava o CVV. Fui atendida pela Dona Julieta. Eu achei que não podia ser voluntária porque eu não tinha muito estudo. Ela me disse que isso não era problema e que só precisava ter um coração bom, ter sensibilidade, saber ouvir e respeitar,  ter muito amor a dar ao próximo.  Então eu pensei, acho que isso eu posso fazer isso. Marquei com ela uma conversa, que foi na casa dela;  conversamos bastante e depois ela me inscreveu no curso, que era com o Professor Walter, aos sábados.  Eu fiquei  na rua Abolição. Fiz o curso. Fiz a prova .  Quem me deu a prova de perguntas foi o Seu Marcelino. E na prova prática quem passou por meu assistido foi o Seu Jacques. Nossa, foi assim muito gratificante, quando eles me aprovaram, fiquei muito feliz. 

O curso foi bom. Eu até brincava e reclamava  porque  era tudo muito rápido pra eu escrever: “Professor, o Senhor me esqueceu”!!!. Daí ele voltava e me dava atenção.  Numa conversa fora do plantão, o Jorge e outras pessoas que estavam no posto, na calçada, me perguntou como eu tinha perdido a visão. E contei pra  eles que eu estudava no Instituto de Cegos Padre Chico e quando estava tomado banho de piscina – eu tinha visão reduzida – e as moças que estavam comigo também eram deficientes- e uma delas pulou na água e bateu no meu rosto e tive hemorragia interna. E o Jorge me perguntou se a menina ficou muito triste. Respondi que eu nem quis saber quem era a menina , para não ficar com algum tipo de sentimento contra ela. E ela não teve culpa.  O Jorge ficou muito emocionado e chorou. Quando eu entrei no CVV tinha 23 anos (hoje tenho 66). Lembro que fui fazer uma visita na Clínica Francisca Júlia e os pacientes faziam vários comentários sobre a minha deficiência enquanto eu caminhava de braço dado com uma colega. Eu pensava: eles estão numa condição pior do que a minha, pois não deficientes mentais, sem autonomia. Fui mais forte do que outra colega que começou a chorar ao ver aquelas pessoas abandonadas pelas famílias. Isso foi muito importante para o meu aprendizado. Eu aprendi a ouvir e a respeitar os segredos das pessoas. Aprendi a ver os problemas de uma forma totalmente diferente.  Eu lembro que fiz um único atendimento presencial. Eu fiquei um pouco apreensiva quando soube que alguém queria falar comigo pessoalmente. Não tive medo, mas apreensiva de como seria a reação da pessoa diante de uma pessoa cega. Mas deu tudo certo. Conversamos e nos despedimos com um abraço.  Fui convidada para a festa dos 40 anos do CVV. E tenho muitas saudades. Conversando com a Dona Julieta, disse pra ela: se tem Julieta deve ter um Romeu. Ela respondeu: “E tem, aqui no plantão”. Conheci esse Romeu, que era marido da Rosa, de quem eu sou amiga até hoje.  Trago comigo muita coisa boa dessa época.  Foi uma escola, apesar dos poucos meses que fiquei. Se tivesse ficado teria ficado aprendido muito mais.  Gostaria que esse livro dos 60 anos – também o livro dos 50 -  fosse gravado para a nossa Biblioteca Braile do Centro Cultural de São Paulo. Quando fui trabalhar na biblioteca, tive a grata surpresa de encontrar lá o Romeu, que era voluntário fazendo gravações de livros em fita cassete. Por isso que fiquei muito ligada a ele e  à Rosa.  Hoje não temos mais o Romeu. Mas temos o Dalmo. Tudo tem um preço (rindo). Soube que já tem o livro dos 50 Anos. E que você está fazendo esse dos 60 ANOS. Vou te pedir uma coisa: se puder gravar ou dar um jeito de alguém gravar esses livros do CVV, vou ficar muito feliz”. – Edna Magalhães Correia.

SALA DE DEZ METROS, DIVIDIDA.

Fui plantonista do posto Pinheiros (SP), por cerca de dois anos, quando o Secretário da Higiene e Saúde da Prefeitura de São Paulo, Dr. Fernando Proença, cedeu uma sala e um telefone pertencente à Secretaria da Saúde, para a instalação de um posto do CVV dentro do Pronto-Socorro da Barra-Funda, experiência pioneira na época. Com um grupo de plantonistas do Posto de Pinheiros e voluntários recém admitidos num curso ministrado no anfiteatro do Hospital Menino-Jesus, demos início às atividades, no dia 29 de Maio de 1978, inaugurando o CVV-Barra Funda. 

A pequena sala de 9 metros quadrados, foi dividida ao meio por uma divisória. De um lado colocamos 2 poltronas para o atendimento pessoal e no outro lado uma mesa, cadeira telefone e um armário. Iniciamos com plantão 24 horas por dia, por estarmos dentro de um Pronto-Socorro.

Como nossa experiência era nova, iniciamos a formação de grupos mistos (até então tínhamos grupos masculinos e femininos para as reuniões de treinamento). Não havendo espaço para as reuniões, inovamos também. Nossas reuniões para treinamentos, discussões da organização, eram realizadas na residência de um dos voluntários. Nossa equipe era muito coesa e mantínhamos uma forte amizade, sempre fazendo contato. (naquele tempo não havia whatsapp). Promovíamos encontros, festas, aniversários, visitas.

Participando das reuniões da diretoria do CVV, recebemos a incumbência de facilitar a instalação de novos postos do CVV em São Paulo. Formamos uma equipe e instalação, cursos de plantonistas, divulgação e assim pudemos participar dos seguintes postos: V. Maria, Tatuapé, Humberto I (no extinto Hospital Matarazzo), Presidente Prudente, Bragança Paulista, Bauru, Sorocaba, Taubaté, São José do Rio Preto, São Carlos, Piracicaba e Mogi das Cruzes. Nossos voluntários da Barra Funda também tiveram participação em outros estados: Vitória (ES), Terezina (PI), Campina Grande e João Pessoa (PB) e Fortaleza (CE). 

Permaneci no CVV até o início de 1985, levando uma grande bagagem para toda a minha vida e verdadeiros amigos para sempre. A chegada e a saída dos voluntários é natural. Para cada um que passa pelo trabalho vivencia uma troca de experiências, emoções, aprendizado, crescimento pessoal, estruturando melhor sua própria vida, sendo fortalecido para enfrentar os problemas do dia-a-dia, com mais alteridade, aceitação, compreensão, entendimento. É pelo trabalho de doação que cada um se torna mais próximo do outro, mais amigo, mais humano. É abrindo o coração para ouvir e compreender que se aprende a conviver com o próximo, sem ficar angustiado pelo seu sofrimento, mas fazendo o que está ao nosso alcance para melhorar um pouco a sua condição. 

Ao deixar o trabalho do CVV, nos deparamos com o mundo tal como ele é, onde não somos plantonistas, mas participantes de uma sociedade, onde precisamos trabalhar, estudar, com as pessoas e seus problemas, compartilhar experiências e sofrimentos. É nesses momentos que agradecemos ao CVV pela bagagem que recebemos, pela segurança que obtivemos, para aceitarmos como são as coisas que não podemos modificar, coragem para modificar as que podemos e sabedoria para discernirmos umas das outras. – Joel Beraldo


NEM LUZ, NEM COLORIDO

Em novembro de 1979 recebi um convite de uma amiga para conhecer um trabalho voluntário. Participei do curso e fui aprovada. Assim fiquei conhecendo como é não ter luz no final do túnel e nem talvez colorido em sua vida. Fiquei apaixonada e assim continuo até hoje. Foi onde  tudo começou, aqui em Santos,  na rua Evaristo da Veiga, 266, no Lar Espiritual  Seara de José.  Amélia.

 

Rosa Maria Carleto Toselo e Fávio Focácio num evento do CVV-Samaritanos nos ano 1970


A GRANDE ESCOLA

O CVV foi pra mim uma grande escola. Fiquei por 10 anos, no período de 1982 a 1992, dos meus 24 aos 34 anos. Minha mãe ouviu uma propaganda no rádio e perguntou se eu estava interessado. Era para a unidade Abolição-SP. Fiquei encantado. Um curso, se não me engano , de 8h, sábado e domingo e ainda precisaria ser aprovado para ser voluntário! Sensacional. O primeiro grande impacto é o tal de não poder faltar no plantão, a não ser que consiga alguém para te substituir. Creio ter aprendido com esta regra uma das maiores lições de minha vida:  a auto responsabilização. Nada de coitadinho. Se é para fazer vamos fazer. Voluntariado, e qualquer coisa, passou a significar entrega, estar por inteiro. Ou está ou não está. E na época, com poucos voluntários no país, este significado tinha um peso ainda maior. Como assim não posso faltar que sou eliminado? Parecia um exagero e foi(e talvez seja ainda) a maior sustentação deste trabalho. Nossos atendimentos tinham uma inspiração na Teoria Centrada na Pessoa, de Carl Rogers. Adorava este posicionamento de não julgar e de escutar o significado do que o outro estava dizendo e procurar clarear suas ideias. Eu diria que foi o segundo grande impacto. Era uma defesa natural de não envolvimento, haja vista as diversas situações delicadas que ouvíamos e ao mesmo tempo aceitar o momento vivido e suas decisões. Porque querer mudar o mundo a partir de minhas convicções? Que exercício maravilhoso a busca em não julgar. Fiquei fã de Rogers. Seu discípulo, Marshall Rosenberg, foi o criador da Comunicação Não Violenta. Que maravilha!  Adorava as reuniões mensais. Uma oportunidade ímpar de rever os casos e no role playing exercitar a empatia, se colocando no lugar do outro e sentir como as palavras e reações caiam para você quando era atendido e assim, melhor se avaliar e aprender. Obviamente que esta prática influenciava positivamente na vida como um todo. CVV também é casamenteiro (rsrs). No curso de entrada um casal administrava (Rosa e Romeu) e depois vi outros acontecerem e para mim também, felizmente. Conheci minha esposa, Eliane Rizk, logo que ela entrou (1 ano após minha entrada) numa reunião com o Jacques e outros líderes e pouco depois ela se transferiu para o meu horário de plantão. Ficamos seus 9 anos juntos. Que presente a vida me trouxe através do CVV. Casamos em 1984 e nossos filhos foram criados com os princípios da prática dos plantões de não julgar, não ameaçar, aceitação, ouvir e refletir sentimentos daquilo que está por trás das palavras e ações. Facilitou muito. Por um tempo passei a representar o CVV na mídia. Que experiência inusitada para mim. Que aprendizado. Muitas entrevistas em emissoras de rádio e televisão e muitas com a Eliane. E com Eliane também, fizemos uma peça teatral com vários voluntários e a apresentamos numa de nossas reuniões gerais para os mais de 100 voluntários de nossa unidade, abordando temas dos plantões. Em 10 anos, devo ter atendido mais de 1000 pessoas. Tomara que eu tenha sido uma voz de esperança a todos eles. A solidão, aliada à depressão e ansiedade continuam em alta e o suicídio também.  Bendito o CVV, através de seus voluntários, que dizem ao mundo que não estão sozinhos e podem ter alguém para desabafar, pois aprendi que o desabafo faz "milagres" quando permitimos que o outro seja ele mesmo.  Convivi com todos os fundadores e bebi da fonte, atestando a beleza do trabalho em sua base, através da intenção boa e a integridade deles. Fiz excelentes amizades. Agradeço imensamente ao CVV por tudo que aprendi. Que sua trajetória continue abençoada e diminuindo a dor do próximo. Parabéns pelos 60 anos. Reinaldo Davi Rizk.


DIVISÃO DE ÁGUAS

O CVV Samaritanos foi sem dúvida um divisor de águas na minha vida. Começar a ouvir as pessoas de maneira totalmente diferente, com interesse genuíno e o máximo de empatia, mudou meus conceitos, meus julgamentos e também meu estado civil. Era uma garota de 19 anos que já começou no curso e foi eleita para líder de grupo (primeira vez que a diretoria fez esta experiência) e fui coordenada por pessoas extremamente experientes e honradas: Dinorá, Alegretti e Romeu. Quanta admiração! Conhecer Carl Rogers, psicólogo do livro “Tornar-se Pessoa”, foi como acender uma luz na minha vida. Mas, de curioso tenho o fato de poder conhecer meu marido atual, há 36 anos, Reinaldo David Rizk. Fizemos plantão juntos e mesmo tão jovem e desquitada (na época não podia divorciar antes de 2 anos) e com uma filhinha amada, nos aproximamos com um amor puro e altruísta. Os aprendizados, além de terem ajudado demais no casamento, na criação dos cinco filhos, também me tornaram a atriz, coach, terapeuta e instrutora de comunicação que sou hoje. O melhor é lembrar que um dia, em um plantão, numa madrugada muito chuvosa, um homem liga e diz: “você tem uma chance de me fazer desistir de morrer” e eu disse: “Estou te ouvindo, atenta e com coração”. Foi o começo de um desabafo de 40 minutos. Eu só sinalizava que estava lá, de alma com ele. No final ele disse: “Hoje não me mato. Obrigado”. Nunca vou me esquecer. Fiz o melhor que pude e torço para que ele tenha vivido uma boa vida! Parabéns também ao CVV pelos seus 60 anos!!!  Eliane Rizk. 

ARTISTAS ATENTOS

Auditório do Sindicato dos Metalúrgicos de Santos, 1982. Aula inaugural  de uma curso de seleção de plantonistas.  Flávio Focássio fala sobre qualidade de vida. Lembra que reclamamos muito das coisas sem percebermos que nós mesmos não cuidamos do que é básico. E dá um exemplo: “Em casa, enchemos o prato de comida e vamos pra a frente da televisão e comemos enquanto assistimos as piores notícias mundo. E achamos isso normal”.  Continua sua fala empolgante  dizendo que o CVV tem uma proposta que pode mudar a qualidade de vida no planeta, que é o cuidado que devemos ter com o próximo. “Se cuidássemos uns dos ouros não teríamos um mundo como este, do qual reclamamos tanto e não fazemos nada para mudar”.  Ao encerrar sua fala recusa educadamente os aplausos pedindo desculpas pelo entusiasmo, mas que estava sendo somente sincero.   A plateia voltou a ficar em silêncio. Parte dela estava deslocada e assistia atentamente à aula. Não eram candidatos ao grupo de futuros voluntários e sim  atores de um peça de teatro que aguardavam o fim da aula para se preparem para o espetáculo da noite. Chegaram mais cedo e resolveram assistir à aula. Um dos atores se levantou e agradeceu pela oportunidade de estar presente no momento em se defendia a dignidade humana e convidou a todos para assistirem ao espetáculo. O ator era Francisco Milani e o elenco que o acompanhava fazia parte da peça Barrela, de Plínio Marcos, que recentemente liberada pela censura e que falava sobre as condições de vida dentro de uma cela de prisão. 


IRMÃO DOENTE, A FAMÍLIA DOENTE, EXCETO MINHA MÃE.

Nasci em 1950, tinha um irmão cinco anos mais velho. Meu pai foi da FEB (Força Expedicionária Brasileira). Depois que voltou da Guerra nunca mais foi o mesmo (perdeu o pai aos 14 anos e a mãe aos 18, quando já estava no quartel). Meus pais se conheceram aos 12 anos, as famílias eram amigas e se casaram quando ele voltou. Contava que no quartel, ainda na cidade de Maceió, quando ficava na guarita, via quando chegava os vaqueiros trazendo corpos ou o que sobrava deles. Em muitas noites chegavam, de madrugada, alguns soldados caminhando, não se identificavam e passavam pelas barreiras de arame farpado e desapareciam. Nem sempre os maqueiros também entravam pelo portão. Passavam pelas barreiras e também sumiam. Foram muitos os fenômenos relatados e também a perda de amigos. Minha mãe também, desde criança, via ouvia seres que os outros não viam nem ouviam. As bisavós paternas vieram da Itália já com conhecimentos espiritualistas. Faziam Evangelho no Lar. É por serem vizinhos, minha mãe passou a ir escondido da mãe,  que foi criada em colégio de freiras. Depois com o tempo passou a aceitar. A casa do nono Asquino era na rua Jaceguai, exatamente onde construíram o Prédio da Federação Espírita do Estado de São Paulo.

Quando minha mãe teve meu irmão foi parto à  fórceps porque ele era grande. O médico rompeu o osso do ombro e ligamentos, fazendo com que, no decorrer dos anos, ele ficasse com mau desenvolvimento do lado direito. Perna e braços mais finos e movimentos limitados.  Nessa época já começou a longa jornada de minha mãe ao HC- Hospital das Clínicas, com tratamentos ortopédicos e no decorrer dos anos também psiquiátricos e espiritual. Meu irmão via pessoas, ouvia vozes e a não aceitação pelo seu corpo físico só piorava.

Com o decorrer dos anos meu pai passou a frequentar lugares pouco recomendáveis, para encontro com mulheres, e geralmente chegava em casa obsediado e com o efeito ainda do que tinha bebido. Não ficava bêbado, mas era violento, atirava pratos e panelas pelas paredes fazia aquele escândalo. Infelizmente eu tinha dois anos e ainda me lembro dessas cenas. Meu irmão falava sempre: “Eles chegaram, eles chegaram” e, dormindo, falava com quem ele via e os mandava embora. Descrevia os risos e discutia com os que vinham com o meu pai, com  certeza obsessores.

E assim fomos caminhado, mudando de casa em casa, e sempre a mesma situação. Quando meu pai dormia,  minha mãe sentava na cozinha e tentava convencer a se retirarem. Fazia preces até ver que os Irmãos maiores vinham recolher os espíritos perturbadores. Era muita briga, gritos e palavrões. Muitas vezes tentava agredir minha mãe, ela nunca falava nada, só ficava em preces.

No tratamento para meu irmão foi incluído medicamento psiquiátrico para amenizar as crises que ele tinha. Gritava, agredia,  era muito triste ver. Eu era criança e chorava muito. O médico mandou dar jatos de água fria para parar a crise. Minha mãe levava meu irmão para o quintal nos fundos e pedia para eu ligar a água.  Depois que  saia da crise, caia sentado e acalmava, era levado para um banho quente; e depois minha mãe dava um chocolate quente com o medicamento para ele ficar calmo.

Um dia estávamos à mesa para o café da tarde e ele disse que não queria. E disse: “ Por que   vou tomar ???? Pra tomar remédio??? Não precisa eu já tomei todos da caixa”. Eram muitos os comprimidos dados no HC e minha mãe deixava apenas três ou quatro em uma caixinha na gaveta de roupas que só ela e eu sabíamos porque na hora do banho eu ia pegar o comprimido e já colocava na caneca dele. Guardava os segredos, ajudava minha mãe e nunca ela expôs nada para vizinhos  para não humilhar meu irmão. Quando perguntavam da gritaria dele, dizia que era só malcriação e  fazia aquele escândalo todo só por ter levado uma  chinelada. Mas nesse dia ele tomou quatro comprimidos que achou. Não tínhamos telefone e minha mãe correu até a padaria para ligar para o meu pai. Quando chegou já trouxe um médico e meu irmão já estava deitado no sofá praticamente dopado. Não era a hora dele partir, com certeza. Dormiu por quase três dias e voltou sem noção de onde esteve,  só que estava em um hospital. Mas nunca saiu de casa, não em corpo físico.

Meu pai era motorista, tinha seu próprio carro e atendia passageiros de lojas de passagens levando e indo buscar no aeroporto. Depois de um tempo, devido a uma úlcera, largou o serviço é foi ser zelador na avenida 9 de Julho. No edifício vizinho a alguns apartamentos do nosso prédio  também tinhas as " moças" que recebiam clientes. E assim começou novamente as frequentes brigas.  Nessa época, por estarmos próximos, minha mãe foi para Federação Espírita na Maria Paula. Morávamos no 25° andar.  Eu sentava no telhado em volta do apartamento e sempre pensando como seria eu voar dali para baixo.  Seria rápido,  e para onde eu iria depois????? Mas sempre alguém falava : “Pensa na sua mãe”. E assim eu desistia da ideia.  Todo dia atravessava a  9 de Julho, porque estudava na Bela Vista.  Não tinha faixa na rua e alguns carros davam a chance de atravessar.  Mas às vezes ficava hipnotizada com a ideia de esperar um ônibus passar e me atirar em baixo. Era o desespero de querer sumir de uma vez daquela situação.  Nessa época meu irmão já trabalhava em escritório e estudava. Embora minha mãe me explicasse a situação da obsessão, eu não aceitava. Achava que meu pai podia mudar o comportamento. Eu era criada com obediência, respeito nossa casa era um quartel. E por que ele só ele tinha diretos? Nessa época uma tia, percebendo que eu não estava bem, me levava para sua casa. Com isso perdia escola. Mas eu estava segura.

Meu pai era uma boa pessoa, sempre ajudando vizinhos, tirava suas roupas e doava. Tinha um bom coração. Eram essas saídas dele que voltava como animal em fúria atacando- nos. Minha mãe ficou um problema de artrite ou algo parecido.  É então fomos morar em Santos. Eram ordens médicas para minha mãe ser enterrada na areia quente depois do meio dia. Com isso ela ficou bem. Mas nunca deixou de fazer Evangelho em casa é o horário das suas preces.

Voltamos para São Paulo, eu estava com 12 anos. Voltei a estudar e depois de uns meses das idas e vindas do meu pai em Santos, vindo nos finais de semana,  um vizinho conseguiu para ele emprego de zelador na rua Riachuelo, no centro. Nesse meio tempo, por motivos que nunca soube, porque a família não comentava, um colega de escola suicidou-se. Moramos nessa mesma casa, onde meu irmão também havia tentado suicídio. Depois outro amigo também se suicidou.  Logo mudamos e era perto para ir a Maria Paula, na Federação, que ainda era a antiga casa. A zeladora era Dona Mariquinha e seu marido e que também cuidavam da livraria. Logo fiz 13 anos e já comecei os cursos. Depois de um tempo passei a cantar no coral, fui voluntária na Casa Transitória. Para ajudar, visitava favelas, orfanatos,  dava aula de bordado para as meninas do  Orfanato Anália Franco. Assim fui sendo voluntária em cursos oferecidos graciosamente, como oratória com o Dr.Otto Teixeira de Abreu, que era o 1°. Secretário da Federação. Ouvi falar do CVV. Mas quando fui buscar informações disseram que eu só poderia fazer parte dos voluntários aos 18 anos. Quando fiz 18 estavam oferecendo um curso e treinamento para o CVV. Na ocasião era um casal que não me lembro o nome que ministrava o curso e treinamento. Depois do curso e treinamento ingressei dentro do horário, que não poderia ser na madrugada. Fazia atendimento com um voluntário experiente do lado para me ajudar. Só conversando com as pessoas que ligavam, percebi que muitas vezes alguns problemas eram tão pequenos diante de outros tão graves. Mas que os dois tinham a mesma importância. Eram vidas a se proteger, dar ouvidos, fazer com que soubessem que alguém do outro lado da linha se importava com elas. Não seu dizer quantas pessoas xingaram, amaldiçoaram a Deus por tão pequenos problemas de fácil solução.  Me perguntava, será que não sabem fazer uma prece???? E percebi que muitos estavam obsediados, pois a sensibilidade me fazia sentir muito mal  antes mesmo da pessoa falar o que sentia. Mas eu sentia a importância de ouvir, saber ouvir: esse era o segredo. Não contrariar. E com o tempo algumas regras dentro do grupo foram mudando. Questão de plantão e tempo para atendimento e algumas coisas que eu achava que não deveriam ser mudadas. Mas enfim eu era apenas voluntária. Márcia Aquino, voluntária no posto da rua Francisca Miquelina, ingressante entre 1968 e 1969.


SAMARITANOS

Sempre senti  vontade de participar como voluntário em alguma entidade renomada por suas conquistas. Um dia vi em jornal um anúncio  das atividades do CVV e  Samaritanos. Já com uns 50 anos nas costas, em 1999, procurei o grupo sediados à Al. Rio Claro. Primeira surpresa: é o endereço do antigo Hospital Matarazzo, um terreno gigantesco, com inúmeras edificações,  além de uma bela capela.  Apesar de o conjunto dos edifícios estar em decadência , havia um ar de entusiasmo quando entrávamos no sobrado cedido pelo Banco do Brasil, dono do pedaço, onde estavam os Samaritanos.  Apesar de antigo e precisando de reforma, era um belo sobrado, muito espaçoso e que nos acomodava muito bem. Entrando pela alameda Rio Claro, passava-se por um grande estacionamento e, caminhando à direita, na extremidade do terreno em direção à rua  Pamplona, lá estava nossa sede. Uns degraus na entrada, um grande hall de recepção e mais 3 salas, duas delas ocupadas por voluntários durante os atendimentos e uma onde ficava a Secretaria. Havia ainda uma copa-cozinha e  instalações sanitárias. Desde o início fui encarregado da Secretaria , que era o braço direito da coordenadora Maria Helena. Entre outras coisas eu fui responsável pela publicação de nosso “jornal” semanal, contendo notícias de interesse do Posto e de nossa atividade. Dava um trabalho danado! Aprendi até um pouco de português , com as correções que os colegas voluntários faziam nas minha publicações. Aos poucos umas ideias que eu tinha desse tipo de atendimento mudaram muito. A regra geral era que quem nos procurava eram pessoas muito desiludidas da vida, muitas com ímpetos suicidas. Mas logo vi que não era só isso. Procuravam-nos também pessoas eufóricas e felizes por terem conseguido atingir algum objetivo importante para elas. Só que não tinham ninguém com quem compartilhar sua felicidade... Com sinal trocado, era o que fazia com que suicidas potenciais nos procurassem. Todos solitários, sem ter com quem compartilhar sua dor ou alegria. Nos cinco anos que permaneci lá, conheci e convivi com pessoas excepcionais e brilhantes em seu ânimo para ajudar os outros. Começando pela Coordenadora Maria Helena , dedicada “full time” ao gerenciamento do Posto, sempre atenta e apaziguadora de eventuais desentendimentos. Outra pessoa que marcou-me  muito foi a voluntária Rosita Zatz, que num encontro de voluntários, quando fomos todos acusados de sermos preconceituosos, levantou a mãozinha e, muito firmemente declarou “eu não tenho preconceito algum”.  Isto depois de, com certeza, ter sofrido todos os horrores do nazismo na Alemanha. Logo descobri que ela era sogra de um amigo meu, companheiro de bridge. Em casa dele encontrei Rosita dominando as cartas e jogando um excelente bridge.  Outra pessoa marcante foi a voluntária Zilda Simcsik, intelectual brilhante, sempre de bom humor e autora junto com seu filho Tibor de inúmeros livros na área de relações humanas. Enfim, minha vida nos Samaritanos foi muito proveitosa para mim que tive a oportunidade de aprender muito com meus colegas. Saindo de lá em 2003, aproveitei tudo que vivenciei e fui ser voluntário na Fundação Dorina Nowill para Cegos, ficando lá uns 10 anos. Atualmente sou voluntário no Instituto Dante Pazzanese de Cardiologia. Nelson Penteado. 

RESPEITO

Estava no plantão das 14 horas, no posto do Teatro Municipal. Recebi um pedido de visita doméstica. Escalei um colega, o Frederico, e fomos até a casa do amigo que pedia socorro. Um pequeno apartamento na Galeria A.D. Moreia, entre a avenida da praia e a Floriano Peixoto, no Gonzaga.  Queria conversar pessoalmente sobre uma decisão já havia tomado. O apartamento era minúsculo e, mesmo assim, nas paredes tinham dois pôsteres enormes com fotos de aviões de caça. Percebendo meu interesse, logo foi dizendo: “Essas são as obras-primas do fulano de tal...” projetista norte-americano. Homem de mais de 50 anos, magro alto, calvo, muito educado e visivelmente espantado e  surpreso com a nossa pouca idade. Eu tinha 18 e o Frederico devia ter 19 anos.  Não disse nada sobre isso, mas olhava pra gente e sorria meio irônico, como quem queria dizer “São dois moleques”. Mas permanecemos firmes, embora desconfiados. Ele pediu que sentássemos e fez as devidas explicações do pedido da nossa visita. Apontou para uma pequena estante e indicou um vidrinho de cor escura, com rótulo branco, dizendo que era remédio que iria  usar para se matar. Já estava decidido. “ Eu sei que vocês não interferem e respeitam a minha decisão. Não tem volta” e seguiu dando explicações sobre as maravilhas da engenharia de aeronaves, olhando para os pôsteres. Mas logo mudava de assunto dizendo que tinha feito de tudo para continuar vivendo, mas que não era mais possível. Precisava acabar com esse sofrimento que poderia durar para sempre. E olhava pra gente com ar questionador lembrando que éramos muito jovens e que esperava pessoas mais maduras, que pudessem entender o que ele estava passando. E nós, estáticos, apenas ouvíamos seus argumentos implacáveis. Agora ele estava chorando, sem nenhuma vergonha, um choro infantil, estampado nos olhos vermelhos e brilhantes. Querendo nos testar, perguntou. “O que vocês acham de tudo isso. Eu vou me matar,  já te disse”, olhando pra mim. Respondi: “Espero que não”. E ele: “Óbvio que não, senão não teria vindo né”. “Mas eu agradeço vocês terem vindo. É muito complicado explicar o que não tem explicação, mas pelo menos vocês entendem”.   E voltava a olhar, chorando, os aviões-caça na parede. Ficamos pelo menos uma hora com ele,  ouvindo histórias sobre aviões, permeadas de tentativas de sair do Brasil e seguir uma carreira que havia fracassado. Um tempo perdido, uma vida que não tinha mais sentido continuar, não para ele. Estava se sentindo muito só. Morrer não era o problema, pois era rápido, mostrando novamente o vidrinho na estante. A questão era morrer só, sem ninguém conhecido por perto, que pudesse aceitar que ele precisava morrer. “Vocês sabem que eu preciso morrer e vou morrer tranquilo porque não vão tentar me impedir”. E fomos embora, porque ele pediu que saíssemos, sempre agradecendo a atenção e o sincero esforço de salvá-lo com os nossos olhares impotentes. “Vão com Deus”, disse ele antes de fechar a porta.  Alguns dias depois a nossa coordenadora comunicou que esposa dele havia ligado no plantão para agradecer o apoio  e que  recomendara muito lembrar os dois jovens que estiveram com ele que aqueles instantes foram os minutos mais importantes da vida que ele não soubera viver. Não se sentiu tão só como tanto temia  antes de morrer. 

O CORUJÃO NO CVV PINHEIROS

Quando o Chad Varah esteve no Brasil nós o recebemos no CVV Pinheiros.  Era o comecinho do posto. A sala estava arrumadinha, na avenida Henrique Schaumman – em frente hoje onde é o Mc Donalds. Foi o Wilson Focácio e eu que fizemos essa recepção. Fui muito emocionante recebê-lo e conversar com ele. Eu fiz o treinamento para ser voluntário e foi nesse momento, durante o treinamento, que eles decidiram  montar o CVV Pinheiros e perguntaram quem ir. E aí então eu resolvi que eu ia pra lá.  Eu tive o privilégio de ser a primeira plantonista do CVV Pinheiros. Era assim: eram quatro horas de plantão; das quatro às oito; e das oito à meia noite. Eram duas plantonistas por dia. E como era tudo muito precário, porque não havia muitos plantonistas, era tudo presencial  - eu fazia outros plantões para cobrir os horários. Pouco depois foi implantado o horário noturno, da meia noite às 7 da manhã, que era o horário que mais recebia chamadas. Não tínhamos muito plantonistas e lá fui eu fazer esses plantões noturnos. Eu me lembro do dia em que a Globo colocou a Sessão Corujão. Era um filme que começa à meia noite. As emissoras de TV desligavam nesse horário- ficava só aquele chuvisco nas telas. Da meia noite até às cinco da manhã era muita demanda. As pessoas procuravam mesmo, contavam da  solidão, da tristeza. Muitas só queriam conversar.  Não era nenhum problema, é que ficava uma solidão e depois da meia noite elas ligavam para o CVV. Eu conversei com muitas delas. Me lembro que a Sessão Corujão ia até  as duas da manhã.  No dia que iniciou o Corujão, sexta ou sábado,  não teve ligação até às duas e meia da manhã, enquanto não acabou o filme. Isso pra mim foi marcante, a importância da televisão, dos filmes, da mídia, ficou muito claro. O Chico Xavier dizia pra gente agradecer e abençoar as mesas de snook dos bares porque, quando os homens vão pra lá pra jogar, entre uma cerveja e outra, elas relaxam e que isso evitava brigas e desgraças nos lares. Então, durante o plantão eu lembrava dessa fala do Chico e da importância da televisão.  Como a TV faz bem para pessoas porque enquanto assistiam TV elas não precisavam do CVV.  O mais importante no CVV foi isso. Eu fui uma plantonista múltipla porque a gente estava arrumando as coisas, fazendo mais cursos e tínhamos que convencer as pessoas a fazer plantão em Pinheiros, porque todos queriam ficar na Abolição. A minha turma tinha uma parceria legal –minha turma era a 7ª turma da Genebra - e o Wilson era o responsável e nós éramos muitos amigos, então, claro, era delicioso trabalhar com ele. Eu nunca dividi plantão até quando eu fui embora, quando nasceu a minha segunda filhinha. Trabalhei sete anos, só no CVV Pinheiros.  De 1978 a 1984. Fiz alguns plantões na Abolição substituindo colegas. Eu era meio coringa e meio maluca para trabalhar. Mas o meu posto, onde desenvolvi afeto, foi em Pinheiros. Fomos abrindo os plantões gradualmente até chegar às 24 horas. Foi sempre uma construção.  Inaugurar um plantão foi muito emocionante, á 4 da tarde, ficar lá sozinha. Era aquele telefone de disco. Era bem primitivo mesmo. Olha só, a gente ficava com a casa aberta. A porta ficava aberta até às dez da noite. A segurança era outra conversa. Tinha uma escadinha. A porta não ficava na calçada, mas a porta fica aberta. Heloisa Capelas.

61 E 62: DOIS MOMENTOS, DUAS SIGLAS

É uma honra fazer alguma coisa nesse sentido, falar do passado, que é memória. Tem muita gente que não gosta, mas eu estou aqui pra isso, para  lembrar. Sobre o CVV, a gente temos que separar as siglas. Quando começou, em março de 1961 – que não foi em 62, foi em 1961 – não era CVV, mas Campanha de Valorização da Vida, um trabalho experimental, com um telefone emprestado pela instituição que agasalhou o CVV, que deu certo e que se tornou o CVV-Centro de Valorização da Vida, com diretoria constituída e registrada em cartório. 

BANG-BANG NO CINEMA

Quando cheguei (1968) o CVV tinha 35 plantonistas. Um fato marcante, que sempre está no coração de cada uma dos plantonistas, é o primeiro atendimento. Não esqueço nunca. Nunca. Era um indivíduo que entrou num cinema de São Paulo que só passava filme de bang-bang, ali perto do Vale do Anhangabaú, tinha cinema que só passava isso, 24 horas. Ele foi assistir a sessão do meio dia - que era menos concorrida- e, no meio do tiroteio, ele deu um tiro no peito, caiu dentro do cinema, só foi visto quando terminou a sessão, quando as luzes acenderam e viram ele caído, sangrando. Foi socorrido. Depois o Alan acompanhou comigo esse caso.  O Alan era meu “visitador” quando ele estava entrando no CVV.  Esse sujeito está vivo até hoje. Isso é uma marca que a gente não vai esquecer nunca. Eu não fiz absolutamente nada, a não ser o papel que todo plantonista faz: oferecer o meu ouvido pra ele. Era isso que ele precisava.  

NOITES DE PIZZA E DAS FAMÍLIAS

Uma coisa me deixava feliz, muito feliz. O CVV funcionava mais como um ambiente de familiares. Um sábado por mês nós fechávamos uma pizzaria para um contato mais próximo, com as famílias. Ali a gente reunia 80 e até 100 pessoas  para conversar, nos conhecermos. Quando acabava, a conta era dividida por cabeça e voltávamos para casa.  Isso me dá saudade. Sinto a falta disso. Fazia bem para nós esse contado familiar, quando o atendimento do CVV era olho no olho, fazendo esses atendimentos pesados e até escabrosos.  


CEAE, FRANCISCA JÚLIA, CVV E ALIANÇA

"O CEAE =Centro Espírita Aprendizes do Evangelho, foi fundado em SJ dos Campos, em função da construção da Clinica Francisca Julia e da crise psiquiátrica no Juquery. Era tudo muito difícil , longe e inacessível. Eu, Jacques,Valentim, Flávio e Marius Vieira. O Márius essa assessor do governador e nos indicou que haveria uma verba para acolher esses pacientes. Esse grupo era do CVV. Fizemos uma promoção de venda de ingressos de uma avant-première de um filme com Sidnei Poitier, que estava muito em moda, para arrecadar fundos. E saímos vendendo ingressos pela cidade. Não vendemos nada e que nos salvou uma professora Teresinha, que ficou com os 100 convites e depois pediu mais 100. Ela também se tornou servidora do CEAE. Disso surgiu também a Aliança. Eu Jacques, Valentim e Flávio. Eu era assessor deles. Eles pediam as coisas e eu corria atrás para resolver o problema. Pediram pra eu arranjar uma casa pra comprar. Encontrei essa sede do 172, onde funcionava uma transportadora. Conseguimos um empréstimo na Caixa Econômica, financiamento longo, com a negociação. O Outenhares Abreu (proprietário) facilitou tudo. Tudo foi feito em nome do CVV. Nós nos comunicávamos por telex. Eu trabalhava na Olivetti e tínhamos acesso aos equipamentos e às redes telefônicas. O processo do empréstimos era demorado e ficava em cima das mesas na agência da Caixa. O Outenhares me aconselhou ir na caixa todos os dias para conferir o andamento do pedido. Ia tanto lá que os funcionários pensavam que eu era funcionário e eu entrava e saía naturalmente, comum funcionário. Nessas visitas eu, por conta própria (e sei que vou responder por isso) mudava a ordem dos processos, colocando o nosso sempre na frente de dois ou três. Não era eu que fazia isso, era a minha mão... (risos) Não dava pra controlar... Conseguimos o empréstimo e fomos fazendo as reformas aos poucos". Arnaldo Coutinho.


PRA DIZER ADEUS

Nos seus dois últimos anos de vida o fundador do CVV, Jacques Conchon, percorria o Brasil  realizando encontros de Vida Plena, dando entrevistas sobre prevenção do suicídio e fazendo palestras. Agenda sempre cheia e ele sempre incansável. Suas últimas palestras tinham no enredo um acontecimento que fez parte da sua juventude e que  talvez nunca foi compartilhado com os amigos, mesmo do CVV. Seu gosto pela música e pelo teatro não era novidade, mas tinha uma inclinação especial pelos poetas, esses seres marcados pela sensibilidade aguçada e que não raro sucumbem ao suicídio. Na última vez que o vimos se apresentar em público, Jacques falou sobre Torquato Neto.  Curioso, depois de tantos anos, não falava mais sobre suicídio com aquela expressão dramática ao relatar tragédias, mas de um jeito mais sereno, triste, mas sorrindo, sorriso de quem compreendia profundamente as razões mais íntimas de quem se mata. Foi assim ele narrou a morte do poeta, falando num pequeno auditório em Santos. Não havia muita gente. Era um sábado à tarde e o velho centro da cidade também estava vazio. Ele descreveu em detalhes como o jovem piauiense se despediu de todos, incluindo o parceiro Edu Lobo, que musicou essa despedida narrando a trajetória escura e incerta que nem os poetas ousam descrever e revelar.  Torquato tinha tido uma de suas crises psicóticas após sair de uma festa e voltou para casa completamente desolado. Se trancou no banheiro, como se fosse tomar um banho, vedou todas as saídas e entradas de ar  e depois  abriu válvula de gás do chuveiro. Morreu em silêncio enquanto a esposa e o filho de dois anos dormiam.  Tinha planejado tudo. Havia feito uma letra para o Edu, falando de tudo que era necessário falar, mesmo que não fosse possível falar tudo. E também um último poema-recado para os familiares, com uma  recomendação especial ao filho. 

"FICO. Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver, e, enquanto me contorcia de dores, o cacho de banana caía. De modo Q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias, e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa deste amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar".

O suicídio de Torquato Neto  não ficou guardado no pequeno apartamento em que morava no Rio de janeiro em 1972, nem nos arquivos policiais. Ele repercutiu de forma intensa entre os artistas, jornalistas e intelectuais que conheciam o poeta e que se transformaram imediatamente em sobreviventes daquela tragédia que os incomoda até hoje.  Caetano Veloso tentou curar-se escrevendo e cantando Cajuina, “oito versos de um xote um tanto melancólico que se questiona sobre a efemeridade da vida, de belezas e mistérios”. Na ocasião da morte de Torquato, Caetano não derramou uma única lágrima: “Senti uma dureza de ânimo dentro de mim. Me senti um tanto amargo e triste mas pouco sentimental”, confessou a um jornalista com quem conversou durante sua estadia para um show em Teresina, 20 aos depois do ocorrido. Caetano buscou sua cura também numa visita aos pais de Torquato, onde pôde se refrescar dessa longa secura. Gilberto Gil, por diversas vezes, em shows e entrevistas,  nunca perdeu a chance de  preencher o seu vazio lembrando da partida do amigo e parceiro em várias canções.  

Quando Jacques terminou sua fala inesquecível, pudemos finalmente entender e compreender, mesmo sabendo que era uma impressão remota e talvez apenas imaginativa, o que possivelmente se passa no coração e na mente de um suicida; e talvez também o que havia se passado naquela noite com Torquato Neto. 


O TABÚ DO SUICÍDIO NA MÍDIA


 

Debate realizado no auditório da Escola Superior de Propaganda e Marketing


Em 2012 o CVV propôs a um  grupo de jornalistas que atuavam em importantes órgãos e segmentos um debate sobre  a abordagem do tema suicídio nos meios de comunicação. O jornalista André Trigueiro assumiu a função de mediador do evento, realizado em conjunto com a Faculdade de Jornalismo da ESPM- Escola Superior de Propaganda e Marketing, em São Paulo, na época sob a direção de Eugênio Bucci. Participaram do debate Susana Singer e Cláudia Colucci, da Folha de São Paulo; Rosana Herman, blogueira; e Valmir Salaro, da Rede Globo de Televisão.  

O evento não teve repercussão imediata e, como se esperava, foi tratado de maneira discreta no noticiário em geral. Entretanto, a partir desse encontro foi ocorrendo gradualmente uma mudança de comportamento dos profissionais, afetando tanto as pautas dos veículos como também o currículo das escolas de comunicação. Para a surpresa dos próprios participantes do debate, a maioria dos colegas deles, previamente consultados sobre o assunto, negaram que havia algum tipo de proibição explicita de abordagem sobre suicídio nas empresas onde atuavam; a maioria também desconhecia a existência do Manual de Prevenção do Suicídio para Profissionais da Mídia, publicado pela OMS - Organização Mundial de Saúde. Esse órgão da ONU havia publicado orientações semelhantes para profissionais de educação e saúde, desde o ano 2.000.  Logo em seguida – durante a realização do Conselho Nacional e Simpósio de Prevenção do Suicídio em São Paulo- O CVV publicou um boletim especial com uma síntese do debate de jornalistas e de teses acadêmicas sobre os assuntos discutidos no evento realizado na ESPM. No boletim especial o CVV solicitou que os postos organizassem réplicas do debate com jornalistas de suas regiões, o que de fato realmente aconteceu em algumas cidades e capitais. O impacto do evento somado à inúmeras ações de prevenção mudou não somente o comportamento dos profissionais de comunicação , mas também de inúmeros outros segmentos estratégicos para a propagação dessa cultura preventiva. O evento também influenciou os cursos universitários de jornalismo, que passaram a promover ações semelhantes, colocando a prevenção do suicídio como tema indispensável nos seus currículos.

Valmir Salaro: "Eu sou a cara e o rosto do crime na televisão e gostaria de poder humanizar o assunto suicídio nas reportagens. Seria bom ver e relatar como os voluntários do CVV conversam cara a cara como alguém que diz que vai se matar".

Susana Hermann: "Vim ao debate porque não sei nada sobre suicídio e fiquei intrigada ao constatar que tenho medo de falar sobre isso. Isso tem que mudar".

André Trigueiro: “Os jovens estão se matando. Como alguém que nem sabe o que é a vida pode afirmar que está cansado de viver”?

Susana Singer e Claudia Colucci: os manuais de redação não claros sobre essa proibição. O medo é dos jornalistas e não do jornalismo. Suicídio é questão de Saúde pública.

O assunto suicídio na mídia precisava ser esclarecido por profissionais experientes, para que suas reflexões pudessem servir de espelho para as novas gerações de jornalistas que, aos poucos vinha sendo contaminada pelo medo de falar em suicídio sem mesmo questionar os motivos desse comportamento. Convidamos Alberto Dines, pela sua larga experiência e também porque mantinha há alguns anos um programa de TV no qual discutia amplamente o comportamento da mídia.  Ele não pode comparecer, porém na sua justificativa de ausência não deixou de  questionar sobre a nossa postura diante da morte assistida perguntando se, por acaso, essa modalidade de eutanásia também não seria suicídio. Quando recebemos esse tipo de questionamento, típico dos provocadores como ele, realmente ficamos numa situação delicada e que nos forçou a dar uma explicação aparentemente complicada sobre o que pensamos e como agimos diante de um paradoxo de vida e morte.  



SUICÍDIO ASSISTIDO

CARTA ABERTA AO JORNALISTA ALBERTO DINES

São Paulo, 12 de agosto de 2012 

Caro Alberto Dines 

Estamos lhe enviando esta para agradecer a sua pronta atenção em responder o nosso convite para o debate sobre a abordagem do tema suicídio na imprensa.  

Compreendemos e lamentamos a sua ausência, mas não poderíamos deixar de responder a sua grave pergunta sobre a diferença entre suicídio comum e suicídio assistido. É realmente um assunto complexo, de natureza ética e ampla dimensão cultural. Não somos especialistas, porém gostaríamos de expor o que os voluntários do CVV pensam a respeito e como agimos diante de pessoas que se matam por sua própria escolha, embora sabendo que antes de consumar o fato elas lutem intensa e inconscientemente contra o instinto de conservação.  

Preocupa-nos muito que você conheça essa nossa visão e conduta, já que sabemos tanto da sua atuação como profissional que discute e vive as questões da ética jornalística, como da sua experiência como memorialista que pesquisou e relatou, por exemplo, a experiência de suicídio do casal Stefan Zweig, cuja tragédia até hoje, como muitos outras, intriga todos que investigam e se sensibilizam pelas questões da alma humana. 

Atuando nesse campo nos últimos 50 anos, aprendemos a não desprezar a oportunidade de mudar de ideias, de sentimentos e principalmente de atitudes, quando se trata do universo humano.  

No início das nossas atividades achávamos que, agindo como salva-vidas, estaríamos plenamente de acordo com os nossos estatutos e objetivos imediatos. Isso era o que importava. Estávamos enganados.  

Passada a primeira década, fomos percebendo que as pessoas não procuravam o CVV apenas para pedir que as salvássemos e sim que as compreendêssemos, muito além da situação pelas quais estavam passando; queriam dividir suas angústias mais profundas, principalmente seus persistentes sentimentos (e não apenas pensamentos) de autodestruição. Nós mesmos ficávamos chocados quando algumas dessas pessoas nos diziam que já haviam tomado a decisão de se matarem e apenas queriam compartilhar conosco a dolorosa escolha, pois não tinham como voltar atrás, tal era a gravidade da decisão que haviam tomado. Queriam, naquele instante, aliviar o sentimento de derrota, de frustração e até mesmo uma culpa por não terem sido fiéis aos seus valores pessoais ou religiosos. Muitas diziam, e ainda dizem, que somente nos procuravam porque sabiam que não iríamos condená-las, nem tentar dissuadi-las de suas decisões. Queriam que estivéssemos ao lado delas num momento tão difícil e terrivelmente solitário no qual iriam tirar suas próprias vidas.  

Claro que essas pessoas sabiam e sabem que nós discordamos desse gesto extremo, 

Mas também sabem que o nosso respeito pelas suas escolhas está acima das nossas crenças e dos nossos valores. Quantas não nos procuraram para agradecer e, sobretudo acentuar, que não deveríamos jamais nos culpar pelo fato de terem escolhido morrer por suas próprias mãos?  

Essa é a razão da nossa postura paradoxal de trabalhar pela prevenção do suicídio e ao mesmo tempo aceitar que as pessoas têm o direito de fazer suas próprias escolhas.  

Para aquelas que atendem aos apelos do instinto de preservação e solicitam um encaminhamento profissional ou outras que sucumbem totalmente ao descontrole mental, cujas famílias nos procuram em desespero, certamente não negamos o devido auxílio. Entretanto, existem outras, e são muitas, que não abrem mão de suas convicções e das suas posturas. Para essas não resta outra alternativa senão nos posicionarmos como amigos incondicionais, ouvindo e compreendo-as quantas vezes for necessário. É para isso que nos organizamos e para isso que existimos.  

Também sabemos que nem todos concordam com essa nossa forma de pensar e agir, porém não é bem por nós nem pelos nossos pontos de vista que assim agimos e sim por respeito àqueles que confiam seriamente no nosso trabalho, até mesmo quando estão nos últimos instantes de suas existências. 

Aceite o nosso sincero abraço. (Boletim do CVV)



O suicídio persiste como ato humano multifatorial. Sua prevenção também se amplia e diversifica suas ações buscando compreender melhor esse gesto de dor e desespero. As logomarcas do CVV são provas dessa dinâmica preventiva histórica.



PREVENÇÃO DO SUICÍDIO

VALENTIM LORENZETTI

 

Desde que começou a funcionar, em caráter experimental, até hoje, o CVV já atendeu a quase duas mil pessoas que estavam realmente dispostas a se matar. Destas infelizmente, quatro se suicidaram realmente, não tendo sido possível ao CVV recuperá-las para a vida. Entretanto, o índice de recuperação é considerado excelente pelos dirigentes da entidade, o que os anima a prosseguir na luta apesar das enormes dificuldades.

Em princípios de 1971, a entidade lançou uma ramificação em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, entregando a responsabilidade do funcionamento da filial gaúcha a duas abnegadas professoras, que tiveram a iniciativa de enfrentar, no Sul, o trabalho de prevenção do suicídio. Aliás, uma das finalidades do CVV é a de instalar postos de atendimento nas principais capitais do país e nas grandes cidades do Estado de S. Paulo à medida em que forem surgindo, nessas cidades, elementos de boa-vontade, o CVV irá orientando e fornecendo todo o programa de preparação de plantonistas.

0 problema do suicídio em nossa sociedade, ainda é cercado de uma série de tabus e frases feitas. Por exemplo: : “Quem quer se matar não avisa”. É uma frase-feita, repetida indefinidamente, sem qualquer fundamento em fatos. A experiência do CVV e dos demais centros de socorro telefônico instalado em outros países demonstra que o suicida em potencial dá muitos avisos. Na maioria das vezes, entretanto, tais aviso,- não são compreendidos por amigos e familiares; e a pessoa acaba se matando. Quando o indivíduo dispõe de um telefone, como o do CVV, ele se agarra realmente a esse telefone, que lhe representa a tábua lançada no oceano revolto, onde ele, náufrago da vida, poderá se agarrar. 0 plantonista do CVV oferece amizade ao suicida em potencial ; a amizade tão difícil de ser encontrada hoje em dia. Não proporciona auxílio financeiro nem o ajuda diretamente a solucionar seus problemas; proporciona-lhe o desabafo e o apoio moral, encorajando-o a enfrentar os problemas com renovada disposição. É a própria valorização da vida; superada a, crise suicida, o indivíduo não se sentirá dependente de ninguém e terá condições de enfrentar seus problemas.

“Suicídio se resolve com aumento de salário”, é outra frase-feita absurda. 0 problema financeiro é o que menos pesa na decisão de suicídio de uma pessoa. Os motivos que levam realmente as pessoas a pensar em auto-destruição estão ligados, em sua esmagadora maioria, ao campo afetivo. É a chamada deterioração afetiva, que leva a pessoa, fatalmente, a sentir-se só. Um solitário no meio da multidão. Um indivíduo carente de amizade, de alguém que o considere digno de ser ouvido. E o CVV considera dignes de atenção todos que lhe batem às portas ou discam o número de seu telefone. Mesmo que o indivíduo faça a ligação telefônica para aplicar um “trote” no plantonista. Todos recebem amizade.

Atualmente o CVV conta com a colaboração de 45 plantonistas voluntários, entre homens e mulheres, atendendo a uma média de 15 casos de suicidas em potencial por mês. Seus plantonistas são indivíduos de boa-vontade que antes de ingressarem no trabalho, são obrigados a frequentar um curso especializado. O atendimento é feito seguindo as normas da chamada “psicoterapia de apoio”, e, quando necessário, a entidade se vale da colaboração de médicos psiquiatras, que também voluntariamente atendem às pessoas que lhes são encaminhadas. Não há doutrinação religiosa em nenhum atendimento; o CVV mantém contate com todas as religiões, e, desde que o indivíduo se mostre interessado, é encaminhado para a religião desejada.

A norma básica do atendimento, que é seguida por todo plantonista, resume-se numa frase: “Saber ouvir os problemas da pessoa”. Conhecidos os problemas, usar as armas disponíveis pelo próprio indivíduo para que tais problemas sejam superados. É evidente que em tal atendimento entra a Religião como impulsionador maior: a Religião Cristã, que manda servir desinteressadamente.

(Revista Internacional de Espiritismo – Março de 1972)

Nota do organizador.

Valentim Lorenzetti, ingressou no CVV alguns anos após a fundação e logo gerou uma importante mudança estrutural e conceitual da instituição. Como profissional de comunicação, propôs a mudança da  primeira logomarca, que era uma bóia salva-vidas. Essa concepção salvacionista e religiosa dos primeiros tempos já havia  vinha sendo sendo superada nesse grupo, substituída por uma concepção humanista fundada nas ideias e prática terapêutica do psicólogo norte-americano Carl Rogers. Nela, a pessoas é o foco da abordagem, gerando uma relação natural de proximidade e acolhimento de quem oferece ajuda com aquele  busca apoio. O indivíduo e seus problemas são marcas de diferenças nessa relação. A relação de pessoa pessoa é de igualdade. Quem apresentou Rogers ao CVV foi um jovem psiquiatra, egresso e professor da Faculdade de Medicina da USP, DR. Alankardec Gonzales. A partir dessas mudanças, o CVV muda gradualmente sua logomarca refletindo a sociedade e as características de cada época. 


MEMÓRIA DA IMPRENSA

SOLIDÃO

José Maria Mayrink

Reportagem de O Estado de São Paulo, 1982.

 

No Centro de Valorização da Vida (CVV), rua da Abolição, no 411, um empresário tocou a campainha num fim de tarde de trabalho e entrou. "Não sei bem o que estou fazendo aqui”, disse ele se desculpando, mas aceitou o convite do jornalista Valentim Lorenzetti, que estava de plantão.

“Era um executivo muito bem vestido, sem dúvida um homem bem instalado na vida", conta Valentim, que jamais ficou sabendo o seu nome. Ele simplesmente sentou-se diante do plantonista e soluçou durante quinze minutos, sem dizer uma só palavra. Na hora de sair e agradecer, comentou apenas: "Este foi o único lugar onde me deixaram chorar".

Os 120 plantonistas do CVV, que se revezam em turnos de cinco horas de trabalho voluntário, atendem a 500 chamadas por dia. As pessoas costumam falar uma média de trinta minutos e pelo menos 10% delas acabam indo à instituição para um contato pessoal. Os telefonemas são mais numerosos entre 16 e 22 horas, todos os dias, multiplicando-se assombrosamente na época do Natal.

"Todos ligam porque se sentem solitários ou quando se descobrem sozinhos, numa solidão que pode levá-los à beira do suicídio", explica Valentim Lorenzetti, que muitas vezes identifica no recurso ao CVV o último grito da pessoa que se sente abandonada e quer se matar.

O plantonista apenas ouve, frequentemente nem precisa dizer nada. As pessoas que se sentem sós e ligam para outra, mesmo que seja uma desconhecida, têm necessidade de falar, querem só alguém disposto a ouvi-las, não exigindo mais do que isso. Muitas delas são pessoas que, acordadas na solidão da madrugada, não têm mais a quem recorrer. Quando sai do ar o último programa de televisão, elas se lembram do número 34-4141 e começam a conversar, como se estivessem retomando um papo interrompido.

Como as emissoras de rádio e TV costumam divulgar o telefone do CVV no fim da noite, os solitários aproveitam a dica para chamar imediatamente. Ou guardam o endereço para procurá-lo, quando for necessário. Foi o que fez o pernambucano Arnaldo Alves, de vinte e um anos, vigia de obra, que chegou há dez meses a São Paulo. Trabalhando das 18 às 6 horas da manhã, numa construção em Perdizes, ele ainda não precisou de ajuda, mas fez questão de ir conhecer a sede do CVV na rua da Abolição, depois de ouvir o anúncio do rádio.

A madrugada é vazia e dura para Arnaldo, principalmente entre uma e 4 horas, quando não há mais movimento de gente na rua. Sua distração é ouvir música ou conversar com o zelador do prédio em frente, que ficou seu amigo e até o convidou para almoçar em casa num domingo. Se não fosse essa amizade, ele não sabe como seria sua vida em São Paulo.

"Não quero saber de baile, pois não vou arranjar namorada para casar. Casamento é só com moça do Norte."

Arnaldo, que deixou os pais e cinco irmãos no Recife para vir ganhar um salário de Cr$ 40 mil em São Paulo, confessa que algumas vezes costuma sentir alguma coisa parecida com solidão, mas trata de abafá-la com o trabalho.


A PROPAGANDA 

 


Cartaz do CVV nos anos 1970 da campanha criada por Christina Carvalho Pinto e um anúncio mais publicado nas redes sociais. 


A divulgação do CVV começou boca a boca entre os voluntários de uma grande instituição religiosa e assistencial de São Paulo, na rua Maria Paula. Ali funcionou durante algum tempo os primeiros atendimentos em uma sala com linha telefônica cedida pela entidade. O acesso às ligações telefônicas ainda era restrito e culturalmente visto com desconfiança pelos atendidos, que naturalmente contavam com sigilo das conversas. Os atendimentos eram predominantemente presenciais.  Pequenos anúncio em jornais e  discretas reportagens em jornais e revistas serviram como veículos das primeiras divulgações pública dos serviço. Na verdade o CVV era um grupo muito reduzido de voluntários (cerca de 30 pessoas) e temia que fosse feita uma divulgação em larga escala sem houvesse estrutura suficiente para os atendimentos. Essa preocupação redobrou quando uma onda de suicídios se propagou na Capital no final dos anos 60, fartamente divulgada impressa. A criação de uma logomarca salvacionista, raros anúncios e pequenos cartazes eram as nossas únicas ferramentas de divulgação.  

No início da década de 1980 a demanda por serviços de divulgação pelos novos postos aumentou consideravelmente. Nessa época o CVV  chegou a ter uma oficina gráfica própria  funcionando no fundos do Posto da rua Abolição - imprimindo cartazes, folhetos e diversos impressos de uso burocráticos dos postos. Somente o Boletim do CVV era feito fora. A oficina também prestava serviços para a Aliança Espírita Evangélica - editora e seus grupos integrados. Tinha um único “funcionário” que, além de cuidar de toda a produção e serviços externos, ainda arrumava tempo para cobrir os plantões nas faltas incidentais de alguns plantonistas que não conseguiam chegar a tempo para iniciar suas jornadas ou então substituindo os colegas nos feriados de Natal e Ano Novo.  Era nosso querido Alcides Alegretti (Cidinho), também conhecido como “Italianinho” (assim chamado pelo Comandante Edgard Armond, inspirador do CVV). Alegretti foi um dos membros da antiga Assembleia de Samaritanos, grupo de voluntários experientes a quem era dada a maior parte dos trabalhos executivos do CVV, tarefas especiais não poderiam deixar de serem feitas e que quase nunca eram recusadas.  

 


Anúncios direcionado  aos jovens  no inicio dos anos 2.000


Com a chegada de um voluntário especialista em comunicação e relações públicas -  Valentim Lorenzetti - as coisas começaram a mudar gradualmente. Um boletim impresso, entrevistas em programas de rádio, TV, reportagens  em jornais e revistas de grande circulação e de conteúdo mais seletivo , textos didáticos em revistas de variedades, deram mais leveza e visibilidade através da temática “prevenção dos suicídio”.  Já estávamos em plena década e 1970, quando São Paulo e outras capitais do Brasil davam adeus ao provincianismo se tornando grandes metrópoles regionais. 

Somente 15 depois da sua fundação o CVV quebrou definitivamente o seu anonimato com uma ampla campanha publicitária  anunciando a expansão do Programa CVV Samaritanos, em 1977. As peças desenvolvidas pela CBB&A, com criação da então redatora Christina Carvalho Pinto, formaram o primeiro acervo profissional de conceitos e anúncios da propaganda do CVV. Tudo feito de forma voluntária e gratuita, inaugurando uma era e cultura de humanização e solidariedade na publicidade e na mídia brasileira.  

Desde então a prevenção foi sendo contemplada com a generosidade de jornalistas, redatores publicitários, artistas plásticos, designers, cineastas, atores, roteiristas, poetas, historiadores, documentaristas, enfim, uma gama enorme de comunicadores fascinados, seduzidos e principalmente tocados pela tema da  prevenção do suicídio.  As peças publicitárias do CVV,  tornaram alvo de uma curiosa e saudável disputa de criatividade nos mais concorridos certames de publicidade no Brasil e no Mundo.  A agência Leo Burnett, por diversas veze, criou e levou anúncios do CVV para concorrer em anúncios internacionais e que resultaram em reconhecimento e premiação do talento brasileiro na publicidade. Foi o caso, por exemplo, da campanha “Bilhetes”, premiada com o Leão de Ouro no Festival de Cannes. Foi a confirmação do talento e consagração da publicidade brasileira no mercado mundial  e também o reconhecimento da prevenção voluntária do suicídio feita por uma ONG nacional.  A mídia colocou o CVV no ar entre os anos 70 e 90; e depois nas nuvens, com o advento das redes sociais.

 



UM FACHO DE LUZ NAS NOITES DA ALMA

CHRISTINA CARVALHO PINTO*


Eu tinha pouco mais de vinte anos quando, lendo uma matéria no jornal, descobri o CVV. A matéria explicava sobre a origem dessa organização de prevenção ao suicídio, destacava o tema da solidão e revelava que muitas vezes alguém chega a esse ato extremo por não ter um único amigo com quem possa, realmente, se abrir. 

Aquilo me tocou de forma tão profunda que, no mesmo instante, decidi ajudar na divulgação desse trabalho tão nobre. Dias depois eu já estava reunida com o grande e inesquecível Valentim Lorenzetti – jornalista conhecido e muito respeitado no universo das Relações Públicas - e outras pessoas ligadas ao CVV, numa sala da CBBA, agência de propaganda onde eu trabalhava como redatora e me iniciava na liderança da área de criação.

A campanha nasceu do fundo do meu sentimento, com o primeiro anúncio:

“Há quanto tempo você não desabafa?”

E logo o segundo: “Mesmo que você não dê muito valor à sua vida, nós damos.” 

A assinatura da campanha expressava o princípio-chave: “É mais fácil viver quando se tem um amigo.”

Eu mesma não tinha muitos amigos. Talvez nenhum. Desde que eu havia desembarcado sozinha na Rodoviária, na região da Luz, no centro da Capital, minha vida se resumia à luta pelo trabalho; e com o nascimento de meu primeiro filho, aos cuidados de mãe apaixonada.

Na profissão, na área em que eu atuava, o ambiente era totalmente masculino. Bons colegas, mas ninguém com quem eu pudesse falar das minhas dores.

Assim, identificada com todos os solitários do mundo, criei aquela primeira campanha não apenas escrevendo, mas ouvindo a voz de cada ser humano à beira de desistir da vida.

Um dia, alguns anos depois, já dirigindo a criação na McCann, recebo uma ligação de um desconhecido. Atendo. Ele diz: “Oi. É a Christina?” E eu: “Sim, quem está falando?” “Aqui é o Sergio. É você que acredita que é possível salvar uma vida pelo telefone?”  Respondo: “Sim, acredito”. E ele: “Então esta é a sua chance. Vou me suicidar.” 

Fiquei atordoada. Eu não tinha sido treinada - como acontece com os voluntários do CVV - para atender pessoas nessa situação tão dramática. Procurei conversar com o Sergio, que dizia: “Sou seu colega, mas em menor escala”. (A autodepreciação me golpeou. Senti o quanto ele se via pequeno e desimportante). “Trabalho no atendimento de uma agência. Minha vida não tem como prosseguir, não consigo mais.” Ele falava de seu sofrimento e do ponto final que decidira dar ao próprio desespero. Despreparada para lidar com a gravidade do caso, tentei dissuadi-lo, despertá-lo para uma visão mais esperançosa da existência. Sem os conhecimentos de um voluntário do CVV, entrei no caminho errado – pois queria salvar aquele homem de toda forma. Cheguei a propor de ir imediatamente ao seu encontro para uma conversa mais próxima, presencial. Não aceitou. Hoje sei que conversas presenciais devem  acontecer no ambiente do CVV. Mas o sofrimento dele tinha me capturado.

Na manhã seguinte, o mercado todo comentava, consternado, que um colega nosso, de nome Sergio, do atendimento da Thompson, havia tirado a própria vida.

Anos depois, mergulhei no túnel mais sombrio ao perder dessa forma brutal, dentro da família, alguém que eu amava muito.

Refleti por longos períodos sobre o descaminho da solidão.

A falta que faz um amigo. Não aqueles que te dão um tapinha nas costas quando você tenta dizer que não está bem. Mas aquele que percebe que você não está bem e te procura para te ouvir.

Há poucos minutos, escrevendo este relato, peguei uma folha de papel e comecei a listar as pessoas com quem compartilhei algum pedaço da minha trajetória, e que deixaram o Planeta por suicídio. No mundo profissional, oito colegas. Nas relações pessoais, mais sete suicidas. Destes, apenas dois não cheguei a conhecer pessoalmente. Eram parentes de pessoas próximas. Quinze ao todo. Entre eles, dois sobreviveram, resgatados por Jesus Cristo e a Legião dos Servos de Maria. E aquele que era para mim o mais amado – e se foi – me pediu, anos depois de sua partida, em inesperada mensagem psicografada, que eu fizesse por ele a trezena de Nossa Senhora. Ditou cada palavra da trezena. Ele que nunca tinha mencionado sequer o nome de Maria durante todos os anos em que convivemos. Fizemos a trezena e depois fui informada de que ele havia sido, felizmente, resgatado para a Luz.

A partida de um suicida deixa buracos na teia da vida. Mas como terá nascido o rasgo maior, na alma daquele que parte? 

Em meio a essas reflexões, já como VP da Norton (hoje Publicis), criei um filme em que uma senhora idosa percorre tristemente o corredor de seu apartamento. A cada porta que ela abre, um tipo de som, sempre feliz: vozes de crianças brincando no primeiro quarto; um adolescente ouvindo rock no segundo; o marido fazendo uma declaração de amor para ela no terceiro. Mas todos os quartos estão vazios. 

Esse filme do CVV nasceu de um poema que escrevi para meus filhos, que naquele momento eram todos pequenos. O poema começava assim:

O alarido das crianças

Seus gritos, risos e choros

Estarão sempre pelos quartos

E nos corredores.

...........................

Hoje, quando todos temos milhares – e alguns, milhões – de “amigos” nas redes sociais, a solidão atinge patamares nunca vistos. Adolescentes fazendo automutilação - o chamado cutting - jovens se suicidando de maneira crescente, depressão se tornando a doença do século, burnout virando arroz-com-feijão nas empresas, ganância, consumismo, fake news, exaltação do individualismo, descolamento do Ser.

Esse é um lado da moeda. Terrível sim... mas existe também o outro lado, e é para este que volto minha admiração e gratidão neste momento. Reverencio o grande facho de Luz que inunda milhões de corações e mentes mundo afora, transformando cenários e iluminando destinos. O mesmo facho de Luz que acende a compaixão e a mais pura humanidade em todos os envolvidos com o CVV.

Para acessar esse outro lado quando a angústia e a desesperança tomam conta, o número é 188. Por telefone ou qualquer dos canais, um amigo sincero, aquele que parecia nunca existir, vai receber você com o melhor sentimento e sem nenhum julgamento.

Muito obrigada, voluntário do CVV. Bom resgate hoje e sempre.


*Christina Carvalho Pinto é liderança internacionalmente reconhecida por seu trabalho na transformação da mídia, somando o poder das ideias criativas ao poder da consciência.




A PREVENÇÃO NA ÚLTIMA DÉCADA

 

 

Visita em 2017 do ministro da saúde Ricardo Barros  à sede do CVV, na rua Genebra, 168, em São Paulo. Foto: O voluntário Arnaldo Coutinho, explicando ao ministro as transformações históricas do CVV, incluindo a parceria tecnológica  com a Anatel para a criação e expansão da Rede Nacional 188 Gratuita.  


DE PORTAS ABERTAS

Desde que foi comemorado o cinquentenário da prevenção em 2012 muitas coisas importantes aconteceram no mundo e no próprio grupo pioneiro e empreendedor. Foi uma década de inquietações e transformações – como todas as anteriores – porém mais próximas e vivas em nossas lembranças. Muitas dessas mudanças foram surpresas e outras já faziam parte das  expectativas e aspirações dos voluntários da prevenção. As comemorações dos 50 anos do CVV  aconteceram durante os dois principais eventos anuais: o Conselho Nacional  e o Simpósio Internacional de Prevenção do Suicídio, ambos realizados em São Paulo. Como convidados especiais teve a presença de membros do BW- Befrienders Worlwide discutindo as tendências e diretrizes mundiais. Nesse mesmo encontro teve a visita ilustre do Dr. Pedro Martins, médico que durante mais de 20 anos emprestou seu nome e atuação como presidente do Centro de Valorização da Vida; e de Jacques Conchon e sua esposa Suely Conchon, respectivamente fundador, Secretário Geral do CVV e Diretora de Relações Públicas durante muitos anos.  Os três pioneiros já não estão mais fisicamente entre nós. Primeiro partiu o Dr. Pedro. Depois Sueli, em 2017. E  Jacques, que faleceu quando participava de um Encontro Regional  no Rio de Janeiro em 2018, ministrando para os voluntários um curso sobre Vida Plena. Não atuava mais na instituição que ajudou a fundar, porém acompanhava atentamente os acontecimentos. Conhecia e se atualizava constantemente sobre o que ocorria dentro e fora do movimento mundial de prevenção do suicídio. 

Naquele ano do cinquentenário a questão dominante do conselho nacional dos postos era definir o conceito e o papel do grupo da comunidade, uma ampliação das comissões de ações comunitárias criadas alguns anos antes para atender novas demandas de organização e aproveitamento das vocações voluntárias e também das necessidades externas. Essa nova cultura de abrir as portas da prevenção para mundo não conseguiu ser atendida pelas comissões, que funcionavam somente em alguns postos. Este obstáculo seria removido por um novo movimento que tomaria um formato totalmente exteriorizado das práticas preventivas. A ideia era reunir grupos voluntários para o pronto atendimento em ambientes externos e principalmente em eventos e circunstâncias emergenciais. Das ações comunitárias, um tanto inibidas nos postos, surge a  prevenção na comunidade, um capítulo novo na história da prevenção suicídio no Brasil. 

No ano anterior, no conselho nacional realizado em Guarulhos, o foco de preocupação era a entrada da prevenção nas redes sociais.  O grupo voluntário, como um todo, não tinha ainda a mínima noção de como aconteceria esse ingresso e como seria o comportamento institucional no uso dessa nova ferramenta de comunicação. As questões tecnológicas  davam o tom de um nova equipe que estava surgindo, juntamente com a mudança do comportamento suicida em alguns segmentos e faixas etárias. Havia também a emergente ação dos planos nacionais de prevenção. Naquela época o número de suicídios anuais no mundo atingira a marca assustadora de 1 milhão de mortes, com previsões desalentadoras de crescimento. Uma década depois o cenário seria bem diferente: os números mundiais caíram para 850 mil, porém as taxas de morte entre crianças e adolescentes haviam dado um salto de 12%.  Era preciso estar mais próximo da sociedade e com um modus operandi menos complicado e mais eficiente.  A barreira mais difícil era a telefonia, nosso formato mais tradicional de contato com os atendidos. Tradicional, caro e, portanto, ainda inacessível à maioria das pessoas.

UMA NOVA EXPANSÃO 

Questionado sobre o futuro da prevenção voluntária na ocasião do aniversário de 50 anos ONG, o fundador Jacques Conchon,  respondeu prontamente em 2012 que, ao completar de 100 anos de existência, o CVV provavelmente não existiria mais pois acreditava que a Proposta de Vida desenvolvida nos 50 anos anteriores já teria se espalhado pelo Brasil e muitos outros lugares, seja pela presença física ou pelas redes sociais que se estabeleceram em todo o planeta.  Em pequenas comunidades ou nos centros a presença dos grupos de prevenção seria garantida onde houvesse sofrimento emocional e disponibilidade de voluntários para oferecer ajuda. Enquanto isso não acontece os grupos trabalham com a possibilidade de expandir os postos físicos e também se preparam para se adaptar aos novos formatos de organização e funcionalidade virtual. Hoje o grupo é visto pelos seus membros como parte importante de uma estratégia de apoio emocional e prevenção do suicídio, atuando como base voluntária em conexão com órgãos públicos gestores, entidades profissionais e redes de atendimento psicossocial ligadas aos hospitais, pronto-socorro, corpo de bombeiros, ambulatórios, postos de saúde. É uma rede nacional de prevenção. Ter um posto como suporte de saúde mental nos bairros, regiões e cidades, seja qual for o tamanho delas, é o equivalente a ter qualquer uma dessas especialidades disponíveis para atender a população, seja nas necessidades cotidianas ou nas situações possíveis como as catástrofes naturais, pandemias e emergências coletivas. Não escondem de ninguém que sonham ter um posto ou serviço comunitário voluntário em todas as cidades do Brasil e nos países vizinhos, como já aconteceu em outros tempos. 


Apresentação do CVV pela  CNEX- Comissão Nacional de Expansão para implantação de um novo posto na região Sul.  


Embora as transformações tecnológicas e sociais tenham alterado as estruturas e ações do grupo pioneiro, os postos físicos continuaram sendo a principal referência (cultural e jurídica) de apoio emocional e prevenção do suicídio no Brasil. Ao contrário da Inglaterra, por exemplo, onde a maioria dos postos dos Samaritanos são as próprias casas dos voluntários, sobretudo no interior da Ilhas Britânicas, no Brasil eles são instalados em casas, hospitais, salas de núcleos religiosos ou espaços cedidos pelos poderes públicos, enfim, onde for possível ter um atendimento regular mínimo e de fácil acesso. O começo de uma atividade preventiva ainda acontece tradicionalmente dessa forma: um grupo  interessado forma um comitê e solicitam orientação técnica e jurídica para o estabelecimento do grupo como uma franquia social. A partir disso é constituída uma entidade mantenedora ou utilizada uma já existente. Os encontros são concluídos com a oferta de um curso para seleção de voluntários.  Esse trabalho de expansão de postos foi iniciado na década de 1970 na grande São Paulo, Porto Alegre (RS) e teve seu apogeu em 1977 quando foi criada a sigla e o programa CVV-Samaritanos. Na sua fase mais próspera atingiram a marca recorde de 70 postos, incluindo alguns países da América do Sul. Nos anos seguintes houve uma estagnação e até recuo desses números com o fechamento de algumas unidades. Tanto que a expansão tornou-se uma das Comissões Nacionais, com o objetivo de retomar o crescimento de postos. Em uma das reuniões anuais do Conselho Nacional ficou estabelecida a meta de implantação de 100 postos até o ano 2020. Em alguns períodos anteriores  ao ano-referência a comissão nacional de expansão chegou a registrar a abertura de 110 postos, obviamente já contando com a possibilidade de ampliar e ou recuar esses números. 

Podemos incluir neste plano expansionista a criação e fundação do CVV Web, em 2010, e mais tarde de um posto virtual, dois grupos experimentais, hoje já estabelecidos como programas dirigidos; atuam no universo cibernético  com atendimento on line e formam voluntários de forma remota. O mesmo ocorreu com a implantação das ferramentas digitais. A experiência dessas duas ferramentas, até então muito criticadas e vistas com desconfiança diante dos meios tradicionais, foi imprescindível para a continuidade dos atendimentos durante o isolamento imposto pela pandemia do COVID-19. 

Implantar postos é uma tarefa que depende do interesse de grupos locais, nos quais alguns tomam por conta própria a iniciativa de fundação, organização, manutenção e funcionamento. Antes, quando isso nem sempre era possível, sobretudo pela falta de número suficiente de voluntários, a ideia morria na fase inicial. Hoje, além dos postos físicos, existe também como base de expansão os núcleos prevenção na comunidade, que não precisam ter necessariamente o tradicional atendimento por equipamento telefônico e virtual. Agora é possível manter nas localidades alguma forma alternativa de atividade preventiva. Mesmo assim, o processo tradicional de implantação segue a sua rotina, que são as viagens e visitas (quase sempre com os próprios recursos dos voluntários) de primeiros contatos e instruções para a formação e desenvolvimento dos novos núcleos. 

É necessário lembrar também que atualmente os postos de prevenção  reconhecem novos tipos de demandas em diferentes setores sociais de atendimento e treinamento de voluntários e profissionais como, por exemplo, os postos de saúde, hospitais, núcleos de assistência social, as unidades escolares e também os estabelecimentos prisionais. No caso dos serviços na comunidade, as demandas são ainda mais amplas e já atendem diversas organizações e núcleos empresariais de pequeno e grande porte, bem como as situações emergenciais de acidentes e catástrofes, como as que aconteceram em Santa Maria e Brumadinho.  

O SETEMBRO AMARELO

Setembro Amarelo é o mês do movimento de mudanças, da exteriorização, dos eventos, da propaganda da causa preventiva e, sobretudo, da criação e elaboração de planos para os próximos ciclos da vida. No hemisfério Norte a chegada do outono lembra o período de recolhimento e introspecção, quando as folhas perdem a cor verde e caem para proteger e renovar as árvores durante o inverno.  Surgem então o espetáculo de múltiplos tons das folhagens  sinalizando a mudança do clima,  levando as pessoas ao mundo íntimo e às reflexões. É um período difícil para quem está passando por atribulações íntimas e muitos temem que possam sucumbir diante da tristeza, melancolia e a tentação do suicídio. Passando esse ciclo de outono e rigores do inverno, a natureza renasce em forma de floradas cujo tom dominante é o amarelo. Setembro é o início da primavera, da esperança e do recomeço. O amarelo tem sido usado para marcar as lutas de esperança pelos entes queridos que se foram ou desapareceram. Usar a cor amarela é um gesto de lembrança e também de solidariedade, como mostra esses relatos de pessoas que se envolveram diretamente nos atos e campanhas de celebração:

"Tudo se resume a esse único elemento de pessoas que se juntam e fazem parte de uma unidade. Você vê alguém usando uma fita amarela e sente uma conexão." "Eles (os laços amarelos) são um lembrete pungente e diário de uma pessoa desaparecida muito amada, que nos toca a todos e oferece uma maneira de aumentar a conscientização na comunidade em geral". “Não é maravilhoso? realmente, é apenas para mostrar que as pessoas se preocupam com você."

Este é o significado da cor escolhida para lembrar que a prevenção do suicídio dever ser permanente e uma tomada de consciência que deve durar todos os dias do ano e reunir forças para o longo percurso das quatro estações, as quais temos intimamente com suas marcas e características. Cada de nós tem o seu verão de extroversão, seu outono de reflexão, seu inverno de temores e provas e finalmente a sua primavera de renovações, independente da época e dos meses do ano. Produto da iniciativa de entidades internacionais de prevenção, o movimento é marcado pelo 10 de setembro, Dia Mundial de Prevenção do Suicídio, data  celebrada universalmente desde 2003. 

O movimento chegou ao Brasil pelas mãos do CVV e entidades de saúde mental em 2015 e hoje já se espalhou pelo país através da adesão de inúmeros grupos e segmentos. Prédios, monumentos e lugares simbólicos são iluminados pela cor amarela, que também toma conta das vestimentas e adereços usados por milhares de pessoas durante todo o mês. Tudo isso representa uma importante mudança de paradigma e comportamento que poderíamos denominar “universalização da prevenção do suicídio”, pelo fenômeno do redimensionamento de um tema tabu em um assunto de  amplo interesse social e de saúde pública. 

 

 


Clip do Detonautas veiculado no Youtube em 2019.


O Setembro Amarelo atraiu para a causa a sensibilidade de artistas e o prestígio da indústria fonográfica quando  produtores e músicos de expressão nacional gravam clips com a temática da prevenção do suicídio para exibir durante a própria  campanha do Setembro Amarelo e também em  grandes eventos culturais. O grupo Detonautas, além do clip, gravou mensagem de conteúdo preventivo e transformou sua criação em atração do festival Rock in Rio. Outros artistas que aderiram a esta forma de divulgação foram:  MCida,  no clip Emicida Amarelo, com participação de Pablo Vitar e Majur; Calinhos Brown, com o clip “Vozes do Silêncio-Falar pode mudar tudo”; e Fernanda Takai, com o clip” 188 das quebradas”. Lembrando que o clipe Emicida Amarelo teve como base a uma gravação dos anos 1970 da música “Sujeito de sorte”, do compositor Belchior. 


DESCOBERTA NO IPIRANGA

“As grandes ideias naturalmente são muito criticadas. Aliás, o que valida uma grande ideia é realmente o movimento que se forma em torno para impedir, para refrear, para criticar” Jacques Conchon.

No final da década de 1990 o CVV já possuía uma estrutura mais ampla, organizada em áreas regionais de localização dos postos físicos. O número de membros ativos oscilava entre 2.000 e 2.500 voluntários. Nessa época já era possível perceber uma certa inquietação em nosso movimento, causada pelas recentes e rápidas mudanças sociais e tecnológicas que resultariam, por exemplo, na criação do CVV Web e que hoje se configura como posto digital.   Além da tecnologia existia também uma inquietação de natureza mais íntima e existencial. Os voluntários sofriam igualmente esse impacto de mudanças: incerteza e a falta de perspectiva diante do futuro. Já eram os primeiros sinais da grande onda de ansiedade, síndromes e depressão que atingiria todas as faixas etárias nas duas décadas seguintes.  Foi nesse período que os fundadores do CVV, Jacques Conchon e Flávio Focássio, desenvolveram uma nova ferramenta de ajuda emocional que poderia responder prontamente a esses distúrbios sociais de adaptação e muito sofrimento pessoal. Foram três anos seguidos de reuniões em um núcleo, na rua dos Patriotas, no Ipiranga. Jacques Conchon relata  que as reuniões eram de portas abertas e livre expressão dos sentimento. Uma média de 20 pessoas frequentavam as reuniões semanais e, sentadas em círculo, relatavam suas experiências  num ambiente de aceitação e respeito. No bairro havia hospitais e nos encontros apareciam atendentes, médicos e também o simples funcionário da limpeza, todos falando abertamente sobre si e das dificuldades pessoais diante das situações de vida.  A ferramenta recebeu o nome CRC-Caminho de Renovação Contínua, baseada no formato dos  grupos de encontro, porém com o conteúdo das experiências e conhecimentos acumulados pelo CVV nas últimas quatro décadas. Era a síntese formatação da nossa  Proposta de Vida.  O desenho do CRC era simples como formato e dinâmico como funcionamento, usando o conceito rogeriano de vida plena para conduzir as reuniões.  Como se tratava de algo muito pessoal, pois os temas remetiam diretamente ao mundo íntimo,  o programa de ajuda e autoconhecimento poderia sofrer uma rejeição. De fato isso aconteceu entre alguns grupos mais reservados, porém explodiu com entusiasmo em outros, gerando um movimento excepcional entre os voluntários. Neste segundo grupo nasceram os Encontros do CRC reunindo nos fins-de-semana centenas de voluntários e pessoas não ligadas ao CVV em eventos e reuniões espalhadas nos postos, nas escolas, empresas e até condomínios. Era uma revolução na qual o CVV se abria para mundo ofertando amizade e apoio emocional em práticas totalmente diferentes daquelas nas quais havia sido fundado. O entusiasmo foi tanto que dava a impressão de que  tínhamos descoberto um novo sentido para as nossas vidas e para o próprio CVV. Passada a euforia, o movimento foi diminuindo de intensidade e quase desapareceu, por motivos óbvios: as pessoas encontravam ali um refúgio para aliviar suas angústias e tensões de forma imediata e naturalmente se afastavam, satisfeitas ou não, daquele fluxo de continuidade que, com o tempo e para elas, se tornava repetitivo e rotineiro. Apesar desse esfriamento após a sua descoberta efusiva,  o CRC tornou-se no decorrer dos anos uma importante base de experimento e preparação para outras mudanças que iriam acontecer alguns anos depois por meio do CVV Comunidade, outra ideia que também encontrou forte resistência por parte dos que não conseguiam vislumbrar seu potencial e a sua abrangência fora dos postos. Foram necessários quase 20 anos para que o CRC e o CVV Comunidade fossem compreendidos como recursos diferenciados das tradicionais formas de acolhimento e abordagem de ajuda. 


A TRAGÉDIA DA BOATE KISS E A LINHA  NACIONAL 188

O incêndio na boate Kiss, que matou 242 pessoas e feriu 636  na cidade de Santa Maria, no Rio Grande do Sul. A tragédia que ocorreu na madrugada do dia 27 de janeiro de 2013 despertou nos voluntários do CVV da cidade uma imediata reação de solidariedade. O posto improvisou uma tenda próxima ao hospital onde foram internadas as vítimas e ali passou a acolher as pessoas angustiada em busca de notícias de parentes acidentados. O trabalho durou vários dias e despertou a curiosidade dos funcionários do Ministério da Saúde que foram verificar os danos causados pela tragédia e ofertar ajuda e suporte governamental. Nessa visita ao posto improvisado,  os voluntários de Santa Maria lembraram aos funcionários do MS e assessores do Ministro da Saúde que o CVV havia protocolado um pedido de concessão de uma linha exclusiva para a padronização e expansão e implantação do serviço digital de apoio nas principais cidades brasileiras. Esse contato resultou numa imediata na qual o MS solicitou para a Anatel a concessão ao CVV do número 188 para uso nacional. O estado do Rio Grande do Sul foi então escolhido como ponto experimental cujo modelo seria rapidamente estendido para os demais estados. Em função dessa medida o CVV empreendeu a instalação de novos postos e a intensificação da formação de novos voluntários, atingindo uma média de 3.500 apoiadores atendendo por chat, telefono e e-mail. Esse novo modelo de organização de apoio foi de extrema importância e utilidade quando ocorreu a pandemia de Covid-19 possibilitando a formação on line e o atendimento 24 horas na própria residência dos voluntários. Lembrando que essa prática já era muito comum no Reino Unido (Inglaterra, Irlanda e Escócia) que possui uma média de 20 mil voluntários.


Anúncio da expansão da linha 188 concedida pela Anatel e um convênio do CVV com o Ministério da Saúde. 


NA COMUNIDADE

Durante cinco décadas o CVV teve uma atuação intensa, porém muito discreta e reservada. A ideia era preservar a confiabilidade entre os atendidos, que faziam dos plantões um oásis para suas angústias e não podiam compartilhar seus sofrimentos. Com exceção da grande campanha de expansão de 1978, o  CVV aparecia em público somente o mínimo necessário para dizer que existia e que estava disponível. Tudo era muito discreto e anônimo, como sempre foram os atendimentos e os voluntários. Não havia essa exposição social e midiática que temos hoje, do trabalho e principalmente dos voluntários. 

Entretanto, com o passar dos anos, fomos percebendo que o acesso aos nossos serviços permanecia muito limitado ao contato telefônico e muito raramente aos atendimentos presenciais, ainda assim com restrição de horários. O tom dominante do trabalho era essencialmente individual, introspectivo e solitário. Os voluntários só tinham contato entre si nas reuniões mensais de grupo (fechadas e com poucas pessoas)  e nas reuniões gerais, que não eram públicas, porém repletas de plantonistas de um ou mais postos. Fora disso, predominava a rotina dos plantões. 


Voluntários do CVV Comunidade atuando num canteiro de obras em São Paulo.


Mas há que se lembrar que essas reuniões de voluntários eram momentos de estudos e reflexões nas quais eram ofertados conhecimentos e experiências diversas, de dentro e de fora do CVV.  A regra era “conhecer para melhor compreender”. Tudo isso foi se acumulando em forma de acervos materiais e humanos, numa época em que o conhecimento era registrado em livros, apostilas, fonogramas K-7 e fitas de vídeos, enfim uma cultura enciclopédica. Não tínhamos o hábito de compartilhar informações e experiências fora dos nossos postos. Também não havia muitas solicitações já que, tanto o suicídio quanto as temáticas emocionais eram igualmente tabus. Vivíamos num mundo industrial e numa sociedade de segredos.  

Com o advento do mundo digital e das redes sociais, forma-se como conseqüência uma sociedade de transparência. Com o advento da internet tudo passa a ser público e notório e o CVV , bem como a prevenção do suicídio, também passa a ser alvo de curiosidade e especulação social.  As pessoas querem saber quem somos, como atuamos, qual é a nossa missão e os nosso valores. Isso porque as estatísticas de suicídios, a produção artística e acadêmica sobre esse tema também sofrem uma espécie de surto de exposição: reportagens, eventos, livros, filmes, séries, etc., caracterizando uma nova forma de convívio, expressão e comunicação das necessidades humanas. Fomos atingidos em cheio por todas essas mudanças. 

Para atender essa nova demanda, foram criadas no CVV a ações comunitárias, cujo papel era iniciar um diálogo mais aberto e mais abrangente com a sociedade. Era uma tendência que  passou a definir o perfil das instituições sociais: empresas, escolas, igrejas, ONGs e  órgão públicos governamentais. O voluntariado passou a ser uma valor institucional de alto prestígio e o CVV passa ser alvo de busca da construção e realização desse ideal cultivado sobretudo nas empresas. 

Era necessário realizar algumas mudanças estruturais para atuar nessa nova época. O tradicional voluntário de posto fixo e restrito aos serviços de contato tecnológico não era mais suficiente. Então surgem dois novos desafios: quebrar o isolamento e sair dos postos para compartilhar em outros ambientes toda essa experiência apreendida nos atendimentos e nas reuniões e eventos de estudos. 

Essa busca foi diretamente ao encontro da criação do CVV Comunidade, movimento que surgiu a partir de improvisações e cujo crescimento de demanda tinha como respostas a criação e adaptação de novas ferramentas de apoio emocional. Grande parte do acervo de experiências realizadas pelos postos e apresentadas nos Encontros Regionais foram sendo transferidos aos novos grupos do CVV Comunidade, aplicados de forma imediata diante das solicitações. 


 MALAS PRONTAS



Relato no IX Simpósio Internacional de Prevenção do Suicídio Ribeirão Preto-SP, 30 de agosto de 2019.

ANA ROSA

As pessoas que se reúnem aqui hoje representam os 113 voluntários que estiveram presentes na ação Malas Prontas em Brumadinho-MG.

O CVV Comunidade foi criado para compartilhar a nossa proposta de vida, disponibilizando as ferramentas de ajuda e autoconhecimento. Uma dessas ferramentas é a ação de ajuda dirigida para eventos especiais e situações de catástrofes e emergências. 

Assim que ficamos sabendo da tragédia em Brumadinho, ocorrida em 25 de janeiro de 2019  nos reunimos e agilizamos  nossa organização nos conduzindo para Minas Gerais. Fomos acolhidos por uma voluntária em Belo Horizonte, onde realizamos o primeiro plano de ação.

Em nosso grupo tínhamos dois voluntários estrategistas do CVV, que são militares da Marinha e do Exército, que prepararam um conjunto de procedimentos para deslocamento e permanência em condições de dificuldade e emergência. Eram itens materiais, regras de conduta, técnicas de aproximação e proteção psicológica, todas necessárias ao bom funcionamento das ações e bem estar de todos.  

Um desses itens o registro diário das ações, feito através do Caderno de Gratidão, ferramenta individual para anotações de ocorrência pessoais; e o Caderno Amarelo, para registro das ações do grupo. O caderno  funcionou como controle e continuidade das ações. 

O deslocamento de Belo Horizonte até Brumadinho teve o apoio de uma locadora, que nos cedeu gratuitamente um veículo, no qual viajamos e permanecemos em uso por uma semana, até que ficássemos devidamente instalados.

 Quando chegamos à cidade, a 01 de fevereiro, nos dirigimos ao portal e ali fizemos a  primeira ação, que foi a nossa identificação, abrindo a faixa do CVV e mostrando a nossa disponibilidade. Nesse portal já estavam afixados cartazes, fitas, fotos e muitos outros objetos simbólicos lembrando o desaparecimento de pessoas e a esperança de familiares e amigos de reencontrá-los ou obter notícias dos seus paradeiros, vivos ou mortos. Naquele momento já fizemos as primeiras escutas. 

A seguir fomos procurar as lideranças locais, para nos identificarmos nos colocar à disposição para servir. Fomos acolhidos e recebemos instruções e apoio da Diocese de Belo Horizonte, da Paróquia de São Sebastião, que nos instalou imediatamente num estacionamento do Espaço Família e depois de alguns dias na Casa de Maria. A Defesa Civil e o Corpo de Bombeiros imediatamente ofereceu apoio e integração com os grupos socorristas e facilitando o acesso aos bairros e famílias atingidas impactadas. Todos esses grupos, incluindo a Capelania Internacional, viram a nossas ações de escuta fraterna já no Portal e perceberam o potencial da nossa ajuda. 

Nossa chegada coincidiu como um momento muito delicado e difícil após a tragédia, pois estava acontecendo os primeiros velórios e sepultamentos dos corpos encontrados após as buscas. Velórios, enterros e cerimônias fúnebres se sucediam sem trégua revelando a exaustão dos sacerdotes e auxiliares de serviços públicos.  Essas equipes solicitaram então, devido ao cansaço, que atendêssemos as famílias presentes aos serviços religiosos, desde a identificação dos corpos no IML (ainda em Belo Horizonte), nas missas e nos enterros. Em uma segunda etapa, tivemos acesso aos bairros, onde famílias ainda estavam isoladas e temerosas de receber ajuda ou terem que deixar suas casas. 

Tivemos que vestir o uniforme da Defesa Civil para chegar até elas. Formamos uma escala de Plantões de Escuta e estabelecemos um limite de três famílias a serem atendidas por plantão, para preservar os voluntários. Naquele instante também já divulgávamos o número 188 para que funcionasse com suporte complementar.

Tínhamos uma rotina em Brumadinho. Começávamos do dia com uma reflexão, zerando preocupações e ansiedades. E depois construímos uma agenda de serviços e divisão de tarefas, que incluía os plantões, visitas a famílias e instituições que solicitavam a nossa presença para dialogar com funcionários atendentes e educadores nas escolas. Nossa agenda foi integrada à da Igreja, participando das missas e terços, onde tínhamos espaço para falar e divulgar os nossos serviços. Ao voltar da jornada diária, realizávamos a roda de Vida Plena, para nossa harmonização e preparação para dormir. 

Em todos os lugares por onde andávamos éramos conhecidos como os Amarelinhos, pois não usávamos crachás de identificação. O colete dizia que éramos o CVV. Só isso.  A Rádio Regional de Brumadinho , após as primeiras semanas, criou o Espaço CVV, para entrevistas e divulgação do trabalho de ajuda. O programa ia ao ar às quartas-feiras de manhã. 

As sextas-feiras era o dia de troca das equipes de voluntários. Era a passagem do Bastão, momento simbólico de chegada, conhecimento das ações e reconhecimento dos territórios para a sucessão de tarefas.  

Houve uma tentativa de formação de um posto do CVV em Brumadinho, mas percebemos que não era o momento mais adequado, pois os participantes eram em sua maioria sobrevivente e não estavam emocionalmente preparados e maduros para assumir responsabilidades para a rotina de atendimentos. Mesmo assim, deixamos sob o comando de voluntários de outras cidades próximas algumas bases, com o funcionamento de  ferramentas fundamentais, após a realização de dois cursos. 

Encerramos os nossos trabalhos com um jantar de confraternização com os nossos parceiros, registrando depoimentos e trocas de impressões muito especiais e que ficarão gravadas em nossos corações. 

Balanço: 113 voluntários de diversos estados e cidades do Brasil:1.200 atendimentos; 122  famílias visitadas e atendidas; 448 pessoas em rodas de conversas; 376 pessoas em palestras e cursos. 

SOBREVIVENTES DO SUICÍDIO

O suicídio como tabu nunca poupou os voluntários do CVV. Vivemos na mesma sociedade que sofre e que durante muito tempo nos impôs o silêncio sobre os fatos e o sofrimento decorrente do suicídio. Nossos primeiros voluntários se propuseram a combater suicídio movidos por uma ideologia religiosa e numa crença salvacionista, como aconteceu na Inglaterra e na Itália na mesma época.  Muitos de nós éramos sobreviventes do suicídio, mas não tínhamos consciência disso e nem imaginávamos que um dia teríamos um espaço no qual nós e nossos familiares poderiam compartilhar suas experiências com outras pessoas que passaram pelas mesmas dificuldades. Talvez o silêncio imposto pelo tabu seria uma forma social de reconhecer e sinalizar que individualmente não estávamos preparados para falar sobre esse assunto. É preciso estar pronto tocar nesta ferida. Éramos muito tímidos e temerosos de uma rejeição e discriminação. O conforto íntimo às vezes surgia numa reunião de treinamento dos grupos ou numa palestra instrutiva, como se alguém do CVV percebesse que muito voluntários sofriam com a experiência da ideação suicida ou  com a perda de entes queridos; e precisavam de alívio por meio do conhecimento e da oferta de ajuda especializada.  Nas reuniões de CRC- Caminho de Renovação Contínua, o tema suicídio aparecia eventualmente quando se falava em morte e não necessariamente sobre a perda por suicídio. Era um conforto, porém algo mais precisava ser feito para que o assunto fosse tratado de forma aberta e com tempo integralmente dedicado ao tema e às necessidades dos sobreviventes.  A sensação de acolhimento pôde ser mais ampliada quando, no espaço do CVV Comunidade, surgiu o programa e o formato de reunião específica para sobreviventes e enlutados. Os núcleos foram surgindo e rapidamente se multiplicando, exatamente como havia acontecido com os postos do CVV e dos núcleos do CVV Comunidade.  Hoje eles fazem parte do conjunto de serviços de apoio emocional e prevenção do suicídio do CVV realizados dentro ou fora dos postos. Em Novo Hamburgo–RS, encontramos um exemplo de como surge e desenvolve um núcleo do GASS. 

“No dia 03 de Junho de 2013, no Plenarinho da Câmara de Vereadores de Novo Hamburgo, estavam os voluntários Bela e Gustavo, aguardando ansiosos pela chegada dos primeiros participantes do inicialmente grupo chamado GAMSS (Grupo de Apoio Mútuo aos Sobreviventes do Suicídio). Um misto de ansiedade e medo em seus corações, mas com a convicção de que este seria um trabalho gratificante e um pouco diferente do que habitualmente se realiza no CVV. Diferente porque estaríamos frente a frente com pessoas que perderam familiares e amigos através do suicídio e sobreviventes de si mesmo. Então, chegou a primeira pessoa. Uma garota de sorriso triste e que pouco falava. Notamos que estava com curativos nos dois braços. Timidamente chegaram mais cinco pessoas. Estava formado o primeiro Grupo de Apoio Mútuo aos Sobreviventes do Suicídio (GAMSS).  Os depoimentos foram dolorosos, doídos, depoimentos das diversas tentativas de suicídio, das internações em hospitais, das mutilações para aliviar a dor. A dor dos pais que perderam o filho que havia se formado na Universidade. A dor da esposa que presenciou o suicídio do marido, e outros depoimentos que fizeram com que as lágrimas brotassem dos rostos de todos os presentes”.       

O GASS

Os  amigos e familiares de alguém que se suicidou não devem sofrer sozinhos e em silêncio. Os sobreviventes precisam de um espaço em que possam falar das suas emoções, do seu sofrimento. Como meio de ajudá-los o CVV Novo Hamburgo inicia no dia 04.06.2013, um Grupo de Apoio Mútuo aos Sobreviventes de Suicídio (GAMSS). 

No grupo, os sobreviventes poderão conversar com pessoas que tenham uma experiência similar, e neste ambiente  acolhedor sentir-se à vontade para contar suas histórias da maneira como se sentem melhor.  

As reuniões não serão terapêuticas, portanto, não substituem qualquer assistência profissional necessária. Os encontros serão confidenciais e sigilosos.

Ajude um sobrevivente a buscar um grupo de apoio, pois  isso poderá trazer-lhe um pouco de conforto e alívio.  

O GASS é um grupo que oferece um espaço aos sobreviventes do suicídio de um ente querido, ou eventualmente, a uma pessoa que tenha tentado. O objetivo primeiro é que todos compartilhem suas dores, angústias, esperanças, sofrimentos, expectativas, elaborações, soluções, saudades, etc. sempre respeitando as opções religiosas e crenças dos participantes. 

O suicídio pode ser prevenido e o luto deve ser acolhido. O GASS tem o objetivo de oferecer acolhimento aos sobreviventes do suicídio, ou seja, de qualquer pessoa que se sentiu impactada pelo suicídio, por meio de encontros em grupos de apoio. Abertos para qualquer sobrevivente que queira participar. Alguns podem não se sentir prontos para frequentar um grupo de apoio, fazer os contatos iniciais, mas sempre é reconfortante saber que tipo de ajuda está disponível quando a coragem surgir, quando se sentirem prontos.  O luto é tão individual como uma impressão digital. Sentir-se oprimido pela intensidade de seus sentimentos, sentir raiva, culpa, confusão, esquecimento, são sentimentos normais, você está de luto. Você pode até se sentir culpado por aquilo que você acha que fez ou deixou de fazer. A culpa pode transformar-se em arrependimento, através do perdão. Um sobrevivente nunca mais será o mesmo, mas pode sobreviver e até mesmo ir além de apenas sobreviver. 


SUICÍDIO DE CRIANÇAS E JOVENS


“Esse tema do suicídio entre os jovens é algo arrebatador. É uma experiência singular. Conversar com o jovem e ele discorrer abertamente, sem emoções, sobre as vantagens de meter uma bala na cabeça, que resolve tudo, tá tudo solucionado... realmente é algo que me toca.  Se me perguntam: na época existia esse problema focado nos jovens, não havia isso. As faixas etárias estavam mais para 30, 35 anos. É impressionante. Às vezes me perguntam: o que dizer aos jovens? O que comunicar ao jovem? Eu resumiria no seguinte. Me dirigindo ao jovens , por desmotivação (não sei), por desencanto (também não sei), que estão nessa conspiração que pode levá-los ao suicídio. O que eu posso dizer. O sofrimento de vocês, meus jovens, o desencanto que vocês estão experimentando face à uma sociedade que está em ruína, tudo isso me cala profundamente no coração. Há dois meses atrás em São Paulo matou-se aquele jovem e deixando na sua carta de despedida: “Era uma opção”.  Elegera como opção o suicídio. Não tinha problema, não havia conflitos, se dava bem com os pais e com os amigos. Era uma opção. Uma opção...  E no dia seguinte um outro jovem se jogou de um prédio ali nos arredores do Paraíso. Me fez lembrar Werther , de Goethe, que desencadeou aquela onda de suicídios pela Europa inteira. O que dizer ao jovem?  Só posso dizer que estou sofrendo muito  com isso. Muito mesmo. Se querem um realmente um conselho, eu não posso dar. E vocês  sabem porquê. Mas me lembraria de Gonzaguinha. “Fé na vida, fé no homem, fé no que virá. Nós podemos tudo, nós podemos mais. Vamos lá fazer o que será”. E que Deus nos proteja”.  Jacques Conchon. 

Sorocaba, 14 de outubro de 2017. Programa Compartilhe com o CVV. TV Com. 


20 ANOS DE PREVENÇÃO PARA A INFÂNCIA

Em 1997, a Befrienders International, uma agência global de prevenção ao suicídio com serviços de linha direta por telefone em 41 países, tem a oportunidade de desenvolver um novo programa para a infância. Eles decidem desenvolver um programa que dá às crianças as habilidades para lidar com situações difíceis e estar mais bem preparadas  para lidar com crises e dificuldades, como acontece com adolescentes e adultos. O “Reaching Young Europe”, é desenvolvido por um grupo de psicólogos do Canadá, Dinamarca, Noruega e Holanda. É um programa instalado nas escolas para ensinar habilidades sociais e de enfrentamento saudáveis a crianças de seis e sete anos. Em 1998, a Dinamarca executa o primeiro piloto. Os resultados iniciais são promissores, mas não bons o suficiente para que o programa seja desenvolvido. Em 2000, a nova versão do programa é testada na Lituânia e na Dinamarca e encontra um impacto significativo nas habilidades de enfrentamento das crianças. Em 2001, a Partnership for Children é fundada como uma instituição filantrópica. Em 2002  “Reaching Young Europe” é renomeado “Zippy's Friends” (Amigos do Zippy”) e lançado internacionalmente. Em 2003, surge o primeiro parceiro fora da Europa, quando Zippy's Friends é aplicado na Índia e no Brasil. Em 2007, escolas na Noruega participam de  primeiro teste de controle de Zippy's Friends. Em 2013, Zippy's Friends for Special Educational Needs and Disabilities é ampliado. Em 2014, mais de 1 milhão de crianças em mais de 30 países participaram do Zippy's Friends. Em 2016, o Friends da Apple para crianças de 7 a 9 anos é lançado. Em 2018, e lançado o passaporte para crianças de 9 a 11 anos. Em 2020 os cursos de treinamento passam a ser online e materiais disponíveis para download digital. Em 2021,  é lançada a resiliência SPARK para crianças de 10 a 12 anos. A Partnership for Children comemora 20 anos e alcança dois milhões de crianças em todo o mundo! 

Fonte: www.partnershipforchildren.org.uk/who-we-are/our-history.html




 Em 1977, um juiz do tribunal juvenil de Seattle, preocupado em tomar decisões drásticas com informações insuficientes, concebeu a ideia de cidadãos voluntários defendendo os melhores interesses de crianças abusadas e negligenciadas que surgiam no tribunal. A partir desse primeiro programa, cresceu uma rede de quase 1.000 CASA e programas ad litem de guardiões que estão recrutando, treinando e apoiando voluntários em 49 estados e no Distrito de Columbia. Pulaski County CASA começou a servir crianças em 1987 em Little Rock, Arkansas, Sexto Distrito Judicial. No ano passado, a CASA do Condado de Pulaski atendeu 240 crianças com 100 defensores.

DEPOIMENTO DE UM GUARDIÃO

Quando penso em suicídio, penso nas mães que conheço que perderam filhos para o suicídio. Eles nunca param de sofrer. Elas choram pela criança que perderam. Elas lamentam a vida inacabada. Elas lamentam a possibilidade de terem perdido um sinal e poderiam tê-lo impedido. E elas lutam. Eles lutam para garantir que os outros estejam cientes dos perigos do suicídio, falam na esperança de que outras mães não experimentem o luto com o qual vivem e falam sobre suicídio mesmo que isso deixe os outros desconfortáveis.

Esta noite, tenho uma mãe assim no meu coração – Dena Daniel. Ela faleceu este fim de semana e estou de luto por sua perda. Eu conheci Dena quando ela treinou para se tornar uma Advogada da CASA. Ela era feroz. Ela era poderosa. Ela era a voz de várias crianças em um orfanato. Mesmo sendo uma coisinha, ela se certificou de que a voz das crianças fosse ouvida. Ela lutou pelos melhores interesses deles e garantiu que eles recebessem tudo o que precisavam. Ela amava as crianças que defendia. Ela foi incrível. E ela era minha amiga.

No verão passado, sua filha Audra cometeu suicídio. Foi um golpe que poderia derrubar qualquer mãe. Isso a tornou mais forte. Não me entenda mal, eu sei que isso a destruiu também. Mas como mencionei anteriormente, Dena era feroz. Então, ela assumiu a luta para garantir que os outros estivessem cientes do perigo do suicídio.

Dena recentemente compartilhou estas palavras poderosas de Elisabeth Kubler-Ross em seu Facebook: A realidade é que você vai sofrer para sempre. Você não vai “superar” a perda de um ente querido; você aprenderá a conviver com isso. Você se curará e se reconstruirá em torno da perda que sofreu. Você será inteiro novamente, mas nunca mais será o mesmo. Nem você deve ser o mesmo nem gostaria.

Aprendi muitas coisas com Dena, uma delas é que o suicídio precisa ser abordado, não enfiado no armário. Não tenha medo de falar sobre suicídio. Não tenha medo de perguntar a alguém se está pensando em suicídio. Procure os sinais de alerta. Então, em memória amorosa de Dena e sua Audra, vamos falar sobre suicídio.

Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 1 milhão de pessoas morrem a cada ano por suicídio. Ao estar disposto a falar abertamente e procurar sinais de alerta, você pode ajudar alguém com pensamentos ou intenções suicidas a se conectar com recursos.

Que sinais você procura? Os sinais podem ser muitos e variados – alguém ameaçando se machucar, buscando acesso a armas, postando nas redes sociais sobre cometer suicídio, falando sobre sentir-se desesperançado ou deprimido, aumento do uso de álcool ou drogas, atuação imprudente, mudanças nos hábitos de sono, autocontrole, isolamento, afastamento das atividades normais, mudanças extremas de humor.

Existem também fatores de risco que aumentam a probabilidade de suicídio. De acordo com Youth.gov, as crianças em lares adotivos eram quase três vezes mais propensas a ter considerado suicídio e quase quatro vezes mais propensas a tentar suicídio do que aquelas que nunca estiveram em lares adotivos. Outros fatores de risco incluem, mas não estão limitados a – transtornos mentais, transtornos por uso de álcool e substâncias, histórico de trauma, doença física grave, perda de emprego ou relacionamento, tentativas anteriores de suicídio.

O que você pode fazer? Estenda a mão e verifique alguém com quem você está preocupado. Pergunte sobre suicídio. Ouça e ofereça esperança. Ajude a fazer um plano de segurança. Ajude a navegar nos cuidados de saúde mental. E se você estiver pensando em suicídio? Estenda a mão para alguém. A ajuda está disponível. O National Suicide Prevention Lifeline está disponível 24 horas por dia em 800-273-8255


PREVENÇÃO DEVE COMEÇAR NA INFÂNCIA

No mês de conscientização sobre o suicídio, especialistas falam da importância de acolher crianças e adolescentes e conversar sobre o tema

Bethânia Nunes. 20/09/2020. METRÓPOLES 

Falar sobre morte e suicídio ainda traz desconforto para a sociedade, seja por uma questão cultural, seja por medo ou por não saber como lidar com eles. No mês de prevenção ao suicídio, com foco nos cuidados com a saúde mental, especialistas ressaltam a importância de pais abordarem o assunto com crianças e adolescentes para levar esclarecimento e perceber pedidos de socorro.

De acordo com a Organização Pan-Americana da Saúde (Opas), o suicídio é a terceira principal causa de morte entre adolescentes de 15 a 19 anos no mundo, e as consequências de não abordar o assunto se estendem à idade adulta, prejudicando a saúde física e mental e limitando futuras oportunidades.

As condições de saúde mental são responsáveis por 16% da carga global de doenças e lesões em pessoas com idade entre 10 e 19 anos. Metade dessas condições começa aos 14 anos, mas a maioria dos casos não é detectada ou tratada. A depressão aparece como uma das principais causas de doença e incapacidade entre adolescentes de todo o mundo.

No Brasil, o último boletim epidemiológico de tentativas e óbitos por suicídio, do Ministério da Saúde, publicado em 2018, mostrou 13.463 óbitos por suicídio registrados no Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) naquele ano. Desses, 1.053 foram entre crianças e jovens com até 19 anos. Entre os adultos, na faixa etária de 20 a 39 anos, foram registrados 5.150 óbitos por suicídio.

Atualmente, existem 2.657 Centros de Atenção Psicossocial no país, que ofertam acolhimento e assistência às pessoas com transtornos mentais, incluindo depressão e ansiedade. Nesses locais, há tratamento e acompanhamento contínuo por meio de cuidado individual e em grupos, além de terapia medicamentosa.

A médica pediatra e membro da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) Lílian Cristina Moreira explica que não existe um padrão ou momento pré-estabelecido para tratar do assunto, mas ele deve ser conversado quando partir da própria criança, como uma maneira de acolhimento.

Elas costumam ter consciência da morte e a capacidade de compreensão entre os 4 e 7 anos. “Não falar é pior, porque, se ao tocar no assunto os pais recebem com angústia, ansiedade ou tentam minimizar, desqualificar ou postergar, a criança pensa: ‘Esse assunto incomoda, isso é um problema, deve ter alguma coisa errada nisso'”, afirma.

De acordo com a pediatra, conversar sobre morte não piora a temática. “Pelo contrário, abre-se um espaço na família para aquele tema ser acolhido e tratado de uma forma natural, porque mostra que o nascer e o morrer fazem parte do ser humano.”

O psicólogo clínico Fernando Mancilha explica que algumas crianças muito novas não entendem a morte como um processo definitivo e, por isso, o assunto deve ser abordado aos poucos. A partir dos 3 anos, contudo, já é possível mostrar de maneira concreta a noção de finitude. Como, por exemplo, plantar um feijão e mostrar o ciclo da vida ou conversar sobre o assunto quando um animal de estimação morre.

“Nessa idade, o pequeno tende a achar que as coisas são mais mágicas e reversíveis. Para eles, as coisas podem ser revertidas. É a partir dos 6 anos que a criança começa a entender melhor a morte como uma coisa definitiva. Nessa idade já dá para conversar de uma maneira mais clara”, explica o psicólogo.

Para Mancilha, os adultos precisam desmistificar a ideia de que crianças não cometem suicídio. “Por ser mais raro, em geral, as pessoas não ficam atentas. A gente deve observar os pequenos com os mesmos olhos e cuidados oferecidos aos adolescentes”, sugere.

O documento Prevenção do Suicídio – um recurso para conselheiros, da Organização Mundial da Saúde (OMS) – esclarece os principais mitos sobre os comportamentos suicidas. Entre eles, está a falsa percepção de que crianças não cometem suicídio, pois não entendem a finitude da morte e por isso são cognitivamente incapazes de se matarem. “Embora seja raro, as crianças cometem suicídio, e qualquer gesto, em qualquer idade, deve ser levado muito seriamente”, diz o relatório.

O documento também destaca como mito o fato de as pessoas que ameaçam se suicidar quererem apenas chamar a atenção. “Toda fala sobre fazer mal a si mesmo deve ser levada muito a sério”, diz a OMS. De acordo com Mancilha, por muitos anos, essa ideia teve força, principalmente quando se tratava de adolescentes. Hoje, essa abordagem é vista como erro grave pelos profissionais de saúde. “Quando alguém menciona o assunto pessoalmente ou nas redes sociais, deve-se observar e conversar. Dependendo do caso, deve-se levar a pessoa para um profissional de saúde avaliar a situação”, completa.

Segundo a pediatra Lilian Cristina Moreira, fatores relacionados à pandemia da Covid-19 contribuem para o aumento de casos nessa faixa etária, como o estresse familiar devido ao isolamento, a maior exposição às telas de aparelhos eletrônicos durante o período em casa e o cyberbullying.

Além disso, existem fatores comportamentais da família que corroboram para as pessoas serem mais ansiosas, deprimidas e chegarem a cometer o suicídio. Nessa lista estão a falta de incentivo de vida; tendência a se abaterem e se desmotivarem; estilo de vida familiar propenso à depressão, com pessoas mais negativistas e pessimistas; estresse tóxico na infância; violência física e mental; desqualificação mental; cobranças excessivas; e histórico de abuso sexual.

Sinais de alerta

Os pais devem ficar atentos aos comportamentos extremos, como crianças muito agitadas ou paradas demais; modificação no apetite; demonstrações de baixa autoestima; transtorno de imagem corporal; distúrbios do sono – muita sonolência, insônia ou sono de vigília; humor muito instável com irritabilidade constante ou apatia – quando o indivíduo evita o contato com outros familiares ou amigos. Todos esses fatores podem ser sintomas de depressão.

Ao notar algum desses quadros, os responsáveis devem procurar um pediatra para investigar o que pode estar provocando tais comportamentos. O profissional vai avaliar a criança como um todo e identificar se é um distúrbio físico e hormonal. “A gente não pode deixar o quadro evoluir muito porque às vezes você vai descobrir quando a criança já está se machucando, se cortando”, alerta a pediatra da SBP.


JOVENS PREVENINDO O SUICÍDIO

Em 2010 o Conselho Nacional de Justiça havia patrocinado uma campanha denominada Justiça na Escola tendo como destaque a publicação e distribuição de uma cartilha de prevenção e combate ao bullying em todo o território nacional. O material impresso e também disponibilizado em formato digital atingiu praticamente toda a rede escolar e tornou-se referência para a mudança de comportamento de educadores, pais e alunos, já que informava que o bullying era considerado crime.  Essa publicação também despertou o interesse entre os voluntários educadores da prevenção, pois sabíamos através de outros estudos que o bullying estava ligado diretamente a 80% dos casos de suicídio entre crianças e jovens. A partir dessas informações elaboramos com o CVV uma cartilha Falando Abertamente sobre Suicídio, com o objetivo de quebrar o tabu da abordagem do tema suicídio nessa faixa etária. O material foi disponibilizado em formato digital e passou ser replicado em formato gráfico pelos postos do CVV e também por entidades interessadas em participar da campanha informativa. 


Jornal santista notícia morte de adolescente em São Vicente-SP. Casso teve repercussão nacional.


O suicídio entre crianças e adolescentes não é assunto estranho para os pesquisadores e profissionais de saúde mental. Também não é novidade para os voluntários que atuam na prevenção por meio da relação ajuda humanitária, existente em muitos países há mais de meio século. Entretanto, especialistas e voluntários admitem que o aumento de casos nessa faixa etária nas duas últimas décadas tem sido algo assustar e preocupante. Se o suicídio de adultos já é algo que foge aos nossos padrões de entendimento e compreensão, a morte de crianças e jovens por esse meio violento é sempre chocante e muito entristecedor. Em 1969 o CVV foi tema de uma extensa reportagem da revista Realidade e na matéria já era citado que o suicídio de crianças na Europa era muito alto e motivo de preocupação com das autoridades médicas. Nesta última década, em função dessas estatísticas, começaram a surgir na América do Norte e Europa as primeiras ONGs  voltadas exclusivamente para  prevenir  suicídios entre crianças e jovens. Além do conflito de gerações, atualmente as crianças e jovens do mundo inteiro são atingidos por graves problemas emocionais que antes aparentemente só atingiam os adultos.  Ansiedade, depressão, bullying, questões sexuais e de gênero e muitos outros conflitos de relacionamento têm provocado sofrimento intenso e o suicídio faixa etária.   Dos mais de  800 mil suicídios ocorridos por ano no mundo, pelo menos 8,5% são de crianças e jovens que não conseguem ajuda para lidar com suas dificuldades. Os dados são da Organização Mundial de Saúde-OMS.  No Brasil essas taxas de suicídio tiveram um crescimento de 12% nos últimos dez anos. As famílias e pessoas próximas das vítimas também passam a sofrer intensamente os efeitos psíquicos e sociais desses casos: remorso, culpa, preconceito e até discriminação. 

 


Cartilha de prevenção dirigida para jovens


Em 2014 surgiu na Rússia o fenômeno da Baleia Azul, um jogo de ambiente virtual criado para seduzir e levar crianças e jovens ao suicídio. Não foi propriamente  uma novidade, porém teve uma grande repercussão por causa da amplitude das redes sociais entre crianças e adolescentes. Nessa nova cultura do espaço cibernético, crianças e jovens solitários e em crise emocional se sentem muito mais adaptados do que em seus lares, escolas e lugares onde frequentam fisicamente. Nos próprios ambientes físicos, há entre eles uma exacerbação da violência por meio do bullying e dos jogos de desafios, nos quais o coroamento é assumir ações de alto risco como prender a respiração, desafiar a gravidade, abusar de substâncias químicas e alucinógenas para demonstrar força, coragem e resistência. E para os mais sensíveis e fracos, a prática introspectiva da automutilação, pelos cortes (cutting).  Foi também no ambiente virtual, pelos canais instalados na internet,  que explodiu o hábito jovem de cultuar filmes e acompanhar séries dramáticas que tratam das suas grandes questões intimas e dificuldades sociais.  O canal Netflix foi o destaque mais recente dessa onda quando exibiu a famosa série “Os 13 Porquês”, mostrando a trajetória de uma jovem suicida, alcançando altos índices de audiência. A série se propagou em 2017, simultaneamente ao retorno do jogo da Baleia Azul, agora como  propaganda sensacionalista. Até mesmo o livro que deu origem a série, que havia passado despercebido dez anos antes, foi rapidamente reeditado e fartamente ofertado, exibindo na nova capa uma conhecida cena da série do Netflix.  A série bateu recordes de audiência, reacendeu polêmicas sobre a abordagem do tema suicídio e teve que passar por um reajuste de conduta midiática que incluiu a oferta de apoio emocional do CVV. Procurado por vários órgãos de imprensa para dar um parecer, o CVV emitiu na época uma nota resumindo os efeitos da série nas buscas aos diversos canais de ajuda do CVV. As informações foram selecionadas e organizadas pela agência LVBA Comunicação:  

“Depois da estreia da série 13 Reasons Why, subiu 445% o número de e-mails com pedidos de ajuda recebidos CVV. Houve alta ainda de 170% na média diária de visitantes únicos no site. A maioria das pessoas que  buscou atendimento nos canais do CVV nesse período era jovem e se identificava com a dor da personagem principal. No site do CVV a média diária de 2,5 mil visitantes únicos saltou para 6.770 em abril – a série foi lançada em 31 de março. Depois que a série foi alvo de críticas nas redes sociais, houve pico: 9.269 pessoas visitaram o site. Em relação aos e-mails, entre 1º e 10 de abril, o CVV registrou 1.840 mensagens, antes 635 no mesmo período de março. De uma média de 55 e-mails diários que chegam ao CVV, nos primeiros dez dias de abril esse número cresceu para mais de 300. Ao menos cem pessoas mencionaram a série”.

 

JOVENS FALANDO COM JOVENS

Atuar entre os jovens e trocar experiências com o setor educacional já fazia parte das metas dos ativistas da prevenção há alguns anos, porém a oportunidade de efetivar essa ideia surgiu quando educadores voluntários da Baixada Santista foram tocados por notícias de suicídios de crianças e jovens naquela região. Ao receber solicitação de ajuda e esclarecimento aos órgãos de imprensa,  os voluntários decidiram dar início a algumas ações práticas e formatar um programa acessível, que pudesse ser utilizado por escolas e grupos que reúnem crianças e adolescentes. O trabalho começou com palestras e debates em ambientes escolares, seguido de experimentação com as rodas de conversa e aplicação adaptada dos princípios e práticas do CVV.

 Em 2016 o fenômeno midiático mundial da Baleia Azul estava se alastrando e causando danos em algumas regiões no Brasil. A imprensa noticiou vários casos de suicídio estimulados por jogos virtuais.  No Estado de São Paulo, a Secretaria de Estado da Educação soube que em uma das suas unidades já estava em funcionamento um projeto experimental de prevenção ao suicídio e procurou imediatamente os organizadores. A ideia era conhecer  e divulgar essa experiência sugerindo sua aplicação em toda rede estadual de ensino. Era o Programa Estação Amizade, testado por nós (autor) na E.E. Margarida Pinho Rodrigues, com mais de 1500 alunos; e também em um núcleo de aprendizagem profissional – CAMP Rio Branco, com 400 jovens aprendizes, ambos na cidade de São Vicente-SP.  Além do registro em vídeo e divulgação na rede oficial de ensino, a Secretaria de Estado da Educação de São Paulo concedeu ao programa Estação Amizade o selo “BOAS PRÁTICAS”, reconhecimento que vem gerando interesse por parte de muitas escolas de todo o País.  


Dessa experiência de contados e relatos entre jovens e educadores veio nesse mesmo período a ideia de produzir um livro contando em formato de trama literária alguns desses relatos.  Surgiu então  “Estação Amizade – Dez jovens lutando contra o suicídio”. O livro passou a servir de base ilustrativa para que os jovens possam se identificar com os personagens e percebam que os que estão passando não é algo incomum ou uma anomalia. Poderia servir também como aplicação do programa quando alguns trechos passam a ser encenados e debatidos; ou então funcionando como pretexto para as reflexões nas rodas de conversa.  O narrador do livro é um dos jovens protagonistas e revela o universo do suicídio para os leitores. Algum tempo surgiram outras experiências mais abrangentes como o uso estudo sistemático do livro como ferramenta de apoio a jovens sobreviventes do suicídio. Os encontros semanais eram mediado por educadores e psicólogos. Em alguns dessas experiências o autor foi convidado a participar do encerramento dos encontros explicando aos participantes como construiu  a estrutura do livro , as tramas, perfil e o contato entre os personagens. Estação Amizade foi produto de um roteiro de documentário planejado para refletir sobre o suicídio  de um colega de um grupo de jovens próximos da filha do autor. O cenário eram os encontros desses jovens nas estações do VLT entre São Vicente e Santos, que em 2016 estava funcionando em caráter experimental e com acesso gratuito. O documentário não foi realizado, porém o esboço do roteiro foi adaptado para os capítulos do livro que hoje já está na segunda edição. 

A capa e o cenário principal do livro que concretizou a construção do Programa Estação Amizade

O autor conversando com jovens sobreviventes sobre personagens e situações narradas no livro. 


 As atividades nas duas escolas citadas, por meio de palestras e rodas, foram seguidas de novas ações como a ocupação de espaços sociais através eventos de sensibilização da opinião pública. Iniciamos gradualmente nesses espaços escolares citados a capacitação de jovens para acolher e ajudar outros jovens por meio de conversas de ajuda, de forma simples e amiga, sem pretensões de aconselhamento. Visitas a museus e galerias de arte também fez parte dessa estratégia de iniciação ao tema da prevenção do suicídio. Era uma adaptação escolar do PSV- Programa de Seleção de Voluntários do CVV.   Foi criado também o “Minicurso Saber Ouvir”, ministrado pelos voluntários educadores a pequenos grupos de estudantes  com a intenção de transformá-los em agentes multiplicadores.  Jovens ensinando jovens as primeiras noções de prevenção do suicídio.  Para a surpresa dos educadores, assuntos complexos e procedimentos de difícil assimilação comportamental – no campo da abordagem e experiência de prevenção entre os adultos - foram rapidamente compreendidos e aplicados pelos jovens. Experiências didáticas que levavam até oito semanas para serem transmitidas aos voluntários do CVV passaram a ser expostas aos jovens em apenas alguns minutos, simplificadas em slides que eles mesmos passaram a interpretar e explicar com suas próprias vivências. Os jovens atuam sozinhos, duplas ou em grupo, para expor ideias e conceitos sobre oferta de amizade e prevenção do suicídio.  Realizam também as rodas de conversa, com regras específicas para exploração e reflexão sobre seus sentimentos e emoções.

A Secretaria da Educação do Estado de São Paulo (SEDUC-SP)- com 250 mil professores e mais de 4 milhões de alunos- registrou novamente a experiência do Programa Estação Amizade no evento Setembro Amarelo, no módulo “Boas Práticas”, selecionado entre 5.200 escolas da rede pública estadual. Neste evento o relato feito pelos educadores da EE Margarida Pinho Rodrigues e disponibilizado na Biblioteca de Vídeos Rede do Saber e no Youtube. Em 2019 a SEDUC-SP aderiu à Campanha do Setembro Amarelo incorporando ao seu projeto educacional permanente os eventos de conscientização  e um projeto denominado  “Percurso Formativo Valorização da Vida: Considerações sobre o Suicídio”, que tem como foco subsidiar a rede de ensino para a reflexão sobre o suicídio com toda a comunidade escolar. No site da Escola de Formação dos Profissionais da Educação Paulo Renato de Souza foi disponibilizado um conjunto de materiais em 5 etapas, contendo 2 pautas formativas sobre as vulnerabilidades: os sinais de alerta, a prevenção e a posvenção do suicídio. Órgãos educacionais e municipais de  várias regiões do Brasil também realizaram ações semelhantes gerando um aumento de demandas de colaboração do CVV aos seus respectivos projetos.  Em 2020, em função do retorno escolar pós- pandemia o CONVIVA, núcleo da SEDUC SP, incluiu no seu documento norteador o Minicurso Saber Ouvir, direcionando à 5.200 escolas da rede estadual de ensino.  

Todas essas ações estão em sintonia com as práticas e diretrizes da Unicef, cuja principal estratégia é dar voz às crianças e adolescentes para garantir seus direitos de proteção à vida.   Em 2020 este órgão da ONU empreendeu juntamente com o CAMP Rio Branco, de São Vicente, a formação remota de jovens multiplicadores por meio do Minicurso Saber Ouvir.


ADULTOS E JOVENS JUNTOS FALANDO DE PREVENÇÃO.

 


Apresentação do Minicurso Saber Ouvir no X Simpósio Internacional de Prevenção do Suicídio, em Ribeirão Preto.


O CVV foi pioneiro no atendimento de prevenção do suicídio no Brasil e também na realização de eventos de estudos e pesquisas sobre o tema, reunindo voluntários das cinco regiões do país. Os encontros foram sendo realizados sistematicamente de 1980, de forma fechada aos representantes de postos (Conselho Nacional) e, nos últimos dez anos, aberto ao público e convidados, por meio do Simpósio Internacional de Prevenção do Suicídio. Em 2018, na reunião do Conselho Nacional e realização do X Simpósio Internacional, realizado em Ribeirão Preto, ocorreu um encontro inédito entre adultos em jovens para trocar experiências em prevenção. No ano anterior, no encontro realizado em Belo Horizonte, o programa Estação Amizade foi citado como tendência e ação experimental inspirada do CVV, porém a presença de jovens relatando presencialmente essa experiência pode ser considerado momento histórico da prevenção do suicídio. Essa participação foi solicitada meses antes durante m evento organizado em São Paulo para lançamento de vídeos gravados por atores sobre prevenção nas escolas. Durante o evento a representante do Unicef, Joana Fontoura, reclamou da ausência de jovens afirmando que eles deveriam estar presentes numa reunião pública realizada em nome deles. A professora Márcia Pansarini, diretora do CAMP Rio Branco, de São Vicente, pediu a fala  e explicou que era intenção da entidade ter levado seu grupo de jovens que vinham sendo educados como multiplicadores do Minicurso Saber Ouvir, mas que não sabia se era permitido tal participação. A falha foi dos organizadores e, nessa ocasião, nós mesmos solicitamos pessoalmente aos membros do Conselho Diretor do CVV a participação desses jovens no Simpósio Internacional que seria realizado em setembro, no que fomos atendidos alguns dias depois. Essa resposta teve uma reação imediata de entusiasmo nesse pequeno grupo, que atuava na periferia de São Vicente, e que agora teria a oportunidade de mostrar seu trabalho para os voluntários do CVV e dezenas de convidados de outros segmentos da rede nacional de prevenção. Foram escolhidos apenas quatros jovens, duas garotas e dois rapazes, para apresentar o minicurso e fazer seus relatos de experiência de sofrimento emocional e psíquico. A presença deles diante de um auditório de adultos, sobretudo de voluntários, foi emocionante porque os conteúdos do minicurso inspirado nos processos seletivos do CVV são considerados complexos e de difícil assimilação pelos adultos e que, pela ótica e espontaneidade do jovens, pareceu uma abordagem muito simples e acessível, nunca experimentada nos postos. 

Essa transposição didática simplificada da experiência do CVV para o universo adolescente retornou para os voluntários por meio dos mesmos adolescentes como solução prática de uma dificuldades que vinha sendo tentada há muitos anos. O que poucos sabem que é que o minicurso foi fruto de um desafio feito ao CAMP Rio Branco para participar de uma exposição tecnológica organizada por das secretarias de prefeitura de São Vicente. Sem condições de apresentar algo radicalmente técnico, encontramos uma brecha quando lembramos que o minicurso havia sido desenvolvido também , em duas escolas, como treinamento de capacitação profissionalizante, como desenvoltura e sensibilização pessoal. Numa dessas escolas, no caso o CAMP Rio Branco, foi com a intenção de tranquilizar jovens que atuavam no atendimento ao público e que se sentiam ameaçados com a agressividade da clientela em estabelecimento da prefeitura, onde atuam como aprendizes. Diante desses fatos, propusemos o minicurso como tecnologia de relações humanas, uma solução prática para uma necessidade funcional de atendimento acolhedor, compreensivo e humanitário. Outro detalhe: nem todos os jovens que participam do minicurso atuam como multiplicadores didáticos, porém se beneficiam dos conteúdos educativos para aliviar suas dores e compreender melhor as dificuldades emocionais em que se encontram. Ao exporem os passos básicos da escuta, os jovens estilam a plateias de adolescentes a falar sobre solidão, ansiedade, pânico, paralisia do sono e depressão. Falam também nesses rápidos encontros de 40 a 60 minutos sobre auto-lesão e ideação suicida. Isso foi uma inovação desconhecida até pelo CVV, que fazia seus cursos de forma extensiva e cuja redução máxima de tempo alcançado foi de cinco dias. É claro que não foi desconsiderado o fator amadurecimento dos conceitos e práticas desses conteúdos, porém, em se tratando de jovens e educadores sem nenhum conhecimento em prevenção, este experimento foi revolucionário. Mesmo porque os conceitos abordados não são para ser pensados e discutidos como ideias e sim como sentimentos e emoções. Esse é o diferencial da experiência do CVV e cuja essência foi mantida no minicurso saber ouvir. Essa também foi a essência do encontro entre voluntários adultos e voluntários jovens ocorrido no Simpósio de Ribeirão Preto. Uma experiência inesquecível para as duas pontas da faixa etária da prevenção.


PREVENÇÃO NO AMBIENTE ESCOLAR


Os serviços de prevenção tradicionais sempre receberam pedido de ajuda de crianças e adolescentes compartilhando seus sofrimentos morais e psíquicos. A atenção dada eles nunca foi diferenciada, mesmo nos casos de denúncias de violência e abusos, como acontece também com os adultos. Entretanto, com o aumento dos casos de suicídio nessa faixa etária e a desinformação sobre como lidar com situações de risco, alguns grupos de prevenção- também surgidos nesse contexto- passaram a optar pela criação de estratégias específicas para atrair e dialogar com esse público. Sabendo da gravidade do problema e dos exemplos de países onde a situação tornou-se alarmante, algumas instituições que lidam diretamente crianças e adolescentes tomaram posições corajosas de enfrentamento, adotando de forma aberta todas as formas acessíveis de prevenção. Outras preferiram preservar-se e recusaram qualquer tipo de envolvimento, optando pela transferência de responsabilidade para os segmentos profissionais. Ao optar pelo enfrentamento, as primeiras buscaram experiências alternativas ou criaram elas mesmas ferramentas informais de aproximação e diálogo por meio da arte, das campanhas educativas e de solidariedade, bem como de protagonismo juvenil na prevenção. Neste último caso a ideia era substituir os especialistas e educadores na realização de palestras informativas tradicionais pela ação protagonista do público alvo, propondo que os mesmos se apropriassem deforma mais direta do tema. Em outras palavras, o primeiro grupo reforçava o tabu, mesmo não tendo essa intenção; e o segundo enfrentava esse obstáculo com medidas educativas de aproximação e acolhimento. Algum depois o segundo grupo cresceu em relação ao primeiro e até influiu na mudança de comportamento e ações dos que permaneciam em posição defensiva e de desconfiança. Em alguns países os próprios adolescentes passaram a organizar núcleos de encontro virtual e presencial para discutir e buscar rumos diante da perda constante de colegas por suicídio. As escolas aos poucos foram mudando sua postura dogmática de medo e tabu e passam a empreender ações preventivas estimuladas por movimentos de mobilização educativa como o Setembro Amarelo, mês dedicado  à prevenção e a data do 10 de Setembro como Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Em várias cidades do mundo torna-se comum ver na arte de rua e performances em espaços alternativos grupos de jovens comunicando e reivindicando providências e a quebra de preconceitos que reforçam o tabu do suicídio e das situações de sofrimento mental que incomodam as novas gerações. 

As escolas atuais ainda são caracterizadas pela cultura industrial do século passado, tendo toda sua estrutura funcional fundada nos modelos das fábricas e organizações  burocráticas. É um sistema criado e desenvolvido para lidar com massas nas quais as salas possuem fileiras de carteiras sob a regência de um disciplinador. É claro que os educadores e educandos sempre dão um jeito de transgredir essas regras rígidas fazendo adaptações criativas para dar mais vivacidade no convívio e na aprendizagem. Entretanto, essas ações são sempre exceções de pouca duração e logo as coisas voltam ao normal. Essas intervenções diferenciadas é que permitem fazer novas experiências, implementar novos conceitos e provocar mudanças de comportamento. Os educadores definem essas experiências como  ensino “transversal”, momento  e oportunidade em que há uma quebra do processo convencional e rotineiro. E o professor é sempre um figura estratégica para operar as mudanças, seja de forma lenta, gradual ou acelerada, dependo da necessidade do momento.  A persistência no transversal deve ser permanente pois ainda estamos em fase de transição As faixas etárias estudantis vivem num ritmo de tempo barulhento e veloz, que é a dinâmica do ciclo biológico do corpo físico e a extroversão dos sentidos. A educação tradicional vê essa característica como um problema disciplinar, que precisa ser contido e até reprimido para não prejudicar a absorção de conteúdos. Nesse sentido há resultados de controle mas, por outro lado, ocorre a inibição, o deslocamento e adiamento das experiências emocionais. A educação atual entende de forma mais ampla que os dois aspectos podem e devem ser considerados como oportunidade de aprendizagem e mudança positiva de comportamento. Razão e emoção não são coisas incompatíveis e fazem parte da natureza humana. A hipervalorização racional da educação e do trabalho e a desvalorização dos sentimentos e emoções foi apenas uma tendência contextual e não uma marca natural da experiência humana. As equações lógico-matemáticas ocuparam durante muitas décadas o centro dos processos de ensino aprendizagem. Hoje as equações socioemocionais definem melhor o contexto e exigem novas formas de conviver e aprender. Isso leva a um questionamento sobre as prioridades de processos e conteúdos curriculares defasados e que precisam estar em sintonia com essa nova realidade. A saúde física já foi também o centro das atenções quando existiam todos as dificuldades de formação e manutenção de corpos sadios para ingressar no mercado de trabalho. Hoje a saúde mental já é o novo centro das atenções, em função dos novos distúrbios que interferem de forma crescente na qualidade de vida das pessoas. Ansiedade, pânico, depressão e uma lista enorme de síndromes psicológicas interferem no cotidiano das pessoas em ritmo crescente. E as escolas continuam sendo o termômetro desses distúrbios sociais. Somente uma educação aberta, transversal e socioemocional pode dar conta dessas mudanças. Em meio à rotina escolar torna-se cada vez mais necessário as intervenções que possibilitam a compreensão das equações psicológicas e o alívio e cura do sofrimento psíquico. Todos se lembram do filme Sociedade dos Poetas Mortos no qual uma classe de uma escola preparatória dos anos 1960, de frequência masculina, expõe de forma trágica os sofrimento de alguns personagens que destoam do conjunto, incluindo o professor interpretado por Robin Willians. O professor Keating era um transversor nato e foi punido por ter percebido e ajudado alunos tomados pela incerteza e pela angústia. Ali assistimos não somente a morte por suicídio do aluno Neil, mas também da sala de aula conteudista e exclusivamente lógica, frutos de uma educação que não dava respostas para as equações psicológicas.  

O PROFESSOR TRANSVERSOR

Realmente a melhor imagem que guardamos do professor educador é a do protagonista John Keating. O fator socioemocional é camuflado pela aparente frieza da cultura anglo-saxônica, mas transpira em forma de situações conflituosas vividas pelos alunos, pais e educadores. O roteiro também deixa no ar um enorme ponto de interrogação sobre as questões da vida e do destino, especificamente sobre a morte. O professor Keating é também um excelente transversor, pois despreza a todo instante a rigidez curricular e abandona a sala de aula, como uma metáfora de que ela não existe mais, não é mais essencial, como são as igrejas e templos, e que hoje já aprendemos a construir e frequentar dentro de nós mesmos. Pretexto para atingir a introspecção, esse abandono da sala levaria a muitos outros caminhos que esse filme maravilhoso narra do começo ao fim. Um desses caminhos é a incursão ao hall onde estão expostas as fotografias de turmas antigas. Ali, como num panteão em memória dos mortos, o silêncio se estabelece e Keating parte para o aliciamento espiritual dizendo que aqueles jovens das fotografias, cheios de energia e vitalidade, se transformaram em adubo para flores de sepulturas. Apesar do aparente discurso niilista, a intenção do professor era causar um impacto na mente dos alunos e deslocá-los para o sentido metafísico da vida. Sua proposta de “Carpe diem” significava aproveitar a essência da vida e não o supérfluo e o banal.

Mas o grande acontecimento do filme é a desilusão e o suicídio do aluno Neil, fato que coloca o professor na difícil condição de Sócrates, acusado de corruptor da juventude e responsável pelo grave incidente. O pai rígido e autoritário e a mãe impotente e submissa sufocaram o talento artístico e o livre arbítrio do filho. A existência de uma arma de fogo na casa deles consuma a tragédia. O fracasso da família e da Escola exige e elege um bode expiatório.

Keating é o escolhido, ingere a cicuta da traição, mas o seu trabalho transformador foi mais eficiente que o veneno da demissão, pois penetrou definitivamente nos corações dos alunos, mesmo dos covardes e traidores, que iriam carregar pelo resto de suas vidas a culpa de não terem sido leais, autênticos e corajosos. Eles não tiveram a coragem de subir nas mesas para se despedirem do Capitão e continuar olhando as coisas por outro ponto de vista.

NOSSO PLANETA, NOSSA ESCOLA

As escolas estão sofrendo as perturbações pelas quais está passando todo o planeta Terra. Por ser a síntese fiel e espelho da sociedade, elas funcionam como termômetro e vitrine de tudo o que acontece no mundo social. Nosso planeta é um organismo vivo, possui uma “Anima Mundi” e está passando por uma crise de mutação cíclica, tanto no aspecto ambiental exógeno, como na sua atmosfera psíquica, onde ocorre uma intensa luta entre forças renovadoras e forças reacionárias. Isso possui um reflexo negativo no plano social, em todas as instituições. As escolas são mais sensíveis a tais acontecimentos, por todas as características espirituais já apontadas, mas principalmente porque ela é um espaço natural de esperanças de vida e utopias de um mundo melhor. Se a vida social pode melhorar, essa possibilidade começa na escola. Essa crise de mutação planetária é muito complexa e aparentemente caótica, pois se misturam nos fatos geofísicos os elementos de uma confusão de valores, de avanços e retrocessos, vitórias e derrotas, equilíbrio e desequilíbrio, construção e destruição. Não sabemos quanto tempo tudo isso vai durar e quais os resultados dessas graves mudanças, pois nesse contexto tudo se torna instável e vulnerável. Estamos em tempo de revolução e não de reformas.

A função social da escola é muito ampla: trabalhamos incessantemente para que haja a adaptação e uma conseqüente progressão dos alunos diante das rápidas e atuais mudanças históricas.

Fazemos o papel de suporte científico e ao mesmo tempo moral, pois as transformações geram distúrbios emocionais e sofrimentos físicos nos alunos, professores e funcionários. A maioria dos pais não possui condições psicológicas, nem conhecimento para lidar com esses problemas e passam a depender da ajuda da escola, principalmente dos professores. Quando a rede física e a população escolar eram reduzidas esse papel de substituir a família funcionava relativamente bem, apesar de alguns abusos de autoridade. Com a explosão demográfica, ocorrida no Brasil a partir da década de 1970, aumentou absurdamente o número de alunos nas salas de aula e ocorreu também uma mudança de mentalidade e de costumes. Com a democratização da escola, os pobres não puderam ser mais expulsos ou dispensados para o trabalho infantil. Os alunos indisciplinados e limitados não puderam ser mais punidos e reprovados. Essa quebra do antigo modelo autoritário estabeleceu um ambiente libertário nas escolas, porém gerou um relaxamento das relações de autoridade e dos papéis, sem a contrapartida de uma conscientização proporcional. Para compensar esse afrouxamento moral, adotou-se uma rigidez artificial, através da legislação educacional, acentuando-se a informação intelectual em prejuízo da formação moral.

Essa situação seria acelerada com a explosão tecnológica dos anos 1990 e que atualmente se delineia na desconstrução da sala de aula e dos métodos textuais planos, através da revolução digital do hipertexto. Toda essa situação tornou a escola cada vez mais vulnerável aos distúrbios planetários, exigindo dos educadores mais dedicação e melhor desempenho em suas funções, como já vinha acontecendo em alguns setores profissionais. Nas escolas públicas essas tecnologias são praticamente inacessíveis e, mesmo assim, essas escolas continuam sendo alvo de uma demanda em massa. Todos querem estar nas escolas, mesmo que muitos deles não saibam dar valor ao conhecimento e considerem a escola como um simples lugar de convívio social, como se fosse um clube. Buscam nelas alguma coisa diferente daquilo que não encontram em casa ou que julgam ser muito importante para mudar suas vidas. Em pesquisa diagnóstica feita habitualmente nas primeiras semanas de aula, sempre solicitamos aos alunos algumas opiniões e expectativas sobre a escola, a família, o mundo e o futuro. Esta foi feita há 15 anos. A maioria manifestava uma grande esperança na instituição escolar e no trabalho dos educadores, esperando que nós enfrentemos junto com eles as suas dificuldades. Os itens que mais apareceram nas expectativas, e que transparecem claramente como carências pessoais, são esses:

 Professores que ensinem coisas para usar na vida, no mundo lá fora; diretores amigos e mais próximos; que a escola seja uma família e um lar para os alunos; mais amizade, companheirismo e menos violência; organização e limpeza; eventos: festas, comemorações, exposições, festivais, bailes; melhor qualidade na merenda; bom ensino dos professores; paciência com os alunos com dificuldades; que eles mesmos mudem de comportamento e se tornem bons alunos; que eles sofram cobranças por parte dos educadores; justiça e rigor nas avaliações, incluindo reprovações; faltas constantes dos professores ao trabalho; mais disciplina e controle das suas próprias ações; mais compreensão com o jeito de ser e a condição adolescente dos alunos.

Era um sinal evidente de que as coisas não estavam indo bem nas escolas porque havia uma grande defasagem entre o currículo tradicional e as necessidades dos alunos. Não se tratava apenas de oferecer ciência e tecnologia nas aulas, mas também a oportunidade de mudança de pontos de vista, de rumos e destinos. Existem muitos problemas e obstáculos nas escolas que a tecnologia e a ciência não conseguem detectar e atingir. São questões humanas imprevisíveis, que não podem ser antecipadas nos planejamentos e nos planos e de aula. Muitos desses obstáculos aparecem camuflados nessas opiniões e expectativas que citamos. Como sempre fomos um setor conservador, sacralizado e dogmático, demoramos mais para reconhecer os nossos limites e que também deveríamos sacudir a poeira dos escombros e reinventar a escola. Essa reinvenção, enquanto as coisas não mudam definitivamente, significa também a adoção de novos pontos de vista, a mudança do olhar para outros enfoques. Podemos  “ser inteligentes como as serpentes, porém simples como as pombas”. É claro que esses novos olhares não representam a busca de soluções miraculosas e imediatistas. A escola somos nós e não o sistema escolar. Se não podemos mudar o sistema, podemos alterar a essência natural da escola, que são os nossos pontos de vista e os nossos sentimentos.  Certamente estamos vivendo um importante momento de crise. Todos querem saber onde vamos parar. Todos querem saber as causas e conseqüências desse desequilíbrio social no qual o Estado, a família e a escola não conseguem estabelecer um consenso sobre os rumos que devem ser tomados para reverter essa situação. Quando não há perspectiva para o futuro também não há sentido para o presente, muito menos interesse pelas referências do passado. Um bom exemplo para refletir sobre essa situação caótica são as estatísticas de suicídio entre os estudantes. O suicídio é sempre um tabu, mesmo nas escolas, onde deveria ocorrer maior abertura para tratar do assunto. Um estudo da OMS - Organização Mundial de Saúde – publicado há mais de uma década, sobre esse grave problema social (hoje classificado como item crítico de saúde pública) e causou e ainda causa espanto não somente o conteúdo do estudo, mas principalmente o fato deste ter sido elaborado especialmente para os educadores e tratado com indiferença nas escolas. Não cremos que essa indiferença seja insensibilidade dos gestores e educadores, mas o receio de lidar com o desconhecido. Eis algumas anotações sobre a nossa leitura:

“No mundo inteiro, o suicídio está entre as cinco maiores causas de morte na faixa etária de 15 a 19 anos. Em vários países ele fica como primeira ou segunda causa de morte entre meninos e meninas nessa mesma faixa etária. Sendo assim, a prevenção do suicídio entre crianças e adolescentes é de alta prioridade.

Devido ao fato de em muitas regiões e países a maioria dos adolescentes dessa idade freqüentarem a escola, este parece ser um excelente local para desenvolvermos a prevenção”.

“Atualmente, o suicídio entre crianças menores de 15 anos é incomum e raro até antes dos 12 anos. A maioria dos suicídios ocorre entre as crianças maiores de 14 anos, principalmente no início da adolescência.

Porém, em alguns países está ocorrendo um aumento alarmante nos suicídios entre crianças menores de 15 anos, bem como na faixa etária dos 15 aos 19 anos”.

“Os métodos de suicídio variam entre países. Em alguns países, por exemplo, o uso de pesticidas é um método comum de suicídio, contudo, em outros, intoxicação com medicamentos e gases liberados por carros e o uso de armas são mais freqüentes. Meninos morrem muito mais de suicídio que as meninas; uma razão pode ser porque eles usam métodos violentos mais freqüentemente que as meninas para cometer suicídio, como enforcamento, armas de fogo e explosivos. Entretanto, em alguns países o suicídio é mais freqüente entre meninas entre 15 e 19 anos que entre meninos da mesma idade. Nas últimas décadas a proporção de meninas usando métodos violentos tem aumentado”.

“Reconhecer uma pessoa jovem em sofrimento, que precisa de ajuda, normalmente não é o problema.

Saber como reagir e responder frente a crianças e adolescentes suicidas é muito mais difícil. Alguns funcionários de escolas têm aprendido a lidar com o sofrimento e com os estudantes suicidas através da sensibilidade e do respeito, enquanto outros não. As habilidades deste último grupo devem ser aprimoradas. O equilíbrio a ser alcançado no contato com o estudante suicida está em algum ponto entre a distância e a proximidade, e entre empatia e respeito”.

Respeito e empatia não são técnicas profissionais especializadas da medicina ou da psicologia. São atitudes humanas comuns, de pessoa para pessoa. São posturas desprovidas de receio e preconceito, necessárias em qualquer relação interpessoal. Professores empáticos e respeitosos despertam a confiança nos alunos e estes, percebendo a disponibilidade natural e o interesse sincero pelas suas dificuldades, muitas vezes desistem de planos sinistros de autodestruição pelo suicídio ou destruição dos outros, pela violência homicida. Estar disponível para ouvir e compreender não significa assumir a responsabilidade de resolver os problemas dos outros. As pessoas que pedem ajuda têm consciência de que elas é que devem tomar decisões sobre seus problemas e quando buscam alguém para conversar só querem compartilhar seus sentimentos. Não é preciso ter medo de lidar com essas situações limites. Pior é se omitir, alegando despreparo.

MUDANDO O FOCO E O PERCURSO

Existe uma crença de que somente alguns segmentos da área de saúde  são autossuficientes e exclusivos na abordagem e solução do problema do suicídio. Mito. O voluntariado como ação humanitária histórica da prevenção  é prova disso. Se esta é uma questão existencial e um problema multifatorial e socialmente dinâmico, outros segmentos como a educação, a filosofia, a arte e a sociologia têm a mesma importância e função no estudo e prática da sua prevenção e tratamento.  Nenhum segmento isoladamente têm sido eficiente o bastante para conhecer e conter o crescimento do suicídio e por isso participam de iniciativas conjuntas nesse sentido, como os planos nacionais de prevenção. 

Muitos educadores, como  outros segmentos,  acreditam que não devem e não são capazes de atuar nesse campo, alegando despreparo. Mito também. A prevenção e solução do problema do suicídio é tarefa multifacetária e só enriquece quando tem a participação da diversidade de experiências humanas. A primeira e mais conhecida delas, como vimos, descobriu que a atuação colaborativa voluntária de pessoas comuns mudou radicalmente a abordagem em prevenção do suicídio. O simples ato de ouvir uma pessoa em meio a uma crise emocional, alivia o sofrimento psíquico e reverte o risco de suicídio. 

Portanto, prevenção não se trata de disputa de conhecimento e exclusivismo de atuação de segmentos corporativos. A questão é humana e, num primeiro momento, deve contar com as todas ferramentas e recursos possíveis de ajuda e apoio. 

Os planos coletivos de diversidade de abordagem de prevenção do suicídio têm reduzido sistematicamente os números do suicídio no mundo inteiro. No início da década de 2.000 as estatísticas apontavam 1 milhão de ocorrências por ano. Depois da adoção dos planos nacionais os  números baixaram para 850 mil. 

Por outro lado, também houve mudanças circunstanciais preocupantes: as ocorrências entre criança e jovens aumentaram. Durante e depois da pandemia os números cresceram genericamente e houve aumento de caso de suicídio de meninas adolescentes. Isso implica em novos estudos e ações emergências de abordagens preventivas. Uma dessas estratégias é permitir que os próprios jovens conversem  entre si –pela escuta solidária-  e se apoiem diante dos seus problemas e dificuldades. Não é uma prática muito convencional, mas pode ser colocada em prática em ambientes seguros e organizados. Outra descoberta e constatação de uma verdade antiga antes somente percebida e aceita entre adultos:  jovens sobreviventes do suicídio,  bem como todos que passam por transtornos emocionais, podem se beneficiarem e tornarem-se excelentes multiplicadores das ações preventivas. É um treinamento simples e eficiente, apesar das limitações naturais, que tem sido realizado experimentalmente  em várias escolas e que podem resultar em mudança positivas. 

A experiência dos Samaritanos na Inglaterra tornou-se uma referência mundial exatamente porque rompeu esse paradigma de exclusividade de atuação; também porque descobriu e ampliou a prática da abordagem simples da escuta solidária, simples e muito próxima dos atendidos. Essa prática jamais seria possível num ambiente formal cujos procedimentos funcionais esbarram em muitos obstáculos de organização.  A escuta solidária funciona melhor e cumpre o seu papel humano quando são deixadas de lado todas as formas de intervenção diretiva no comportamento de que pede ajuda. A ideia salvacionista, por exemplo, é prejudicial à prevenção do suicídio porque é diretiva e quase nunca leva em consideração a capacidade de aprendizagem e autodirecionamento de quem está vivendo esse problema. Essa foi a grande descoberta dos Samaritanos: abandonar o salvacionismo e não se preocupar com outras formas de intervenção que caracterizam o repúdio ao comportamento suicida e opção pelas fórmulas tradicionais de repressão de conduta e uso de remédios como única e possíveis soluções. Julgamento e condenação não combinam com prevenção, em hipótese alguma.  Essa mentalidade salvacionista, diretiva e interventora já mudou muito mas essa mudança ainda não é uma postura suficientemente aceitável em nossa cultura imediatista e pouco compreensiva. Prevenção do suicídio, como outras formas de prevenção, é um processo de mudança de comportamento. Portanto, é um assunto educativo e que também não é monopólio e exclusividade dos educadores. Mesmo porque  o ensino e a educação é a base de conhecimento e atuação de todos os segmentos sociais. Isso significa que prevenção é essencialmente educação. Todos os segmentos precisam passar por esse processo de mudança. As escolas são a base dessa pirâmide.

Mas a experiência de prevenção no universo da educação não fica restrita a abordagem isolada dos profissionais e dos voluntários. Atualmente existem experiências que vão além e  desmistificam esse assunto. O crescimento do suicídio infantil e na adolescência em níveis assustadores levaram alguns grupos a empreender ações preventivas ousadas e totalmente diferentes das tradicionais, quase sempre marcadas pelo medo e pelos preconceitos, incluindo o da exclusividade de abordagem.   Crianças e jovens podem e devem fazer prevenção do suicídio entre seus pares e isso não depende da autorização e supervisão de adultos, quase sempre baseada nos excessos de cuidados e fuga de responsabilidade. Essa prevenção é possível porque é essencialmente educativa, é humana e simples. Talvez isso assuste e incomode, mas é real o fato de que seres humanos, em situação de igualdade espontânea se apoiem e até se curem de sofrimentos mentais que levariam um tempo inaceitável se fossem feitos pelas vias formais de atendimento. Prevenção deve ser uma prática que antecede a todos os tipos de abordagem. É uma obviedade que não tem sido respeitada porque nem todos os segmentos e pessoas têm interesse nessa prática e na aprendizagem da mesma. Resultado: adotam a negação ou a fuga, empurrando a responsabilidade para outras esferas. Escolas são ambientes naturais de prevenção. Alunos e professores, mesmo ignorando e não confiando em suas potencialidades educativas, podem ser ótimas ferramentas de prevenção nas escolas. A participação de outros segmentos nesse processo é um complemento, se necessário, da prevenção. Não podemos mais inverter essa ordem. 

 

Bate-papo com jovens  do campus da UNESP-São Vicente-SP em 2018. Pedido de ajuda e, como ferramenta social universitária, a formação espontânea de um coletivo de saúde emocional. 


A maioria dos jovens em idade escolar, sobretudo das escolas públicas, não podem contar com os pais nesses processos de ajuda. Nas escolas privadas a participação dos pais muitas vezes também não é possível e a ajuda profissional próxima também não tem sido satisfatória. Recentemente uma onda de suicídios em uma reconhecida escola  particular de São Paulo levou a direção a mudar de postura e também de  rumo na busca de ajuda: procurou um dos fundadores do CVV para fazer um palestra para pais e alunos. Como se vê, acertaram na atitude de mudar, mas continuaram errando na forma de abordagem. O convidado aceitou o convite, porém alertou: “Não entendo nada de suicídio e não vou falar sobre isso. Eu entendo de sofrimento. Sei como é o sofrimento pelo qual passa alguém que pensa em suicídio. Disso eu posso falar ”. O recado foi dado e a palestra foi apenas pretexto e o primeiro passo de outras ações educativas imediatas e que, quase sempre, não são colocadas em prática. Uma escola que passa pela experiência de suicídio de alunos e que apenas convoca uma palestra para acalmar os ânimos e depois coloca o assunto na gaveta do esquecimento age com a mais absoluta falta de respeito com a vida humana. Retrocede ao ponto zero e diz “não” para a prevenção. Uma escola que só fala e prevenção quando acontece uma fatalidade ou usa o Setembro Amarelo somente como eventos aparência visual e superficial também está voltando ao ponto zero e perpetuando a ignorância sobre esse tema. 

TABÚ : QUEM DEVE MUDAR PRIMEIRO?

O suicídio continua sendo um tabu, assunto não recomendável e até proibido nas escolas. Por isso ainda é tabu em quase todos os lugares.  Triste e lamentável, mas acontece não só com o suicídio mas também com outros temas incômodos.  Isso revela que o grande obstáculo da prevenção é a formação de educandos e educadores. Essa formação não pode mais acontecer com base nas diferenças sociais entre que ensina e quem aprende. Entre quem manda e quem obedece. A postura dogmática, salvacionista, negacionista, autoritária e diretiva é desastrosa na prevenção. É repressão e imposição. 

O caminho deve ser inverso e precisa ser aprendido e apropriado por alunos e professores.  Não há diferença de papéis entre quem precisa de ajuda e que pode e deve oferecer. O papel da igualdade deve ser sempre reforçado para desapareça o papel da diferença, que o da formalidade e da distância entre as pessoas. Ouvir é o papel ideal do processo de ajuda: Aproximação, aceitação, compreensão e respeito são os pilares da abordagem preventiva. São as bases da prevenção e da proteção.

Não é uma tarefa fácil. 

É uma aprendizagem que exige mudança de pensamento e comportamento. 

Não um processo apenas intelectual. 

É uma mudança de postura e por isso causa ameaça e insegurança à primeira vista. Com a absorção de informações básica e práticas simples, a mudança vai acontecendo naturalmente.  O medo causador das posturas de rejeição, negação e antipatia  vai sendo substituído  gradualmente pela boa vontade, simpatia até atingir o necessário nível da empatia, que é se colocar no lugar do outro. Não fácil, mas não é impossível. Se aproximar e ouvir quantas vezes for necessário. Aceitar em todas as situações. Compreender constantemente. Respeitar sempre.   

EXPERIÊNCIAS NA PINACOTECA

Pelos espaços internos da Pinacoteca do Estado de São Paulo frequentemente encontramos grupos de jovens circulando pelos corredores observando os quadros, acompanhados por educadores. Uns em silêncio, outros com certa euforia; e ainda outros complemente indiferentes diante daquelas representações pictóricas em diversos estilos. 

Em uma dessas excursões, um dos educadores passa por duas experiências curiosas e instigantes. Na primeira ele está fotografando uma pequena aula dada pela guia do museu aos seus alunos. Eles estão sentados no chão em frente à estátua da poetisa Francisca Júlia, obra monumental do escultor Victor Brecheret. Nem a guia nem os alunos se deram conta do significado dessa obra e de quem se tratava. Francisca Júlia havia se matado em 1920, no mesmo dia da morte do seu marido, causando uma grande comoção entre seus admiradores. A estátua havia sido feita originalmente como ornamento fúnebre e permaneceu por longos anos no túmulo da poetisa no cemitério São Paulo, na capital paulista, até que fosse retirada, restaurada e colocada em destaque na Pinacoteca.

Num outro momento o mesmo educador se depara com um quadro aparentemente comum, pelo qual a maioria passa sem perceber seu conteúdo. Trata-se de um óleo sobre tela, relativamente grande e solitário na parede branca do museu. No pequeno cartão de identificação da obra lê-se nos dados técnicos e suas dimensões (97 X 185) e também seu título e autor: “Fim de romance”, Antônio Parreiras, 1912. 

Vendo que o educador permanece estático por um longo tempo, alguns alunos se aproximam para interrogá-lo sobre o seu demorado interesse pela obra. Ele se vira e não diz nada, apenas convida com os olhos para que seus alunos observem a pintura e cheguem à suas próprias conclusões. 

Somente após perceberem alguns detalhes é que são tomados de certo espanto e manifestam, surpresos, suas opiniões sobre o que viram. 

Ali nasce com o professor e os alunos uma pequena roda de conversa sobre o que se passou e como deve ter sido o turbilhão de emoções que tomou daquele personagem retratado. 


NOVAS VIVÊNCIAS E SABERES

PREVENÇÃO NA ESCOLA



LIVE 1- CENTRO DE MÍDIAS SEDUC SP


FORMAÇÃO DE PROFESSORES-PALESTRA REMOTA NO CENTRO DE MÍDIAS DE SP- CONVIVA- 4 de outubro de 2020. Disponível no Youtube.

Secretaria da Educação do Estado de São Paulo. 

Palestra:  Documento Orientador do CONVIVA

Dalmo Duque dos Santos – 

Professor da Rede.  Mestre em Comunicação e Cultura.  


Consideramos este documento muito atual porque ele é restaurador. Dos quatro pilares da educação (Conhecer, Fazer, Conviver e Ser)  nós sofremos um dano no convívio. Isso nos conduziu a uma situação delicada durante a pandemia. As escolas foram marcadas pela retração dos alunos. Tivemos que fazer a busca de alunos para recompor as classes em ambiente virtual.  No início estávamos muito inseguros e tentamos preencher essa lacuna com o excesso de conteúdos, ofertando muitas atividades remotas. Logo percebemos que estávamos no caminho errado. Os alunos, como toda a sociedade, estavam confusos e desconfiados com a escola, com as nossa postura institucional e mantiveram-se retraídos. Então tivemos que mudar essa postura conteudista e intelectual para uma postura mais afetiva e próxima das necessidades deles. Refletimos que não o momento de nos preocuparmos com conteúdos e sim com os aspectos humanos da nossa relação, entre nó professores e com os alunos. Ocorre então a restauração das relações humanas, da observação e trocas de sentimentos e emoções. Nós vivemos numa sociedade muito pensadora, muito racional e formal, de preconceitos e tabus. Com isso passamos a obter novos resultados na busca ativa de alunos, pela proximidade afetiva. No CVV   também temos os nossos pilares educadores – Aproximação, Aceitação, Compreensão e Respeito, quatro palavras importantes que entram em dinâmica a partir de um simples troca de olhares. Um processo contínuo. Aproximar é evitar qualquer tipo de ameaça que possa gerar desconforto íntimo. Aceitar é colocar de lado todos os obstáculos que possam prejudicar a nossa relação com o outro, sobretudo os preconceitos. Compreender é alguém como uma pessoa e não como um indivíduo e um problema. Tudo isso resulta no respeito, que é o nosso ponto principal. Quando a pessoa se sente respeitada as coisas funcionam muito bem, porque se estabelece um relacionamento humano, de igual para igual. Já vínhamos tentando fazer essa transposição do conhecimento do CVV para as escolas, mas não tivemos bons resultados nas primeiras tentativas porque insistimos em impor conteúdos de forma intelectual, realizando aquelas tradicionais palestras informativas. Foi naquele período dos ataques virtuais da “baleia azul”, que nos desafiaram a adotar uma posição de enfrentamento. Optamos então pelas palestras de informação, de forma vertical. Todos sabem que as palestras têm aproveitamento mínimo (10% segundo os especialistas)  e isso apenas teve efeito aparente. Os alunos não tinha a oportunidade de falar sobre suas impressões de forma mais aberta e tranquila, sem as pressões de tempo da rotina escolar. Era necessário ter algo mais prático e próximo dos alunos: jovens  podendo conversar conosco e entre si, sobre suicídio e sobre suas dificuldades emocionais. A primeira barreira que percebemos foi a nossa incapacidade de ouvir. Não temos essa cultura da escuta. Nossa cultura incentiva a fala, a crítica, a interpretação competitiva  e não o diálogo compreensivo. Então nós criamos um minicurso Saber Ouvir no qual os próprios alunos ensinam seus pares os princípios da escuta. Eles são os protagonistas e não somente os professores e especialistas. Isso quebrou logo de cara a barreira do desinteresse deles pelo assunto. São habilidades acolhedoras, esses passos que colocamos no documento do Conviva, enviado para as escolas, uma síntese da experiência do CVV: 

- Controle da ansiedade e a disponibilidade de ajudar. Não somos "resolvedores" de problemas. Somos acolhedores. Apenas uma troca de olhares nos coloca nessa posição, em qualquer lugar. 

- Nos colocamos no lugar do outro e desarmamos os preconceitos. Isso evita o bloqueio de comunicação. Identificamos os nossos preconceitos e os colocamos  de lado, porque certamente não conseguiremos removê-los da noite para o dia. 

- Respeitar os silêncios. Muitas não conseguem ou não querem falar e ficam em silêncio. Não precisamos ter essa preocupação de quebra o gelo porque o silencio diz muitas coisas. A respiração silenciosa manda sinais de vida, no qual a pessoa está possivelmente se reorganizando intimamente, chorando, refletindo.  Podemos quebrar o gelo ofertando um copo de água, dizemos que continuamos com ele e lembrando que temos todo o tempo para ouvi-lo. Isso é confiança e proximidade.

- Confiamos plenamente na natureza humana, na sua potencialidade de resolver seus próprios problemas. Essa confiança é percebida pelo outro, sem a necessidade de declarações otimistas e muitas vezes exageradas e fora da realidade. Do contrário, se não confiarmos, vamos ampliar  a sua insegurança e angústia. A natureza humana é maravilhosa. Por mais que ela esteja em dificuldade há sempre a possibilidade de reorganização. A natureza tem um dispositivo , muito conhecido pelos biólogos, que é a adaptação, que é ao nosso ver a verdadeira educação. Temos a capacidade de nos adaptar diante de situações inimagináveis. Nós entendemos tudo isso como uma concepção segura de confiança na natureza humana.

- Sigilo. Essa é uma coisa muito importante nas competências acolhedoras. Uma postura de respeito que deve ser aprendida e praticada como postura ética, entre crianças, jovens e adultos. Compartilhar experiências íntimas que nos foram confiadas é quebra de confiança e pode levar à situações muito constrangedoras e até de risco à vida. Os jovens conheceram essa situação quando tiveram contado com a série “Os 13 Porquês”, exibida pelo Netflix, no qual uma jovem cometeu suicídio em função da exposição pública na escola e na sua cidade de suas intimidades reveladas maldosamente por um ex-namorado. Os problemas dos outros às vezes podem parecer banais  para nós, mas não são para quem está passando por eles. Não existe sentimento errado e tem um significado profundo;  toda emoção tem uma explicação  que precisa ser compreendida. Essa postura é importante até para proporcionar aos alunos a oportunidade de busca de ajuda profissional. O educador é um profissional estratégico para que isso aconteça. Como nós não somos profissionais e entramos em contato com pessoas que estão passando por dificuldades, vem sempre essa pergunta: o que nó dizer para eles.  Não podemos nos colocar na posição de solucionadores de problemas. Se fizermos isso estaremos nos sentindo responsáveis sem termos condição de resolver esses problemas. Nossa postura deve ser de apoio emocional, no qual dialogamos com a pessoa de compreensiva. Devemos permanecer firmes na oferta de amizade e não na oferta de soluções. Todos gostamos de dar conselhos: faça isso, faça aquilo. Isso não é bom. Nossas experiências quase sempre não cabem na experiência do outro. A nossa compreensão sempre cabe muito bem. Mesmo porque não temos essa competência de conselheiros especializados no que dizem e no que fazem. O que podemos fazer ser humanos. Só isso ajuda muito, porque alivia as dores daquele momento de desabafo. Os tratamento e soluções são profissionais. Quem está inseguro nessa relação de ajuda deve sempre conversar sobre os sentimentos. Perguntar como a pessoa está reagindo diante dos problemas que ela está passando. No nosso caso, dar conselho é uma postura até leviana porque quase sempre nem imaginamos como as coisas chegaram na situação em que a pessoa se encontra. Isso não é da nossa esfera de ação. Nosso papel é ouvir e compreender, abraçar, acolher. Evitemos a postura orientadora, superior. Nossa postura deve ser de igual pra igual.  Não é fácil, mas podemos treinar e exercitar o diálogo compreensivo. É só perguntar o que a pessoa está sentindo: está com medo? Sente-se ameaçada?  Está ansioso? Não consegue controlar a raiva? Essas perguntas causam estimulo e alívio emocional e não raro conforto e autocompreensão diante de situações complexas. A conversa afetiva leva a um clima de confiança. Devemos fazer perguntas sobre os sentimentos e necessidades. Podemos perguntar sempre se os alunos querem ajuda que vai além da conversa simples e humana. 

 



LIVE 2- CENTRO DE MÍDIAS SEDUC SP

FORMAÇÃO DE PROFESSORES-PALESTRA REMOTA NO CENTRO DE MÍDIAS DE SP- CONVIVA- 28 de setembro de 2020. Disponível no Youtube.

O papel da escola no apoio emocional: a experiência do CVV

Haroldo Corrêa Rocha - Secretário Executivo da Educação - SP

Dalmo Duque dos Santos - Professor Mestre em Comunicação e Cultura

 

SECRETÁRIO

Este é o nosso 27º encontro. Já tivemos aqui contribuições e convidados especiais. Hoje temos um convidado do nosso meio, de forma muito especial.  O professor Dalmo está na rede estadual desde 1999, é autor dois livros sobre o assunto, e dedica-se ao CVV há 40 anos. Que pessoas maravilhosas que temos dentro da rede! Agradeço muito a sua presença. Eu gostaria de começar perguntando o que te sensibilizou a fazer esse trabalho voluntário? Você é um professor da rede como qualquer outro e teve essa sensibilidade para voluntariar. Eu gostaria que você falasse sobre isso.

PROFESSOR

Obrigado pela oportunidade. A minha ligação e vínculo com o CVV foi uma reação de curiosidade. Na minha cabeça sempre tive a ideia de que eu seria um educador. Surgiu uma oportunidade de ligar as duas coisas.  O CVV é uma grande escola, não passa de uma escola, um lugar onde se aprende  muitas coisas, inclusive psicologia.  Uma das estruturas de conhecimento do CVV é a escola humanista de Carl Rogers e dos psicólogos humanistas contemporâneos, que têm uma preocupação com as crises existenciais e com o sofrimento emocional. Em 1979  recebi, juntamente com a minha mãe, um convite para participar da fundação do posto do CVV de Santos. Eu tinha 17 anos e um dia quando cheguei em casa vi no sofá apostila e perguntei o que era aquilo. Minha mãe explicou o que era e que havíamos recebido um convite para participar de uma reunião.  Folheei a apostila e percebi que era  um assunto totalmente diferente do que eu conhecia:  comportamento humano, sobre a solidão, prevenção do suicídio. Morávamos em São Vicente, uma cidade pequena e conurbada com Santos.  Fiquei muito curioso e acompanhei minha mãe e uns amigos que haviam feito o convite. Nós estávamos fundando um posto do CVV.  Este posto foi fundado no final de 1979 e  no início de 1980 já funcionava com 70 voluntários. Uma entidade assistencial emprestou  uma sala e um telefone – que era muito caro na época- e iniciamos o trabalho. No primeiro mês nós fizemos 1.200 atendimentos telefônicos e muitos atendimentos presenciais. Nós estávamos sendo testados por um programa de expansão do CVV iniciado em 1977. O CVV  foi fundado em 1961 mais era muito fechado e restrito porque o assunto suicídio também era fechado e restrito. O CVV trabalhava na surdina, quase escondido, atendendo muitas pessoas,  sem nenhuma publicidade. A gente até hoje não sabe como as pessoas encontravam o CVV  em São Paulo, lá rua Abolição. Em 1976 o Rev. Chad Varah, fundador dos Samaritanos – uma entidade similar da Inglaterra- visitou o Brasil e fez essa proposta de expansão dos postos de atendimento no Brasil. Foi a fusão das marcas CVV-Samaritanos. Ele entendia que o Brasil tinha uma vocação muito forte para o voluntariado. As pessoas no Brasil gostam e sentem bem fazendo isso. No nosso caso, o que nos atraiu no CVV foi a ideia de conhecimento. Já iniciamos fazendo um curso, aprendendo coisas novas  sobre o comportamento humano, comportamento suicida. Isso despertou em nós um grande entusiasmo e acabamos também trazendo amigos para conhecer o CVV. Tudo novidade. Foi maravilhoso. Depois disso nunca mais nos afastamos. Agora, teve uma outra causa mais verdadeira do nosso envolvimento no CVV. Foi num momento da nossa vida quando nós perdemos um tio. Ele tinha sérios problemas emocionais  e deu um tiro no ouvido. Ele foi se afastando da gente e tentou suicídio com um revolver do meu avô. Naquela época as famílias tinham armas em casa, que é uma coisa perigosa, mas o nosso avô tinha sítio e achava que era necessário e seguro ter o revólver. Foi uma tragédia, mesmo ele não tendo morrido  (morreu alguns anos depois, sempre muito triste e cheio de mágoas). Eu fiquei chocado porque  eu tinha seis anos e vi minha mãe chorando na varanda de casa ao receber aquela notícia. Esse convite que  recebemos ela interpretou como um chamado, uma tarefa, uma resposta por ter passado por essa experiência. E eu a acompanhei e de lá pra cá continuamos participando até hoje. Me tornei um pesquisador e divulgador permanente. O CVV mudou bastante nesses últimos 60 anos. Durante muito tempo foi uma entidade fechada e muito discreta, restrita aos postos físicos. Com essa revolução tecnológica, teve também teve que entrar no mundo digital, criando postos virtuais. Na pandemia o CVV também teve que se reinventar e reestruturar os seus atendimentos, pois muitos voluntários não podiam deslocar-se até os postos físicos. Foram criados postos remotos nas casas dos voluntários, como já acontecia na Grã Bretanha desde os anos 1970. 

Mas a grande mudança que aconteceu nas últimas décadas foi a criação do CVV Comunidade. O CVV sai do posto – com uma vivência de abordagem de ajuda – e vai visitar os presídios, as igrejas, os hospitais, as escolas. Há uma demanda e os voluntários preenchem essa necessidade através de atendimento, de acolhimento fraterno; e de cursos de formação. Hoje atende empresas que querem ensinar a proposta de vida do CVV para os funcionários nos shoppings, aeroportos, indústrias e até canteiros de obras. Alguns engenheiros e encarregados tiveram essa sensibilidade de convidar o CVV para conversar com os operários,  gente bem simples que vive em São Paulo. Uma coisa espetacular. 

No nosso caso, especificamente como educador,  sempre tivemos em mente a ideia de transpor o conhecimento do CVV para as escolas. Há muitos anos vínhamos tentando isso. A primeira vez que fizemos uma reunião de roda de conversa numa escola pública, no ano de 2002, foi em Santos,  na E. E. Marquês de São Vicente, no Canal 2. Montamos  um núcleo de reuniões aos sábados que foi a base do desenvolvimento da prevenção da prevenção do suicídio aliada à educação. Ali nós percebemos que os funcionários, professores e alunos tinham interesse e necessidade de apoio e educação  emocional.  Em cada escola que a gente passa procuramos imprimir essa marca, nem que seja através de algumas palestras.  A última ação nesse sentido foi em 2016, quando tivemos a oportunidade de criar o programa Estação Amizade, um enfretamento contra o fenômeno da Baleia Azul e das epidemias de autolesão entre as crianças. Inicialmente através de palestras  e depois a mudança de estratégia colocando jovens para conversar com jovens sobre prevenção. Transformar os alunos de expectadores em protagonistas.  Criamos o Minicurso Saber Ouvir e eles passam ser multiplicadores da ideia aprender a cultura acolhedora e compreensiva.  Trazemos à tona, para conhecimento e discussão, assuntos proibidos e negados, como a ansiedade, o pânico e a depressão, vistos como estigmas de fraqueza e inadequação. Na escola esses assuntos se manifestam com mais espontaneidade, pois é o reflexo da sociedade.  Foi nessa época também que desenvolvemos no CVV a cartilha “Falando Abertamente sobre o Suicídio”, voltada para jovens.  A ideia era quebrar o tabu e oferecer um caminho de compreensão e esclarecimento. Hoje essa prática já está se disseminando nas escolas, ainda de forma lenta, mas com grande interesse também nas entidades humanitárias parceiras que atuam na rede escolar. Durante pandemia nós tivemos a chance de mostrar a real importância da educação emocional. O sofrimento duplicou com esse isolamento. No início tentamos nos aproximar dos alunos ofertando uma avalanche de conteúdos e eles se afastaram mais ainda de nós, com muita desconfiança. Quando mudamos, usando a estratégia de fazer um diálogo mais emocional, tocando nos sentimentos, perguntando das experiências pessoais, permitindo o protagonismo deles, o cenário mudou, e começou a surgir uma reaproximação. 

SECRETÁRIO

Professor, essa experiência é extraordinária – aqui já passaram muitos psicólogos e médicos - e mas tê-lo aqui como professor, de carne e osso, como todos o que estão nos assistindo é muito bom. Temos agora sete mil professores conectados. E você narrou essa experiência, as circunstâncias que te levaram a  essa ação solidária e voluntária; e mostrou que a escola pode ser uma célula de acolhimento emocional.  A escola é uma concentração de adolescentes e jovens, de efervescência, uma carga no sentido de ocupação da mente e do tempo do professor. Muitos ficam tensos e reclamam da dificuldade de reservar um tempo para essas práticas.  Como que um professor pode se organizar, dentro do seu propósito, para olhar também essa dimensão dos alunos, que é a dimensão emocional? Eu percebo que já existe uma sensibilização nesse sentido, pois nossos alunos são muito mais vulneráveis. Como cuidar da questão socioemocional da criança?

PROFESSOR

A nossa grande preocupação é o convívio. A pandemia atingiu em cheio esse nosso pilar da convivência.  É uma preocupação antiga e que é  também de muitos outros professores. É a busca por uma convivência mais sadia com os alunos, não só uma convivência profissional, mas uma convivência mais humana, mais próxima. Porque eles contam com a gente. Queira ou não queira, sempre  temos um contingente de alunos que olham para nós de uma maneira de diferente. Não olha apenas como professores; olha como ser humano, com a possibilidade de sermos um pai, um tio, um amigo, um irmão. Isso é real. Não é sentimentalismo nem ideologia. É uma coisa real. Nós estamos convivendo com pessoas que não têm a possibilidade de ter a orientação de um pai, de uma mãe. Eu dou aula numa área de risco, um lugar perigoso, de alta criminalidade, que temos trabalhar mediante de certos acordos com a comunidade, conversar, pedir tolerância, mais compreensão - uma prática que vem de algum tempo. Mas o que marca bastante é o afeto. Já tive uma ocasião de sair da escola escoltado, protegido por  um aluno, criança, que me alertou: “Professor hoje o senhor vai sair comigo. Vou levar o senhor até o ponto de ônibus”.  Eu achei que ela estava brincando. Não estava. Tinha alguns jovens fazendo assaltos e avisaram ele. Pensei, não volto mais! Vou desistir da escola. É muito perigoso. Mas depois eu pensei: como é que vai ficar a minha concepção de educador? Como vão ficar os alunos? Eu acredito que na sala de aula você está fazendo suas atividades, está ensinando, promovendo os eventos e de repente você percebe que você está olhando para alguém e esse alguém está olhando pra você. E não é só a gente que percebe que está havendo uma necessidade. Certa vez uma aluna me disse: “Professor hoje você está triste. Você não é assim, você está triste”. Reagi rindo, mas concordando: “Realmente você acertou em cheio. Estou passando por alguns problemas, mas acredito que vou superar - Vai sim!!! respondeu ela- e continuei: “Até meio dia e vinte eu acho que vou estar  mais forte. Vamos trabalhar”. Então, se eles percebem que eu estou triste, por que  não podemos  fazer isso? E a gente faz isso com uma certa boa vontade. Eu costumo fazer o seguinte: esse barulho de sala de aula incomoda pessoas com mais de 30 anos, cada vez mais. Nós vamos avançando na idade e a gente quer introspecção, não quer mais barulho, a gente quer silêncio. A gente está entrando num outro ritmo de tempo; nós estamos indo pela bússola e eles estão no relógio, estão na extroversão. Enquanto estamos na introspecção e eles estão na extroversão,  eles  querem fazer barulho, eles querem conversar, que é  o mundo e forma de vida deles. Então tem um determinado momento que é preciso dar um clique. Acredito que todos os professores sabem e podem fazer isso. Fazer aquela transposição do mundo exterior para o mundo interior, em cinco ou seis minutos, desarrumando a sala, transformando o ambiente em um outro cenário. E vamos fazer uma conversa, uma bate-papo sobre profissão, sobre moda, e no meio desses assuntos a gente começa da falar sobre dificuldades emocionais: quem se corta, quem já pensou em suicídio, como é que vocês lidam com os problemas de vocês , o que é a morte, o que é a vida, o que é o medo. Quebramos a rotina fazendo um outro ambiente.  E foi nessas situações que a gente desenvolveu o programa Estação Amizade. E quando não dá pra fazer coletivamente, pois sempre tem alguém precisa de uma ajuda pessoalmente, nós damos um jeito de atender aqueles que sinalizam um interesse mais aprofundado pelo assunto, ouvindo-os por alguns minutos. E quando  a gente treina eles para a escuta, aumenta a sensibilidade e também a acessibilidade emocional entre eles. Uma liberdade para pedir ajuda.  A gente vê manifestações de afeto entre eles de uma maneira mais ampla, sem barreiras e preconceitos, do jeito deles.  Nós não somos profissionais e solucionadores de problemas. Somos seres humanos. A nossa técnica, que é usada no CVV, e passamos a usar na escola, é essa.  O ser humano se apresenta para nós em três aspectos: o indivíduo, seu status (o RG);  o problema;  e a pessoa. Nós vamos dialogar com a pessoa, porque nesse aspecto somos iguais.  Nós somos diferentes no RG, no problema, mas como pessoas somos iguais, porque a pessoa fala numa linguagem emocional. Não importa se é médico, se é advogado , se é educador, se é faxineiro, se é criança, se é adulto. Todos falam a linguagem emocional: eu estou sofrendo, estou sentido dor, estou com medo, estou ansioso, estou frustrado. Essa é uma linguagem humana.  Não precisa ser psicólogo ou ser médico para falar sobre isso. Essa especialidade é humana e nós funcionamos como espelhos.  Muitas vezes você está no ponto de ônibus ou andando na praia e alguém passa por nós e começa a falar, do nada. Isso já aconteceu comigo várias vezes. A pessoa fala, fala e  você não abre a boca. E aí ela se sente aliviada e diz “ Obrigado por ter me ouvido”. E você não abriu a boca. Isso é uma abordagem simples. É assustadora pra quem não está habituado a ouvir. Nós gostamos de falar, de interpretar, de criticar.  Essa é a nossa cultura racional.    Eles querem desabafar. Então, de repente você se torna ouvinte, com o ouvido aberto para coisas que não são muito comuns de ouvir, de sentimentos e emoções, as pessoas ficam um pouco assustadas quando ficam sabendo disso. “E se eu me envolver, não vou ter condições de resolver”. Mas nós não temos essa responsabilidade, nem essa intenção. E jamais somos cobrados nesse sentido. Eles querem se reconhecer em nós. Isso é muito confortante. A pessoa começa a conversar com você, um aluno, um colega professor, funcionário da escola, e ele já sabe que você está disponível. O voluntariado é legal por causa disso, porque, com o tempo, você se torna naturalmente disponível. Só de olhar pra você ele já sabe: essa pessoa é amiga, estou num território seguro, posso desabafar e contar com o sigilo. 

O CVV, sua proposta de vida  e a prevenção do suicídio tem sido um peça permanente de transformação da minha vida e de muitas pessoas. Acredito que os educadores têm uma afinidade com essa ideia de ajudar o próximo, de olhar a outra pessoa com um olhar compreensivo. Os professores são naturalmente apoiadores e compreensivos. A gente não gosta muito de institucionalizar  essa prática, deixando as ações mais livres e espontâneas, mas fazer um curso e desenvolver essa aprendizagem é muito importante. 

          

O MINICURSO SABER OUVIR 

TREINANDO OS MULTIPLICADORES

Alunos da E.E.-PEI Antônio Moreira Coelho em São Vicente-SP multiplicando o Minicurso Saber Ouvir. Ação de 2024.  


Para formar e treinar MULTIPLICADORES  do Minicurso é preciso realizar um encontro de pelo menos 2 horas e dividir esse tempo em 5 etapas:

1. Explicar o motivo do Encontro e fazer um pequenas palestra sobre o suicídio, a necessidade urgente de prevenção e um pouco da experiência dos voluntários do CVV, pessoas comuns que lidam com essa atividade de forma simples e prática.

2. Desenvolver um repertório pessoal sobre os temas do Minicurso, escrevendo e dissertando sobre cada um deles.  

3. Expor o Minicurso para os presentes.

4. Expor novamente e explicar  como cada um dos temas dos slides deve ser apresentado: qual o objetivo de cada slide.

5. Formar duplas ou trios para simular as apresentações, pedindo que eles organizem a exposição. Iniciar o treinamento e apresentação das duplas e trios. A ideia é perder o medo e ficar seguro durante a exposição. Não interrompa as apresentações. Se der branco, ajude e peça sempre para seguir em frente até concluir. As falhas serão corrigidas naturalmente durante o treinamento.

OUVIR NÃO É FÁCIL. 

Pode parecer simples e fácil a atividade de ouvir, mas não é. Vivemos numa sociedade que não tem o hábito da escuta. Falamos muito e ouvimos bem pouco ou quase nada. Somos ansiosos e impacientes, porque pensamos muito e reprimimos os nossos sentimentos e emoções. 

Assim, não conseguimos compreender uns aos outros. Como dizia um dos fundadores do CVV, "Somos uma sociedade de surdos”.  

Queremos resolver todos problemas por meio de  sistemas e métodos racionais ou soluções muitos simplistas e isso nos causa mais problemas ainda, pela insatisfação permanente. 

As Figuras 1 e 2 mostram como somos mental e originalmente e depois com ficamos em desequilíbrio no cenário da sociedade atual.


 


 


O cenário atual, que por sinal foi um efeito da sociedade industrial e de consumo, é um forte gerador de desequilíbrio e sofrimentos psíquicos. 

O desconforto psicológico, o desregramento alimentar e o uso excessivo de drogas medicinais causam as doenças mentais e estas, por sua vez, são somatizadas em forma de inúmeras patologias físicas. 

Esse círculo vicioso é o responsável direto pelas epidemias mentais, registradas em larga escala: as crises de ansiedade, síndrome de pânico, paralisia do sono e principalmente a depressão, atingindo todas as faixas etárias. 


COMO AS PESSOAS PEDEM AJUDA 

Além desse desequilíbrio nas três vivências (Pensamento, Sentimento e Ação), as pessoas que nos procuram se apresentam sob três diferentes aspectos ( Figura 3): o Indivíduo, o Problema e a Pessoa.  Os indivíduos são todos diferentes (RG, endereço, profissão, classe, etc.). Os problemas também são inúmeros e diferentes nas suas origens e características, como os nossos pensamentos e formas de refletir,  embora muitos pareçam ser iguais.  Já as pessoas em si (os sentimentos e emoções)  são muitos semelhantes. E isso nos torna iguais, sem distinção de classe, cor, crença, etc.  Todos sentimos medo, raiva, solidão, rimos, choramos, simplesmente porque essas são emoções humanas. Para ouvir com mais profundidade e respeito temo que dialogar preferencialmente com a PESSOA e não com sua identidade e os seus problemas.

FATO. Não temos condições de resolver os problemas nem mudar as condição sociais das pessoas, mas podemos entender e compreender como elas se sentem e porque estão sofrendo. Essa capacidade de ler os sentimentos se dá pela nossa pré-disposição de acolher e ouvir. É a disponibilidade. Paramos um pouco o que estamos fazendo para prestar atenção no que está acontecendo com o outro. Fazer isso já é algo incomum num mundo como o nosso, competitivo e frio. 

RESUMINDO

Em nossos encontros de treinamento e também de ajuda, primamos sempre por algumas regras importantes:

Falar de si sempre na 1ª Pessoa. 

Ouvir respeitosamente Permitir que o outro fale. 

Respeitar o sigilo das conversas.

Comunicar o desconforto e pedir ajuda. 

Pedir a palavra. 

Não há sentimento errado. 

Sempre se colocar no lugar do outro.. 

Evitar julgamento. 

Não interferir e nem dar conselhos na experiência do outro. 

Manter o clima de ameaça zero. Aceitação plena.

 

OS  4 PASSOS INICIAIS DA RELAÇÃO DE AJUDA.

Toda pessoa fragilizada, mesmo aparentando estar bem, sempre precisa de ajuda para aliviar suas dores íntimas e seguir o seu caminho com suas próprias forças. Porém, um pequeno instante de atenção pode fazer uma grande diferença na vida dela.


Estação Amizade. Aula remata de Educação e Prevenção do suicídio em Limeira SP, na E.E. Prof Antônio Perches Lordello com  alunos do 3º ano do ensino médio. Setembro de 2023. 





OS PROCEDIMENTOS

Resumimos  a seguir  como realizamos a abordagem daqueles que buscam a nossa ajuda, muitas vezes em situações complicadas e constrangedoras, desafiando a nossa própria condição de pessoa e a  capacidade de nos colocarmos à disposição.

CONTROLAR A ANSIEDADE DE RESOLUÇÃO

Não temos condições nem o poder de resolver todos os problemas. Alguns deles nem têm solução nas circunstâncias em que se apresentam. Nosso foco principal é sempre a pessoa e seus sentimentos.

 ACOLHIMENTO FRATERNO

Ameaça zero.

Aceitação plena. Quando acolhemos, deixamos às pessoas numa posição tranquila, confortável, causando um alívio nas suas tensões, medos e nas suas dores.

 


Treinamento de multiplicadores  na E.E. Martim Afonso, Diretoria Regional de Ensino de S. Vicente-SP, em 2022


NOSSAS TRÊS FACES

Nossas experiências nos mostram basicamente em três faces ou aspectos da personalidade: o Indivíduo: identidade, RG, endereço, profissão, gênero, status; o Problema: ou situação em que nos encontramos; e  a Pessoa: nosso jeito de ser, o temperamento, os sentimentos e emoções. Somos assim e quem nos procura para pedir ajuda também.  No primeiro aspecto somos socialmente diferentes e essas diferenças são acentuadas pelas aparências. No segundo aspecto também somos diferentes porque os problemas podem até ser semelhantes, mas  não temos soluções prontas para dificuldades que não vivenciamos; podemos ser solidários e compreensíveis, mas não podemos buscar soluções para eliminar os problemas da alçada dos especialistas; e finalmente o terceiro aspecto, no qual somos muito semelhantes, diríamos até iguais: somos humanos e temos sentimentos e emoções idênticas: raiva, alegria, tristeza, medo, etc. Assim, devemos focar o diálogo com a pessoa ( a face que está sofrendo) e deixar de lado naquela instante o indivíduo e o problemas.

Importante: não somos profissionais especialistas, mas podemos ajudar nos momentos de crise, conversando  e refletindo abertamente com o outro sobre os sentimentos e emoções que o afligem nesses momentos de solidão e isolamento. Como reagimos diante das coisas?  Medo, ansiedade, indiferença, raiva, ironia? Esse deve ser o foco da nossa atenção para com o outro. Ouvir as inquietações e dores íntimas. Isso alivia a angústia, a tristeza, a ansiedade, o medo e muitos outros sentimentos. Se a pessoa insistir em nos cobrar conselhos e soluções lembre que num outro momento ela pode buscar ajuda profissional, mas que naquele instante ele pode se abrir, desabafar e reorganizar suas emoções.

SE COLOCAR NO LUGAR DO OUTRO

Quando fazemos isso imediatamente somos percebidos como amigos e  ampliamos a nossa capacidade de compreensão.

SE DESARMAR DOS PRECONCEITOS

Não julgar e nem condenar. Todos temos valores e visões de mundo diferentes, mas a tolerância e o respeito pode nos ajudar muito a aceitar as coisas que não concordamos e não podemos modificar. Aceitar não significa que devemos concordar e aprovar, mas apenas reconhecer as diferenças e a diversidade.

RESPEITAR OS “SILÊNCIOS”

Muitas vezes em uma conversa surgem momentos que cessam os assuntos e os barulhos externos, porém dentro de cada um existem e persistem os barulhos internos. Nesses momentos refletimos sobre as coisas, recapitulamos nossos passos, remoemos nossas ações, limitações e buscamos respostas que estão somente dentro de nós. É o tempo íntimo de cada um, que precisa ser aguardado e respeitado.  Permaneçamos também em silêncio.

CONFIAR NA NATUREZA HUMANA

Todo ser humano na sua essência transformadora tem um sentido positivo que o faz refletir e questionar sua condição e as coisas que se passam no seu entorno. Ele tem a capacidade de entender e resolver suas próprias dificuldades.  Quando essas dificuldades parecem ser insuperáveis, ainda assim, ele pode desenvolver a capacidade de aprender a conviver com elas, sem comprometer sua vida e seus compromissos.  Estar ao lado dele e com ele nesses momentos é altamente confortante e de grande auxílio, sem nos preocuparmos somente em oferecer soluções, porque elas não existem como modelos prontos e sim algo que é construído na experiência de cada um.

HONRAR A CONFIANÇA

Ao compartilhar conosco suas impressões, seus sentimentos e eventualmente os seus segredos e particularidades, as pessoas contam naturalmente com o nosso respeito e sigilo.

 


Treinamento de multiplicadores E.E. Martim Afonso, Diretoria Regional de Ensino de S. Vicente-SP, em 2022.


APROFUNDAMENTO 

 Treinamento de Respostas Compreensivas.

Sentindo a necessidade e ampliar a habilidade de escuta e controlar o impulsivo discursivo, é possível treinar as nossas RESPOSTA COMPREENSIVAS, observando o que ouvimos e no concentrando nos sentimentos e emoções de que nos fala.

 


Aprendizes do CAMP Rio Branco, São Vicente SP, exercitando a escuta ativa e leitura dos sentimentos.


RESPONDA IDENTIFICANDO OS SENTIMENTOS.

Lembrando que não existe sentimento ruins, mas apenas sentimentos.


1. Ontem recebi um telefonema que me deixou desequilibrado.

2. Às vezes acho que as pessoas são cruéis e insensíveis.

3. Faço sempre tudo certo, me esforço e as pessoas não enxergam isso.

4. Perdi a vontade de viver. Não vale a pena

5. Não consigo mudar nem melhorar o meu jeito. Isso me irrita.

6. Meus amigos não são meus amigos. Estou sempre sozinho.

 

Cada uma dessas falas têm uma grande diversidade de sentimentos e razões para compreender o nosso comportamento e também o do outro.

Conversando sobre esses aspectos de forma compreensiva, preservamos a intimidade e nos tornamos abertos de uma forma discreta e confiável.



ANEXOS



CHAD VARAH, O FUNDADOR DOS SAMARITANOS


NASCIMENTO: 12 de novembro de 1911. Boston, cidade, Lincolnshire, Inglaterra. MORTE: 8 novembro de 2007 (95 anos). Alton, East Hampshire District, Hampshire, Inglaterra. Corpo doado à ciência médica, especificamente: London School of Anatomy.

O mais velho de nove filhos, Edward Chad Varah nasceu na pequena cidade de Barton upon Humber, Lincolnshire, Inglaterra. Seu pai, o cônego William Edward Varah, era reitor da igreja anglicana local de São Pedro. Aos 13 anos ele foi mandado para a Worksop College, uma escola com fortes tradições da Alta Igreja. Tendo uma memória misteriosa (até o fim, ele poderia recitar cada poema que já aprendeu), ele brilhou academicamente e ganhou uma exposição em ciências naturais para o Keble College, em Oxford. Após dois mandatos, ele mudou para Política, Filosofia e Economia. Mais tarde, estudou no Lincoln Theological College (hoje chamado Chad Varah House) e foi ordenado sacerdote na Catedral de Lincoln.

SEXO E SUICÍDIO COMO TABUS

Na atmosfera culturalmente repressiva do Reino Unido na década de 1930, ele reconheceu até que ponto a confusão e a ignorância sobre muitas questões sociais, várias ainda envoltas em tabu, contribuíram para o desespero que muitas vezes levou ao suicídio, que era ilegal. Como assistente terapêutico em 1935, gerou seu compromisso vitalício com a educação sexual e depois com a prevenção do suicídio. No St. Gile's, Lincoln, ele oficiou no funeral de uma menina de treze anos de idade, que estava tão confusa e isolada que acreditava que o início da menstruação era o sinal de uma doença mortal que levaria a uma morte lenta e dolorosa ; a garota aterrorizada se matou. Profundamente comovido e chateado por esse suicídio, ele dedicou-se ao ensino de educação sexual básica no clube de jovens da igreja e aos casais que estavam se preparando para o casamento. Ele também apoiou outras pessoas suicidas no hospital local e dentro de sua paróquia, ciente das escassas instalações para os suicida e sua relutância frequente em consultar um psiquiatra. Ele acreditava que as pessoas suicidas precisavam de um meio de entrar em contato com alguém com quem poderiam conversar a qualquer hora do dia ou da noite.

AJUDA PRIVATIVA DOS BEFRIENDERS

Ele conheceu Doris Susan Whanslaw (Susan) antes da Segunda Guerra Mundial quando se tornou curador de St Mary the Virgin, Putney. Eles se casaram lá em 1940 e se mudaram para Barrow-in-Furness logo depois. Ele serviu em paróquias em Blackburn e em Battersea, Londres. Sua esposa se tornou presidente mundial da União das Mães na década de 1970. A oportunidade de cumprir sua promessa de ajudar as pessoas em desespero e necessidade emocional veio em 1953, quando foi nomeado reitor de Santo Estêvão, Walbrook, ao lado da Mansion House, a casa do prefeito na cidade de Londres. Seus honorários foram-lhe oferecidos pela Companhia dos Mercadores. O esplêndido edifício de Wren estava sendo restaurado e havia apenas uma pequena congregação da cidade. Isso serviu de forma admirável para o novo titular. Dentro de três meses, 50 voluntários estavam recebendo telefonemas do número de telefone da igreja - MAN 9000. Ele disse que iria treiná-los para “serem amigos” (chamados samaritanos pelo Daily Mirror) - a organização havia começado. No início dos anos 50, em apenas um dia, três suicídios foram oficialmente registrados na Grande Londres; o suicídio ainda era um ato ilegal e a educação sexual dificilmente existia. Ele anunciava na imprensa que as pessoas ajudassem - não como conselheiros treinados, mas como seres humanos comuns oferecendo um ouvido atento e apoio emocional. Procurado por muitas pessoas dispostas a ajudar, ele também abriu o primeiro centro "drop-in" onde pessoas emocionalmente isoladas e angustiadas poderiam ir para encontrar um ouvido solidário.

PESSOAS COMUNS, PORÉM EXTRAORDINÁRIAS, QUE ESCUTAM SEM INTERROMPER

Ele continuou a administrar os samaritanos até 1987, foi presidente do Befrienders Worldwide e permaneceu um apoiador ativo até o fim de sua vida. Michael Varah, um de seus filhos trigêmeos, que serviu como comissário eleito dos Samaritanos de julho de 2005 até sua morte em abril de 2007, lembrou: 'meu pai descreveu essa amizade com o suicida:

' Há neste mundo, em todos os países, pessoas que parecem ser "comuns", mas que, quando se encontram com uma pessoa suicida, se revelam extraordinárias. Eles geralmente podem salvar vidas. Como? Eles dão a pessoa triste sua atenção total. Eles se esquecem completamente de si mesmos. Eles escutam... e escutam ... e escutam, sem interromper. Eles irradiam aprovação ou agitam suas cabeças simpaticamente. Depois de muito tempo, eles dizem "por favor, me conte mais". Se pedir conselhos, eles dizem: "você é a única pessoa que pode aconselhá-lo bem - o que você acha que deveria fazer?" Eles não têm mensagem. Eles não pregam. Eles não têm nada para vender. Nós os chamamos de 'samaritanos'.

”Ele também estava intimamente associado à criação da história em quadrinhos do menino, The Eagle, pelo colega clérigo Marcus Morris em 1950. Ele era o cérebro por trás do cartunista Dan Dare. Ele complementou sua renda trabalhando como roteirista para The Eagle e suas publicações irmãs Girl, Robin e Swift até 1961.

Na Lista de Honras do Ano Novo do Milênio, Sua Majestade a Rainha concedeu ao Reverendo Dr. Chad Varah a Ordem do Companheiro de Honra pelos Serviços aos Samaritanos. Ele considerou esse título a maior das muitas honrarias concedidas a ele em sua vida. O Chad Varah Memorial Appeal foi inaugurado após sua morte para garantir que duas das organizações que ele fundou, Samaritans e Befrienders Worldwide, permanecessem como um testamento inspirador de sua vida e obra até o século XXI.

Durante toda a sua vida, ele disse o que os outros tinham medo de dizer, e isso lhe rendeu muita calúnia. Corajoso, sincero, devoto e abrasivo, ele foi um dos sacerdotes mais conhecidos da Inglaterra e de outros países. Ele sobreviveu em uma igreja que ele amava e servia fielmente. Ninguém pode negar que ele teve um efeito profundo para o bem na vida de milhões de pessoas.

(Esta biografia foi escrita em conjunto com a família e tem toda a sua aprovação. Eles preferem que ela não seja alterada para fins de elevação para status 'famoso')



O EXERCÍCIO DA AMIZADE


JACQUES CONCHON


Reunião com um grupo de jovens e adultos em Santos, em 05 de setembro 2012


“EU NÃO TE CONHECI. NÃO TE CONHEÇO, MAS VOCÊ MUDOU A MINHA VIDA” . 

Rev. Chad Varah nos funerais de uma jovem suicida de 13 anos em Londres.


Nos albores da década de 60, num sábado à tarde, nos corredores da antiga FEESP, cruzamos com a figurar ímpar de Edgard Armond. Ele fez um sinal para que entrássemos no gabinete dele.  Entramos e ele nos entregou um envelope e dizendo: “Aqui contém uma grande oportunidade de serviço. Você estude e verifique o que pode ser feito”. Rapidamente abrimos o envelope e havia vários recortes de revistas da época descrendo o trabalho desenvolvido pelos Samaritanos de Londres junto às pessoas desesperadas. Achei aquilo fascinante. Inclusive agora que o CVV completa 50 anos, o Dalmo conseguiu regatar um desses recortes. Não sei de que maneira ele conseguiu encontrar (rindo). 

Então examinando as informações, um grupo de voluntários, pessoas comuns,  se colocavam disponíveis a ouvir, ouvir o clamores de uma de uma grande cidade, ouvir o desespero, ouvir os que já se encontravam já nas fronteiras do irreversível, do irremediável. Naquela semana, procurando conhecer mais sobre o problema da auto-destruição, nos deparamos com alguns dados impressionantes. O número de suicídios ocorridos diariamente na cidade de São Paulo. Na época a estatísticas eram poucas, escassas. Mas parece  havíamos conseguido dados concretos e sentíamos que era imperioso que se criasse, na sociedade em nós  vivemos, um trabalho voltado a essas pessoas que se encontravam destruída pela vida , dentro dos mais completo desespero. É importante nós sabermos que o momento era aquele. Então nós tínhamos uma sociedade com uma série de desequilíbrios; e esses desequilíbrios estavam se traduzindo num expressivo número de desertores que, que através da autodestruição, partiam dessa vida, ilusoriamente, na esperança de uma solução ou de um ponto final. É muito importante que isso fique claro. Um trabalho era indispensável. E a sociedade é um organismo vivo. Então, prevendo desequilíbrios, prevendo carências, prevendo necessidades, ela mesma se reorganiza de tal forma a sanar um grande problema. O que eu quero dizer é que naquele momento a oportunidade era essa. O Armond disse: “Siga em frente”! Se nós não tivéssemos aproveitado a oportunidade de qualquer forma sociedade cumpriria a sua missão, ou seja, iria surgir de qualquer maneira um trabalho de prevenção do suicídio através de uma relação de amizade.  E assim começamos. E durante todos esses anos conseguimos enriquecer um acervo de experiências junto a outra pessoa, praticando aquilo que nós chamamos o exercício da amizade, prática da amizade. Então, acredito que, nos 50 anos de CVV, nós conseguimos uma volumosa bagagem de experiências voltadas à relação de ajuda”.

O início. Como foi o princípio. Como surgiu o movimento na Inglaterra. Vamos voltar atrás. Agora estamos localizados nos albores da década de 1950.

Nessa época , de acordo com os princípios dos nosso irmão ingleses, as pessoas que se matavam não podiam ser enterrados em campos santos, nos cemitérios.  Isso foi no começo dos anos 50. Uma jovem de 13 anos havia se matado. O Chad Varah, um jovem na época, pastor da Igreja Anglicana, com formação sacerdotal voltada para o próximo. Então, ele se apresentou voluntariamente para oficiar  os ritos fúnebres daquela jovem. E teria que buscar um local para sepultar o corpo. . Ele sempre relatou isso com muita emoção. No momento final da cerimônia ele veio a saber que menina havia se matado por acreditar que ser portadora de doenças venéreas quando na verdade experimentava a primeira  menstruação. Ele ficou abaladíssimo com aquilo. Abaladíssimo. Antes de sepultar o cadáver ele disse para a jovem: “Eu não te conheci. Eu não te conheço, mas você mudou a minha vida”.  É chegado o momento de abrir as comportas, que as pessoas possam conversar seriamente sobre assuntos sérios, de forma livre, sem preconceitos, sem barreira. Relata ele que passou a semana procurando se encontrar, de tão abalado com o episódio, praticamente só, num local descampado, somente com os familiares da moça, pois não podia fazer aquilo em outro lugar, pois afinal era um suicida. Então ele resolveu ir até um periódico de grande circulação na época, chamado “Picture Post” e colocou um anúncio muito simples. Essa primeira página do Picture Post também nós tínhamos guardado, com esse anúncio do Chad dizendo que ele estaria disposto a ouvir _ era esse o oferecimento - a todos aqueles que a vida havia transformado o caminhar em agruras profundas, ele estaria disposto a ouvir. Achei interessante, porque não estava oferecendo nada, mas somente ouvir. Não disse que ia resolver problemas, nem sanar as dúvidas nem as dívidas, mas ouvir. E dava o telefono e o endereço. Foi uma experiência fantástica. Muitas pessoas telefonaram, mas o que marcou muito, que era alguém da França, que pedia meia hora para conversar. “Claro que sim!!!!” Atravessou o Canal da Mancha, foi até a Inglaterra para falar durante meia hora num expressivo e emocional desabafo. Então aquilo começou a mudar a vida do Chad. Passadas algumas semanas, ele já tinha um local estabelecido  e a sala de espera  ficava sempre abarrotada de gente. Por mais que se desdobrasse não encontrava tempo suficiente para atender a todos. Fez um outro apelo nos jornais pedindo voluntários para ajudá-lo na recepção dessas pessoas enquanto fazia os atendimento.  Aí então ele fez uma descoberta. Noventa por cento daquele afluxo de pessoas iam embora depois de conversar com os voluntários após alguns minutos de atenção dos voluntários. Eles diziam que ofereciam água, chá ou café e “ficavam ao lado das pessoas” ouvindo elas falarem sem dizer nada, apenas escutando suas histórias explicando o motivo da vinda delas. Falavam e depois iam embora, agradecidos, dispensando o atendimento privativo com o Chad. Depois dessa descoberta  Chad publicou um artigo no jornal com o título: “Pessoas leigas podem salvar vidas”.  Estava fundado Os Samaritanos de Londres, que nada mais é do que a prática da amizade (befriending).  

E praticando a amizade  nós começamos em 1961 e em 1962 o CVV já estava fundado, por isso está completando 50 anos de atividade. Eu me sinto muito gratificado. Trabalhamos no CVV como voluntário durante 25 anos. Depois desse período nós nos afastamos, pois tínhamos outras atividades a nos dedicarmos. Mas foram 25 anos de um aprendizado imenso.   Difícil dizer o que isso representou em nossas vidas e  em todos os voluntário. Depois vocês podem conversar aqui com o Mário, nosso querido companheiro. Impressionante. Logo no início nós aprendemos que a relação de ajuda é  um processo a dois, atividade recíproca. Ninguém ajuda ninguém, mas duas pessoas podem se ajudar. Então, a aquela conotação de superioridade acabou logo no começo. Nada melhor do que a experiência e a vivência. Se nós, no primeiro encontro nos colocávamos como salvadores,  passados dois três meses já estávamos mudados, numa posição de nivelamento com a outra pessoa. Aquela imagem que o companheiro  Flávio figurava : “Eu estou no meio da rua. Uma pessoa me pergunta: Você está vendo aquele túnel? Você me ajuda a atravessá-lo, pois estou com receio. E ele respondia: “Eu ajudo, com uma condição: você também me ajuda porque eu também tenho alguns receios”. Isso é o nivelamento total. As pessoas que nos procuram que nos ligam são pessoas tão necessitadas quanto nós. 

Assim nós fomos aprendendo o valor da amizade. Amizade sincera, que nós oferecemos às pessoas que se encontram aflitas e desesperadas, que têm um efeito extraordinário no crescimento das duas partes.  Em 1962 , todos os sábados, fazíamos reuniões para relar as nossas experiências. Fomos aprendendo e evoluindo, percebendo que cometíamos erros e buscando corrigir o percursos. Dez anos depois já tínhamos crescido muito e foi quando conhecemos a não diretividade, que de certa forma nós praticávamos. Foi quando um dia o Alan entrou no meu escritório e disse: “Nasceu o Pasteur da psicologia clínica.  É esse aqui”, trazendo o livro “Psicoterapia centrada do cliente”, de Carl Rogers. Ao conhecer a não diretividade de Rogers já éramos não diretivos, cabendo a nós somente dar uma formação didática.



A EXPERIÊNCIA DO CVV

PREVENÇÃO DO SUICÍDIO SE FAZ COM APROXIMAÇÃO,
ACEITAÇÃO, COMPREENSÃO E RESPEITO.


ALANKARDEC GONZALEZ


Nenhum ser humano pode dizer que jamais pensará em suicídio. A sensibilidade é o passaporte para a escura terra da dor e do sofrimento, de onde a morte parece ser, por vezes, a única saída. Prevenção do suicídio é uma expressão de força e de impacto. Traz a recordação de imagens de policiais e enfermeiros procurando impedir uma pessoa de se matar. 

Mas, se ela for entendida no sentido da medicina preventiva, estará se referindo a um dos aspectos mais importantes do trabalho com pessoas humanas em situação de crise, depressão ou às vezes de desespero.

A pessoa que procura ajuda

O indivíduo que pensa em suicídio é uma pessoa solitária. Ele pode estar no meio de uma grande multidão ou de uma grande família, mas sente-se só, isolado. Tenta se comunicar com muita gente, mas tem a percepção de que ninguém o atende nem se dispõe a ouvi-lo. 

A pessoa com esse tipo de sofrimento não consegue deixar claro para os que a cercam, as dimensões e o sentido de sua angústia. Logo, o suicídio pode ser classificado como um gesto de comunicação. O último gesto de comunicação de um indivíduo, gesto desesperado e violento, que, no fundo, transmite alguma coisa para alguém ou para a sociedade, mesmo sem esperança do retorno.

Embora à primeira vista se tenha a impressão de que o gesto suicida surge repentinamente, isso não é correto. Meses e anos de sofrimento são necessários até que o desejo de morrer supere o forte impulso que todo ser humano possui para viver. A compreensão e o calor humano são o grande antídoto contra o desespero que leva ao auto-aniquilamento.

É justamente em relação ao perfil do indivíduo descrito que se articula o trabalho do CVV: compreender incondicionalmente os que procuram atendimento, para que eles possam encontrar novas razões para continuar a viver. Com isso, se combatem as causas mais profundas da atitude autodestrutiva.

FATORES

Existe uma certa confusão entre os fatores causais e os fatores desencadeantes do suicídio. Desencadeante é a “última gota” de um longo processo de acabar com a vida. Por exemplo: o indivíduo foi despedido do emprego e se matou. Todos afirmam: “Está claro, a culpa é da empresa que o colocou na rua”. Pergunta-se então: será que todas as pessoas que são despedidas de seus empregos se suicidam? Claro que não! A verdade, portanto, é que o recém-desempregado já vinha carregando consigo inúmeros outros problemas e sentimentos que se agravaram progressivamente. Esses fatores causais são também chamados de causas primárias e os fatores desencadeantes são as chamadas causas secundárias.

SENTIMENTOS

No início do diálogo com uma pessoa que procura o serviço CVV, geralmente ela aponta, como causa do seu sofrimento, os motivos secundários, visíveis e aparentes. Somente após algum tempo de relacionamento, é que emergem as causas reais. São principalmente essas últimas que devem merecer toda a atenção. 

Os sentimentos presentes no indivíduo que pensa em suicídio são comuns a qualquer pessoa. Conhecendo-os, está-se conhecendo um pouco da experiência de cada um. Os mais comumente encontrados são:

- ambivalência – é a convivência, num mesmo indivíduo, de dois sentimentos em conflito. 

O estado de ambivalência é um estado de grande sofrimento. No caso da pessoa que pensa em se matar, por exemplo, ela vai aos poucos cultivando (às vezes até inconscientemente) o desejo de autodestruição; contudo, o instinto de conservação a prende à vida, a impulsiona a viver. Logo, ela quer morrer, mas a vida, como instinto, grita que quer continuar. Ninguém pode permanecer muito tempo nesse estado, pelo fato dele consumir uma quantidade muito grande de energia. É uma situação insuportável quando prolongada. Daí, o sofrimento intenso vivido por aqueles que pensam em se matar. Contudo, é esse sofrimento que os impulsiona a buscar de ajuda. A prevenção do suicídio existe porque dentro de cada pessoa também existe a força de vida que, permanentemente, a impulsiona para uma condição mais satisfatória;

- busca de atenção – a falta de tempo, a pressa e a velocidade com que se vive, impedem as pessoas de dar atenção umas às outras. “Tempo é dinheiro” e “tempo é precioso” são as frases ouvidas diariamente. Embora traga muitas informações, a comunicação mecanizada pela TV, rádio, jornal e da internet pode dificultar o relacionamento direto entre as pessoas. Elas permanecem distantes umas das outras, cada qual em seu refúgio, fechadas em si mesmas e carentes de atenção. Isso se agrava muito em determinadas circunstâncias e para alguns tipos de personalidade;

- desejo de vingança – quando se perde algum bem, material ou não, é natural que surja a raiva, sentimento humano dos mais freqüentes na vida cotidiana. Quando é possível identificar um ou mais responsáveis pela perda sentida, é comum surgir o desejo de vingança, o desejo de impor ao outro o mesmo sofrimento que se vivencia. Muitas vezes, não se consegue encontrar outra forma de fazer o outro sofrer que não seja agredindo a si próprio;

- desejo de fugir de uma situação desagradável – a luta contra as dificuldades cotidianas por vezes é considerada bastante desigual. Os obstáculos parecem intransponíveis, impossíveis de serem superados. A luta torna-se cansativa, monótona, repetitiva e aparentemente interminável. É natural que se procurem todas as formas de fugir dessa situação desagradável, da violência contra os outros ou inclusive contra si próprio. As pessoas que cometem o suicídio desejam fugir do sofrimento, mesmo que essa opção represente o “nada” para elas. O “nada” muitas vezes é tido como preferível ao intenso sofrimento;

- desejo de ir para um lugar melhor – em geral, as pessoas buscam o melhor para si mesmas, embora por vezes possa parecer o contrário, ou seja, que elas somente almejam o sofrimento. A força instintiva que existe dentro de cada um impulsiona a busca de uma vida melhor. Mesmo as pessoas que cometem suicídio o fazem na esperança de conseguir uma situação mais agradável ou, no mínimo, menos desagradável;

- procura de paz – não são todas as pessoas que conseguem encontrar alguma paz interior necessária à sobrevivência, no mundo caracterizado pela competição e pela luta permanente “por um lugar ao sol”. Em certas circunstâncias, a morte pode ser vista como uma forma de se “descansar em paz”.

É necessário conhecer muito bem os sentimentos anteriormente descritos. Conforme será visto adiante, eles são bastante incompreendidos pelas pessoas em geral, levando ao surgimento de atitudes altamente prejudiciais ao esforço de prevenção do suicídio. Já foi dito que aqueles que pensam em suicídio desejam uma vida melhor, desejam fugir do sofrimento insuportável. Alguns são mais decididos nesse intento, outros são mais indecisos; alguns utilizam métodos altamente letais, como armas de fogo; outros utilizam métodos menos letais, como a ingestão de medicamentos. Não cabe à pessoa que atende alguém que está pensando em suicídio analisar se ela desejava ou não se matar. Há que se ouvi-la, sentir suas angústias, sem fazer julgamento.

FATOS E FÁBULAS

As estatísticas provam também que aquele que tentou uma vez, se não tiver apoio para revalorizar a vida, tentará de novo, até que haja uma última tentativa: a fatal. Muitas vezes, uma experiência frustrada pode ser um aviso violento das intenções da pessoa: a próxima pode não ser uma simples advertência e sim, a efetivação do suicídio. A pessoa que se mata dá muitos avisos diretos ou indiretos, até camuflados, antes de se matar. Está provado que, de dez pessoas que se matam, oito deram algum sinal que, se compreendido a tempo, poderia ter ajudado a iniciar um processo de revalorização da sua vida.

Há muitas fábulas, ideias incorretas e absurdas sobre o assunto, confundidas e assumidas como se fossem fatos reais. Essas fábulas seriam engraçadas se muitas delas não prejudicassem o esforço de prevenção do suicídio. Transmitidas de pessoa para pessoa, muitas acreditam nelas como se fossem verdades científicas.

- Fábula: o suicídio está no sangue, é hereditário. Fato: a ciência tem mostrado que, quando várias pessoas se matam em uma mesma família, isso não ocorre necessariamente em razão da hereditariedade. Na verdade, aqueles que fi cam quase sempre se sentem culpados por não terem feito nada; não conseguem viver sem a outra pessoa e acabam repetindo o gesto quando não encontram ajuda para superar seus confusos e dolorosos sentimentos.

- Fábula: a pessoa que fala em suicídio não se mata. Fato: de cada dez pessoas que se mataram, oito disseram que o fariam.

- Fábula: o suicídio ocorre sempre sem aviso. Fato: as pessoas que se matam dão sempre muitos avisos. Acontece que os demais não acreditam neles, não os percebem, ou não os entendem. Geralmente, eles vêm como mensagens indiretas.

- Fábula: a pessoa que se mata estava decidida a morrer. Fato: ao lado do desejo de fugir da vida, existe sempre a poderosa força que impulsiona cada indivíduo para ela.

- Fábula: uma pessoa que já pensou em suicídio será sempre uma candidata a ele. Fato: qualquer pessoa pode, em certas circunstâncias, pensar em suicídio. Superada a fase, ela será uma pessoa como outra qualquer.

- Fábula: o suicídio ocorre mais entre pessoas pobres. Fato: a proporção de suicídios é a mesma entre pobres e ricos.

- Fábula: os candidatos ao suicídio são todos doentes mentais. Fato: as estatísticas demonstram que apenas de 10% a 20% das pessoas que se matam são doentes mentais. A grande maioria é composta por pessoas momentaneamente desorientadas e sofredoras, que nunca apresentaram nenhum distúrbio mental antes.

À pessoa que atende no Posto CVV cabe perguntar: o que buscam as pessoas que procuram atendimento? A seguir, está uma listagem dos desejos mais freqüentes dos que acessam o serviço.

PERGUNTAS PARA QUEM ESTÁ EM SOFRIMENTO EMOCIONAL

O que eu gostaria?

de alguém que tivesse tempo de me ouvir; de uma voz calma; de me assegurar de que não sou louco; de me sentir amado; de alguém que esteja lá; de me sentir importante para uma outra pessoa; de que acreditem em mim sem eu ter que provar tudo; de ter alguém a meu lado; de me sentir seguro; de ser amparado; de respeito; de atenção completa; de ser compreendido; de alívio; de esperança; de estar no comando do que acontece comigo; de ficar à vontade; de alguém que não usaria isto contra mim mais tarde; de que demonstrem cuidado comigo; de alguém que demonstre se importar com o que acontece comigo; de ser aceito como sou; de sentir que posso confiar na pessoa.

O que eu não gostaria? de que me dissessem que é errado ou tolo me sentir assim; de rejeição; de sentir envergonhado por ter chamado; de uma preleção, sermão, discurso ou debate; de clichês; de uma repreensão (“você é mais forte que isso”); de ser interrogado para me arrancar informações; de falsa reanimação (“tudo estará melhor amanhã cedo”); de ser rebaixado ou criticado, analisado, rotulado; de ser enganado, ficar desapontado; de que me digam o que fazer; de conselhos não solicitados; de piedade; de ficar sozinho; de ser apressado, ser mandado; de comparações; de ser interrompido; de ouvir experiências dos outros; de que mintam para mim; de ser colocado na defensiva; de que ajam de forma paternalista; de conversa vazia;

A PESSOA QUE AJUDA 

Uma das principais características da pessoa que deseja ajudar deve ser a humildade de se colocar à mesma altura daquele que o procura. Assim, conhecendo a si mesmo, estará também conhecendo o outro, já que as pessoas são semelhantes na sua essência. Quanto melhor conhecer suas próprias atitudes e sentimentos, melhor conseguirá agir em benefício dos demais. O voluntário pode, também, modificar progressivamente os próprios hábitos e práticas, para que sejam mais adequados aos objetivos de servir aos que procuram apoio.

São as seguintes atitudes básicas e necessárias para um atendimento que vise à prevenção do suicídio.

Atitude de confiança nas pessoas – observando as informações que chegam do mundo todo nunca é possível deixar de se surpreender com a enorme capacidade dos seres humanos de sobreviver às condições mais difíceis. É quase impossível acreditar como tantas pessoas puderam resistir, durante anos a fio, às condições desumanas dos campos de concentração durante a 2.a Guerra Mundial. Atualmente, a fome que atormenta grandes populações em diversas partes do planeta e as condições subumanas a que são submetidas extensas parcelas da humanidade em função dos preconceitos de cor, raça, nacionalidade ou religião trazem à tona a resistência e a capacidade das que continuam a resistir: a vida é mais forte! A conclusão a que se chega é a mesma a que diversos estudiosos do comportamento humano chegaram: os seres vivos possuem uma poderosa força interior que os impele continuamente à busca de uma vida melhor.

Na prática, confiar nas pessoas é considerar positiva a essência de todos. Interiormente, todos têm a capacidade de serem bons. Quem comete o mal não é mau na sua essência; pelo contrário, é potencialmente bom. Por isso, é preciso separar o mal do malfeitor. A pessoa que pratica o roubo e o assassinato continuará sendo interiormente sempre uma pessoa e, como tal, merece confiança. Por mais desequilibrada e doente que seja, ela possuirá sempre capacidades interiores que poderão ser desenvolvidas um dia, caso deseje e encontre as condições apropriadas.

A tendência natural dos seres humanos é procurar a proximidade com os outros; é de conviver em paz; é de buscar amizade e calor humano; é de comunicar o que está em seu universo interior. Quando encontra obstáculos, dificuldades e impedimentos, essa tendência positiva se obscurece e surge violência, egoísmo, inveja e destrutividade. São esses obstáculos que as pessoas que procuram atendimento não devem, em princípio, encontrar no voluntário ou no profissional que cuida delas. A atitude primeira daquele que se dispõe a ajudar um indivíduo que pensa em suicídio será a de confiar na pessoa; em seguida, de não colocar dificuldades, e sim, facilitar o esforço que ela está fazendo para conhecer, em conjunto com o voluntário ou com o profissional, as verdadeiras razões de seu sofrimento. 

E, assim, encontrar soluções que possam minorá-lo.

Muitas vezes surgem dificuldades, porque algumas pessoas ainda não estão prontas para as mudanças interiores, e o voluntário ou o profissional também tem os seus próprios impedimentos e limitações.

Atitude de respeito pelo outro – com freqüência, fala-se em respeito à pessoa. Entretanto, as ideias favoráveis do indivíduo que se propõe a ajudar pessoas que pensam em suicídio não garantem que, na prática, ele respeite o outro. Alguém pode defender ideias muito bonitas sobre este assunto e diante do outro agir desrespeitosamente. O que se pede não são palavras, mas atos, ou seja, a demonstração concreta de uma atitude interior compreensiva. O trabalho do voluntário ou do profissional é prestar ajuda. Mas, por outro lado, é preciso reconhecer que o outro é quem reúne as melhores condições para saber e decidir o que mais lhe convém.

Ajudar com respeito significa criar condições para que o outro encontre suas próprias condições internas de superação. Os pais ajudam os filhos a andar, permitindo que eles caminhem por si mesmos, apesar das quedas que certamente lhes acontecerão. Não respeitar o outro durante uma conversa sobre seu sofrimento significa julgá-lo, avaliá-lo, aconselhá-lo, tomar a frente nas decisões que ele deve ter, tentar dirigir sua vida e interferir nela. Ao contrário, respeitar o outro é tratá-lo como um igual e levá-lo em consideração, dar valor a todos os seus pensamentos e sentimentos.

Uma forte tendência individualista é a de considerar que o próprio sofrimento sempre é maior que o do próximo. A própria dor é sempre sentida como a mais intensa que qualquer pessoa já sofreu. Como conseqüência, a dor do outro em geral parecerá pouco importante. 

Uma jovem que tentou o suicídio após ter perdido o namorado deverá merecer tanto respeito quanto uma pessoa idosa que perde o companheiro de muitos anos. Não é possível dimensionar, com uma medida única, o sofrimento alheio; não se pode julgar, nem tirar conclusões a partir de si mesmo.

Respeitar é não usar a medida pessoal para sentir o sofrimento do outro, mas usar a dele próprio. Uma experiência ou um fato que para o voluntário ou profissional parece não ter valor, para o outro poderá ser motivo de grande angústia e de grande ansiedade. Respeitar o outro não é apenas um assunto de bate-papo entre amigos. É uma certeza que deve ser cultivada por meio da experiência e da prática diária do trabalho de ajuda.

Atitude de aceitação – aceitar o outro é admitir sua existência; é abrir portas para ele; é convencer a si próprio de que “ele é assim”. É olhar de frente para ele; observar e examinar com ele todas as suas características, sem receio, sem preconceitos, sem julgamento.

Geralmente, a própria pessoa não se aceita e não tem coragem de olhar para si mesma. Fecha os olhos para suas características porque crê que são ruins e negativas. Com isso, acaba desconhecendo o lado positivo delas, que, muitas vezes, poderiam ser de grande importância na solução de suas dificuldades. Os indivíduos não se aceitam porque possuem preconceitos sobre o que é bom e o que é ruim. E vivem em luta para se defender daqueles que pensam de forma diferente. Se o voluntário ou profissional que atende critica a pessoa em sofrimento e força para que ela tome uma atitude, tentando convencê-la para que pense, sinta ou aja de determinada maneira, ela fatalmente reagirá, “fincando o pé” nas suas posições. Mas, quando o voluntário ou o profissional a aceita, olhando-a e procurando compreendê-la com interesse verdadeiro e respeito, ela se sente segura e confiante para fazer o mesmo, para observar melhor a si própria. Deixa, então, de consumir tanta energia para se defender, e passa a utilizar toda essa energia para se conhecer melhor e procurar alternativas de mudanças.

Assim, à medida que o voluntário ou o profissional aceita a pessoa que pede ajuda, ela pode se aceitar melhor também, passando a acreditar e a confiar mais na própria capacidade; já não precisa mais depender de nenhuma outra pessoa, inclusive do próprio voluntário ou profissional que a assistiu. Está claro que aceitar não é o mesmo que concordar com as atitudes do outro ou aprová-las.

Atitude de compreensão – assumir uma atitude compreensiva diante do outro significa deixar a distância e a frieza de quem examina um objeto e aproximar-se, procurando sentir e colocar-se no seu lugar. Sempre que alguém age, pensa ou sente o faz por uma boa razão. 

Caberá àquele, que quer ajudar, conhecer as razões do outro e suas atitudes, explicadas por ele próprio. Compreender significa entender a lógica do comportamento e do sentimento de quem pede ajuda. 

Um homem perde o emprego e pensa em suicídio. Se um voluntário acreditar que o compreende pelo fato de conhecer apenas esse dado, estará completamente enganado. 

Esse fato conforma apenas os aspectos exteriores de suas atitudes. Muitas pessoas perdem o emprego e não se matam por isso. Contudo, conhecendo mais sobre aquela pessoa, pode-se saber que ela se sente profundamente incapaz de procurar um novo emprego, que se trata de uma pessoa extremamente tímida e insegura desde a infância. Isso é compreendê-la. É conhecer a lógica interior das suas atitudes e, principalmente, seus sentimentos. 

Compreender o outro significa estar ao seu lado e tomar o seu partido na compreensão de sua situação. 

Observar a si próprio – à medida que a pessoa conhece melhor sua própria maneira de pensar, sentir e agir e os preconceitos que possui em relação aos outros, fica mais fácil ajudar, pois haverá a compreensão de que todos os seres humanos são semelhantes.

Flexibilidade – é a capacidade e a coragem de deixar de lado o próprio ponto de vista por um instante e examinar o do outro, com honestidade e sinceridade, no desejo de encontrar o melhor caminho de ajuda. Todos têm uma certa tendência, em princípio positiva, de defender as próprias ideias e pontos de vista como se eles constituíssem uma questão de vida ou morte. As pessoas mais rígidas e inflexíveis se quebram mais facilmente: não suportam a força das tempestades. Os mais flexíveis se dobram quando a força contrária é muito forte, porém, não desistem, não se quebram, não morrem. Não há respostas e soluções para todos os problemas da vida. Admitir isso é ter flexibilidade.

Os preconceitos fazem que as pessoas sejam rígidas. Preconceitos são ideias antigas que o indivíduo traz consigo. As fábulas sobre o suicídio, por exemplo, são preconceitos contra as pessoas mais vulneráveis a cometê-los. Algumas vezes uma pessoa é tão inflexível em relação a certas ideias que chega a parecer que dá a vida por elas. Esses são os que cultivam os chamados princípios. Certas pessoas morrem defendendo opiniões que os voluntários ou profissionais que as atendem não conseguem compreender muito bem.

Quantos, por exemplo, já perderam a vida nos estádios esportivos, defendendo seus times? Os torcedores são exemplos de pessoas inflexíveis e fanáticas que não admitem perder, pois, não admitem também a superioridade do outro. Para que se possa aceitar, compreender e respeitar o ponto de vista e os sentimentos da pessoa que procura ajuda, tem-se que aprender a ser mais flexível. Ninguém se livra dos preconceitos como se faz com uma roupa imprestável, mas conseguirá isso pela força da solidariedade.

Nivelamento – é a atitude de se perceber a altura do outro, com sinceridade. É o contrário de assumir uma atitude superior de quem se considera mais inteligente e mais sábio. Sempre que alguém se coloca acima dos outros, acaba por ter desilusões e sofrimento. Além disso, sem nivelamento não pode haver aproximação entre as pessoas. E, sem proximidade, não pode haver calor humano. Quando ocorre nivelamento, pode-se acolher, receber o outro com simpatia, respeito e compreensão. Aquele que ajuda e o que recebe ajuda tornam-se “um” e “igual”. O nivelamento é a atitude prática da pessoa amorosa e fraterna. Essa capacidade é o contrário da projeção, postura de quem acha que os outros vêem o mundo da mesma forma que ele próprio. É colocar sobre os outros o peso das próprias crenças e preconceitos pessoais.

Humildade – é a atitude da pessoa consciente de que não sabe tudo, que não tem soluções prontas para todos os problemas humanos, que não tem respostas para todas as perguntas. Na realidade, as pessoas se sentem melhor diante de seres humanos falíveis, muito mais do que diante de super-homens ou de supermulheres de fachada. A insegurança é própria dos seres humanos. A segurança absoluta, completa e permanente é uma máscara. 

Todos têm uma certa tendência de usar máscaras, isto é, de se esconder. À medida que se exercitar a humildade, a pessoa tem coragem de se mostrar como realmente é. Essa disposição num voluntário facilita que a pessoa a quem tenta ajudar faça o mesmo.

Disponibilidade – embora seja um conceito bastante amplo, seus aspectos principais 

são os seguintes:

- disponibilidade de calor humano: atitude de expor ao outro aquilo que se é, mostra confiança no outro. É acompanhada de respeito, aceitação e compreensão. Porém, como todo ato de ajuda deve ser um ato esclarecido, e não um ato cego e impulsivo, deve-se ter clareza que não se pode ajudar a todas as pessoas. Há algumas que não querem ser ajudadas. Doar-se não significa dar conselhos, sermões ou orientações como simples auxílio, e sim, estar aberto para ouvir e acolher;

- disponibilidade para buscar o autoconhecimento: aquele que procura ajudar pessoas em sofrimento deve estar aberto para conhecer a si próprio, para que possa reservar o máximo de espaço possível ao outro.

Moderação – é a atitude de se manter longe dos extremos. A pessoa fanática e extremista dificilmente poderá ser útil e disponível, porque terá sempre muitas exigências dentro de si. Isso não significa que se deva viver na mediocridade das ideias comuns e sem originalidade. 

O importante é manter a flexibilidade.

Em síntese, termina-se este texto com uma pequena comparação. O médico vacina pessoas, visando a desenvolver-lhes resistência contra as doenças. Podem-se vacinar pessoas contra ideias e tentativas de suicídio, ajudando-as a desenvolver força e confiança em si mesmas e, dessa forma, adquirir resistência contra o desespero. A partir do momento em que um ser humano se coloca em disponibilidade para ouvir com compaixão o desabafo das angústias de outro, pode-se dizer que um trabalho de prevenção do suicídio se inicia. 

É o trabalho de doação, de apoio, de calor humano e de amizade que pode oferecer a alguém a mensagem de que não está sozinho e de que merece ser ouvido

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* Centro de Valorização da Vida. Fundado por voluntários em São Paulo em 1961, inspirado na experiência do Samaritanos, da Inglaterra. Atende remotamente pelo número 188 gratuito; virtualmente em www.cvv.org.br; e presencialmente nos postos físicos franqueados e espalhado pelo Brasil 

FONTE: Violência faz mal saúde. 1.ª edição. 2.ª reimpressão. Série B. Textos Básicos de Saúde. Brasília – DF. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas.




SOBRE O ORGANIZADOR

santosduquedalmo@gmail.com


Dalmo Duque é historiador, escritor, educador, mestre em comunicação e cultura, bacharel, licenciado em história e pedagogia. Leciona na rede de ensino privada desde 1986 e na rede pública estadual de SP desde 2.000. Ingressou na prevenção do suicídio em Santos-SP aos 18 anos no posto do CVV em 1979. É autor dos livros “CVV, Como Vai Você, 50 anos ouvindo pessoas” (2012); e “Estação Amizade, dez jovens lutando contra o suicídio” (2017). Criou o Minicurso Saber Ouvir e o Programa Estação Amizade (2016), para formação de jovens multiplicadores da prevenção do suicídio na rede pública e particular. Participou de programas educativos na SEDU-SP e SEDUC-GO abrangendo toda as escolas dessas redes estaduais por meio de encontros remotos e presenciais. É autor do artigo “Educação e Prevenção do Suicídio” no compêndio “Psiquiatria-Estudos Fundamentais- Meleiro” (Gen-Guanabara-Koogan, 2024).


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